in loco - diários de cannes
Dia 8: Não estamos sós
por Eduardo Valente

Hanezu No Tzuki, de Naomi Kawase (Japão, 2011) – Competição
Blue Bird, de Gust Van den Berghe (Bélgica, 2011) – Quinzena dos Realizadores

Depois que figuras como Terrence Malick e Lars Von Trier nos apresentaram suas visões bastante distintas, mas também cheias de semelhança (como comentado ontem por Pedro Butcher em seu texto), acerca do confronto do homem com o transcendente/cósmico, encarnadas principalmente a partir de suas relações com a natureza e a morte, curiosamente o dia seguinte nos apresentou muitos dos mesmíssimos temas para reflexão numa perspectiva, aí sim, completamente distinta. Saem as religiosidades e mentes absolutamente anglo-saxãs/escandinavas e entram em cena as maneiras japonesa e africana de lidar com esses assuntos – resultando em filmes completamente opostos, principalmente, no que se refere ao escopo a partir do qual se apresentam as idéias: depois das megalomanias dos dois cineastas-estrelas, Kawase e o belga Van Den Berghe vêm mostrar que também é possível confrontar-se com o enorme sem precisar deixar de estar com os pés radicalmente fincados no chão.

No caso de Kawase, não é novidade nenhuma em sua obra falar da relação determinante dos homens e mulheres com a natureza à sua volta, mas em Hanezu No Tzuki chama a atenção o escopo mítico a que a cineasta se decida, com os planos de paisagens e montanhas sendo “escoltados” pela voz em off que recita trechos de poemas históricos. Na verdade, é impressionante justamente a forma como Kawase faz a contraposição entre este contexto “pré-humanidade” e a simplicidade da história que conta, que resulta praticamente um conto exemplar. Não que nisso ela não se aproxime de Malick e Von Trier (que igualmente usam de micronarrativas familiares para lidar com o universal-cósmico), mas a questão aqui é de encenação mesmo: enquanto a família de Malick é claramente alegórica (a família americana ideal) e a de Von Trier é paródica, em Kawase a história de um triângulo amoroso e uma gravidez não esperada nunca saem do registro da sua especificidade, do drama único daquelas pessoas/corpos, acreditando que basta a montagem, que constantemente nos coloca em relação com a natureza e com a mitologia, para fazer esta passagem.

Em se tratando de uma japonesa, não deve nos surpreender que, para além da conexão com o natural e o mítico, existe uma linha da narrativa que conecta fortemente o que vemos também com a dimensão da tradição e do passado – o filme, aliás, começa com planos de uma escavação arqueológica. Talvez os mais fortes momentos sejam, justamente, aqueles nos quais o casal adúltero é reconectado com seus antepassados, avós mortos cuja presença não se perde de vista – inclusive literalmente, em cena. No entanto, o filme é bem claro no fato de que reconhecer a importância e a presença da tradição e do passado não deve significar estar congelado por ela: assim como acontece com as cidades, devemos construir por cima das ruínas do que ficou para trás, nunca esquecendo e achando que não temos algo a ver com isso, mas também não vivendo presos ao passado. É impressionante que tanto termine sendo “dito” em um filme tão lacônico quanto esse – pode-se até mesmo dizer que todos os filmes de Kawase se debruçam sobre a dor da incapacidade/impossibilidade de enunciar certas coisas. E embora esse interdito à palavra não seja exatamente a mesma coisa que a tão batida (e tornada clichê) “incomunicabilidade”, é verdade que eventualmente o filme perde um pouco de sua potência quando força algumas imagens poéticas deste silêncio de olhares perdidos frente a paisagens verdes. São pequenos momentos em que a sutileza que quase sempre rege o cinema de Kawase se torna um pouco autoconsciente demais – mas são minoria.

Curiosamente, em Blue Bird, filme realizado pelo belga Gust Van Den Berghe em território africano, temos uma imagem muito parecida com a do filme de Kawase: avós já mortos que contracenam normalmente com seus netos ainda vivos. É a mais marcante, mas de forma alguma a única coincidência entre os dois filmes: Blue Bird é mais uma micronarrativa (aqui a de um casal de irmãos em busca de um pássaro perdido) onde entram em jogo as relações dos seres humanos com o transcendente, a vida e a morte, devidamente intermediados e encarnados na natureza e nos antepassados. Só que, assim como no filme japonês (e bem diferentes, de novo, dos de Malick e Von Trier), a presença maior-que-a-vida da natureza e a imposição de uma ordem maior onde o humano apenas faz força para se integrar são algo absolutamente naturalizado no dia a dia, na rotina, numa jornada de 24 horas ao mesmo tempo incrivelmente banais e totalmente mágicas.

Van Den Berghe, depois de apresentar no ano passado um filme que já impunha um sentido de universo bastante único (ler este relato), confirma aqui uma capacidade bastante particular de nos transportar para realidades distintas – por algum motivo, vem à cabeça dizer que ele parece uma espécie de Terry Gilliam do “cinema de festivais”. Se no filme anterior o uso exclusivo de atores com Síndrome de Down ajudava a dar ao filme uma qualidade distinta, aqui duas escolhas formais se impõe: primeiro, o uso de um formato de quadro incomum, fazendo quase uma faixa horizontal no centro da tela, que radicaliza o efeito do cinemascope (embora acabe ocupando menos que o total da tela em si); depois, a imposição de um filtro azul sobre a imagem do filme todo, que ganha uma “azul e branca”, com cores fracas. Por mais “estetizante” que esta opção possa ser, ela ajuda a retirar das savanas africanas um tipo de luz/cor que impõem demais o regime do naturalismo, e tornam a trajetória toda dos irmãos algo forçosamente fora do tempo e espaço – por mais que não estejam fora do filme as condições difíceis de vida no interior do continente. Ao final, temos aqui a prova de que é possível ainda trazer algo de novo ao tema do “rito de passagem”, que aqui assemelha e aproxima o fenômeno do crescimento ao do nascimento e da morte.

* * *

Melancholia, de Lars Von Trier (Dinamarca/, 2011) – Competição

Se o Pedro Butcher (assim como outros textos por aí) já tratou de semelhanças formais e diretas de Melancholia com o filme de Malick, eu falaria de outra, imposta ao trabalho do crítico: a sensação de que, 24 horas depois (e, no caso de Von Trier, após o seu muito badalado banimento pelo Festival por sua entrevista coletiva), já há uma certa gastura na necessidade de se falar do filme em si. Talvez esse seja o maior problema de Cannes nos tempos da hiperinformação: os filmes se transformam de mistérios e objetos de expectativa a cadáveres autopsiados em menos de 24 horas – e a sensação que fica é que talvez só devamos voltar a eles daqui a uns 6 meses, pelo menos.

Isso dito, de minha parte eu só teria uma coisa que acho que vale adicionar sobre a minha relação bem pessoal com o trabalho em si (e que tem a ver com tudo que Von Trier fez desde Dogville – no qual, mesmo já existindo esse peso, ele ainda era “fresco”, por assim dizer): a grande questão que me impede de me aproximar de fato destes filmes não tem nada a ver com o fato de eles serem pessimistas e/ou niilistas e/ou o que mais se queira dizer da postura claramente misantropa de Von Trier. O problema é que o cinismo dos gestos que os têm levado mais recentemente aos filmes congela totalmente qualquer possibilidade de relação com eles do meu lado porque, acima de tudo, a sensação que fica é que os próprios filmes não acreditam em si mesmos – e aí, por que eu acreditaria? É isso que torna a primeira metade do filme quase insuportável: não qualquer tipo de ousadia ou incômodo com o que ele revela das relações humanas, mas o fato de que o teatrinho de marionetes de Von Trier gira em falso, com óbvio desprezo por tudo e todos que filma. A idéia de roteiro se resume apenas a uma reiteração dos mesmos papeis para cada personagem, a cada cena – e se ele até atinge algumas eventuais boas piadas, o problema é que não se dispõe de fato a fazer uma comédia (se houvesse qualquer inteligência cinematográfica em jogo atualmente por Von Trier ele já teria mergulhado no humor – de fato, único talento que ele tem revelado).

Então, o problema não é que um cineasta chame um planeta de Melancolia, e que ele vá destruir a vida na Terra (porque de alegorias pouco sutis já se construíram grandes obras). O problema é que seja só isso mesmo que o filme tenha a propor em toda sua segunda metade – além de uma série de ataques histéricos de Charlotte Gainsbourg frente à melancólica (sacaram?) Kirsten Dunst, enquanto Kiefer Sutherland interpreta o paspalhão da hora. Que a tristeza uterina de uma mulher leve ao fim do mundo talvez seja a imagem mais bonita que Von Trier dedicou às mulheres em toda sua carreira (mesmo que mostre, mais uma vez, o medo sincero que ele tem delas – ou até por isso mesmo), mas é apenas isso, uma imagem. Não por acaso ele agora pegou essa mania de criar tableaux (de horrendo gosto, mas isso é detalhe) que resumem o filme em uma imagem, como as da sequência de abertura do filme, câmera lenta ao som de Wagner. Ele, hoje, é pouco mais que um diretor de arte de campanhas publicitárias, mais interessado em fazer o release e a coletiva dos filmes do que eles mesmos (a ver a radicalização da filmagem em câmera “tudo vale-vale tudo”). Portanto, deve estar satisfeito porque a coletiva roubou a cena – de novo. E já promete, a seguir, um filme pornô – onde, a julgar pelos seus filmes recentes, sabemos a única coisa que vai faltar: tesão.

Maio de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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