Os pratos já se acumulavam sobre a mesa enquanto discutíamos
algum assunto político em pauta no momento, Hugo Chavez,
Lula, Sarkozy, escolas, hospitais ou ainda os filmes do
Frederick Wiseman, não me lembro mais. Acho que fui eu
mesmo que em uma afirmação ingênua, comentei que todos
eles, por algum motivo, se diziam democráticos –, nem
sei mais o porquê ou quem. De bate pronto, o André Brasil,
que até ali permanecia mais calado, disse:
- Tudo é democracia!
Éramos umas 10 pessoas
que diante de tal afirmação fizemos o silêncio necessário
para todos pensarem em ir ao banheiro ou para casa.
Uma artista marroquina que jantava conosco finalmente
disse: Hoje, tudo é democracia?
O absurdo e a verdade,
contidos naquela frase tão precisa, me mobilizaram.
Como assim tudo é democracia? De maneira precisa e irônica
aquela frase levava a tudo uma dúvida sobre a existência
da democracia. É impossível que tudo seja democracia,
entretanto, nada se diz não-democrático. A democracia
é assim aceita como princípio geral, valor universal,
desejo coletivo, mas a afirmação de que tudo é democracia,
ao mesmo tempo em que reflete um estado das coisas,
causa grande estranhamento.
Facilmente poderíamos
apontar para um sem número de lugares e processos em
que a democracia falta. Parecia-me claro que a frase
comportava essas duas dimensões da democracia; presença
e ausência. Por um lado, o discurso da democracia é
o que funda a opinião, a homogeneidade que rechaça a
diferença. Por outro lado, e é esse o sentido que me
interessa, a democracia é um estar junto instável, sem
que a diferença possa ser apagada. Nela residem as potências
do mundo. Mas, a democracia como embate, tensão e dissenso, não é simples,
requer um risco, um excesso, uma luta, uma igualdade
dissensual.
A pessoa é para
o que nasce (2003)
“O pessoal lá da igreja
disse: esse povo tá fazendo isso pra pegar as fitas
pra vender e ganhar dinheiro para eles… será que eles
vão dar alguma coisa pra vocês?”, diz Maroca, uma das
três cegas cantoras, personagens principais do filme
A pessoa é para o que nasce, de Roberto Berliner.
Elas trazem para o filme a tensão que existe na imagem
documental hoje. Por um lado, o filme é movido pela
diferença que se materializa naquelas três mulheres,
pela singularidade nos seus modos de vida e pela forma
como elas dão a ver um mundo que vai de Campina Grande,
na Paraíba, ao palco com Gilberto Gil. Berliner e sua
equipe saem do Rio de Janeiro muitas vezes e entram
em um mundo que não é o deles, tendo essas três senhoras
como guias, como forma de acesso. Elas são o centro
do filme e ao mesmo tempo o que mobiliza o deslocamento,
geográfico e subjetivo, do filme e do espectador. Por
outro lado, o filme é recheado por uma percepção, por
parte delas, que pode ser resumida em algo como: nossos
modos de vida têm valor, econômico e simbólico. Econômico,
claro, porque o filme vai ser vendido, como diz Maroca,
e simbólico porque estar perto delas, ouvir sobre suas
vidas é, em si, uma forma de transformação subjetiva
de todos, dos realizadores e, talvez, dos espectadores.
Em 1970, durante uma
entrevista, Felix Guattari já explicitava a transformação
da relação entre vida e capital que se tornaria a base
para todo pensamento em torno do filósofo Antonio Negri
e para a revitalização da biopolítica como forma de
resistência paradoxal. As palavras de Guattari: “a primeira
fase da revolução industrial consistia em transformar
os indivíduos em robôs, em autômatos, com a fragmentação
do gesto do trabalho [1] .
Agora, cada vez mais, no seio mesmo da evolução das
forças produtivas, está colocado o problema das singularidades,
da imaginação, da invenção. Cada vez mais, o que será
demandado aos indivíduos na produção é que eles sejam
eles mesmos”. [2]
Diversas imagens contemporâneas,
muitas delas ligadas ao campo do documentário, se encontram
atravessadas por esse dilema. A noção de direto de imagem
é apenas parte desta percepção de que a imagem e a vida
têm valor. [3] Se
boa parte do documentário sempre encontrou sua potência
na forma como dava a ver o singular, como documentava
formas de vida e estéticas marginalizadas, seria ele
afetado pelo capitalismo contemporâneo que leva ao limite
a singularização dos desejos e formas de vida, se abstendo
em disciplinar corpos e mentes para atuar nas possíveis
capturas da vida e dos modos de ser? É esta ampla questão
que atravessa esse artigo.
Partilha do sensível
Os indivíduos circulam
por mundos em que lhes é permitido e possível sentir
e dizer determinadas coisas, de determinadas maneiras.
Essas possibilidades são coletivas; habitadas, construídas
e deslocadas por indivíduos singulares. Ao mesmo tempo,
não são todos os indivíduos que ocupam o mesmo lugar
nesta ordem do que é dado a sentir e dizer. Em um mesmo
universo, as mesmas linhas que traçam um comum definem
lugares exclusivos. Estas divisões são o que o Jacques
Rancière chama de uma partilha do sensível, um esquadrinhamento
da circulação do que é dado a dizer, a ouvir e sentir.
Em uma partilha é possível apontar os que têm direito
à fala e quais as possibilidades do sensível dentro
dessa partilha. Ao mesmo tempo, no seu interior, aparecem
os indivíduos e grupos que operam deslocamentos no que
é possível ver, dizer e sentir, ou seja, uma atividade
rara, mas propriamente política.
Para Rancière, toda
atividade política é um conflito para dizer o que é
palavra e o que é grito, o que é parte de um comum e
o que pode ser apenas separado dele. Recortes que constituem
a própria dimensão estética da política.
[Um] recorte dos tempos e dos espaços,
do visível e do invisível, da palavra e do grito que
define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo
na política como forma de experiência. A política
ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre
o que é visto, de quem tem a competência para dizer
sobre o que é visto, de quem têm competência para
ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço
e dos possíveis do tempo [4] .
Esta composição entre
visibilidades e dizíveis é o que produz a política como
cena para Rancière, tendo o teatro como modelo. O crítico
e cineasta francês Jean-Louis Comolli, ao pensar as
subjetivações e o universo do documentário, faz uso
de uma metáfora teatral também. Para Comolli, os indivíduos
estão constantemente passando de uma mise en scène
a uma outra. Articulando várias mise en scène
ele constitui a sua própria. “Filmar o outro é confrontar
a minha mise en scène com a do outro”, escreveu
Comolli.[5]
Comolli expõe assim uma percepção do documentário
como espaço conflitual. Neste mesmo texto, Comolli se
aproxima ainda mais dessa noção da política como constituição
de uma cena. Para ele, o cinema que não está sob o risco
do real, limpo e livre dos acidentes, faz-se com menos
corpo e menos real, se protege da cena, o que implica
seu próprio desaparecimento. Se a co-presença dos elementos
que compõe uma cena não é necessária e, pelo contrário,
deve ser domada, é a cena que se torna inútil. A retirada,
nesse caso, é da política mesmo.
Esta percepção estética
da política transfere para a linguagem os princípios
que organizam as noções de justiça e democracia. Não
se trata de, partir de um ideal de direitos dos indivíduos,
sempre absoluto e facilmente alienável da prática, pensar
a justiça como o que garante uma igualdade entre eles,
mas operar na imanência de como o poder se exerce, na
distribuição do que pode ser reivindicado por cada grupo
e na possibilidade de uma determinada fala ou gesto
poder operar um comum, deixando de ser ruído para circular
sem fim definido, mas com a potência de reconfigurar
o espaço, o tempo, a memória. Esta é uma das dimensões
políticas das imagens, uma vez que elas se apresentam
como maneiras de fazer, dizer e sentir que têm a potência
de reconfigurar as formas de visibilidade e sensibilidade.
Mas até que ponto é possível
pensar o documentário como um espaço democrático? Porque
convocar essa noção para pensar os lugares do filme,
do espectador e dos indivíduos filmados? O problema
não é novo; toda discussão em torno da possibilidade
do documentário “dar voz ao outro” passa por esse problema
da palavra, do poder e do compartilhamento de um espaço
físico e simbólico.
A palavra e a distribuição
dos lugares
Se entendermos então
que uma partilha do sensível é esta distribuição de
lugares em que a circulação da palavra e do sensível
encontra passagens e barreiras, trocas e surdez, ela
não pode ser confundida com o direito à fala. Ou seja,
quando um indivíduo ou um grupo tem direito à fala,
este direito não implica ainda a presença desta fala
em um espaço comum, não implica que ela opere necessariamente
uma escuta. O jornalismo, tanto impresso como eletrônico,
por exemplo, é recheado por falas de excluídos que não
chegam a se concretizar como uma forma de reconfiguração
de uma partilha. Pelo contrário, as imagens de dor ou
o choro dos pais que perderam o filho em um deslizamento
normalmente são as imagens e sons que reafirmam a separação,
reafirmam a partilha vigente. Nesses casos, a imagem
reafirma o não-pertencimento daquele que sofre ao universo
daquele que produz a imagem ou ao mundo do espectador.
O que sofre é isolado pelo sentimento de injustiça que
rapidamente se converte em uma acusação: se o barraco
caiu é problema do estado, logo, não é parte do meu
mundo, posso ir para a próxima imagem, para o próximo
ruído. Nesses casos, a existência de uma palavra ou
de uma imagem do outro não reconfiguram a experiência
sensível.
Assim, a política não
é necessariamente presente uma vez que o indivíduo tem
a fala. Não é por falar que o homem se torna um animal
político. A palavra não garante o logos, “uma inscrição
simbólica na cité”. Esta distinção é reveladora
da política como construção e escritura, ao mesmo tempo
em que não nos permite resumir a política ou as imagens
com que trabalhamos ao freqüente discurso: “tudo é política”.
Dominique Noguez, por exemplo, ao tratar da dimensão
política do cinema, se baseia em Aristóteles para afirmar
que todo filme é político posto que “o homem é um animal
político”. “Até mesmo a recusa da política é, ela mesma,
direta ou indiretamente política” [6] , escreveu Noguez. Se seguirmos com Rancière,
o que normalmente se chama de política ele chamará de
polícia: “o conjunto dos processos nos quais
se operam a agregação e os consentimentos das coletividades,
a organização dos poderes, a distribuição dos lugares
e funções e os sistemas de legitimação” [7] . A polícia se configura assim
como a instância enunciativa que se separa da tensão
da qual a imagem surge. A polícia, para Rancière,
não é uma instituição, mas um princípio de partilha
do sensível que, entre outros recortes, delimita a elite;
aqueles que falam e são ouvidos sem necessidade de legitimar
o que dizem, ou seja, a legitimação é a própria forma
com que ocupam o espaço.
No campo do documentário,
por exemplo, a polícia pode ser exercida pela
voz off em forma de uma voz absoluta, que, como
sabemos, teve forte presença no documentário clássico,
sobretudo àquele ligado à escola inglesa tendo John
Grierson, nos anos 30, como líder do grupo e inventor
do recurso. Onipresente e Onisciente, a voz off
era propriamente a distribuidora dos lugares dos indivíduos
e grupos, organizadora da partilha. A presença da polícia
hoje está distribuída de maneiras as mais diversas nas
produções de imagens. Os reality shows configuram
o exemplo mais bem acabado desse novo estatuto dessa
instância organizadora exterior que funciona como polícia.
Diferentemente da voz off, a polícia em
um reality show não precisa nem habitar a imagem.
As palavras das pessoas filmadas, esse participante/objeto,
são sempre direcionadas a esses operadores do jogo em
que o espectador é transformado em juiz (Comolli).
Podemos então dizer que a política é antes a possibilidade de reordenar
o que está dado a sentir e dizer por sujeitos quaisquer,
do que propriamente os discursos feitos pelos indivíduos
e grupos que operam estas reconfigurações. A política
assim pode ser pensada como o que acontece sem um fim
predeterminado, anterior a um objetivo. Antes de ser
uma informação, ou uma comunicação, ela é uma operação
de esquadrinhamento do espaço e do tempo. Aproximamos-nos
assim de Agamben, no sentido que entendemos que é próprio
à política a invenção de meios que são o próprio fim;
como Agamben explicita nesta passagem de seu artigo,
Notas sobre a política: “A política é a exibição
de uma mediação, o tornar visível, um meio enquanto
tal. Não é nem o quadro de um fim em si, nem de meios
subordinados a um fim, mas uma medição pura e sem fim,
como campo do agir e do pensamento humano”. [8]
Palavra e política,
um movimento litigioso
A palavra habita assim
a cena política como produtora de um dissenso, trazendo
para esta cena a possibilidade de irrupção de atores
intempestivos, não roteirizados, que adentram a política
sem serem chamados, em um esforço de linguagem que rompe
a estabilidade dos conflitos pré-existentes. Nesse sentido,
a política é absolutamente distinta da denúncia da injustiça,
lição cara ao documentário que, frequentemente, ao se
concentrar na denúncia de uma injustiça, abdica da própria
possibilidade de fazer política.
No final do capítulo
Cinema, corpo e cérebro, do livro A Imagem-Tempo,
Deleuze explora a célebre formulação de que o povo
falta e que a política não se faz com um povo passado,
mas “com a fabulação de um povo por vir” [9]
e acrescenta: “é preciso que o ato de fala se crie como
uma língua estrangeira em uma língua dominante, precisamente
para exprimir uma impossibilidade de viver sob a dominação” [10] . A noção de uma língua estrangeira não
é desenvolvida aqui, mas encontra eco quando Deleuze,
citando Proust, diz: “As obras-primas são sempre escritas em uma espécie
de língua estrangeira” [11]
e também no livro com Guattari sobre Kafka.
O que primeiramente interessa
nessa noção é que quando Deleuze fala de uma língua
estrangeira, essa língua é uma diferença que racha a
língua dominante. Não se trata assim de reivindicar
um lugar - contra a dominação - no interior da língua
dominante. A reivindicação é assim uma estética que
parte da igualdade. Não há uma hierarquização dessas
línguas nem uma tentativa de falar e de se fazer ouvir
na língua dominante, mas tornar a língua dominante a
opressão em
si. A língua como o que divide e determina
os lugares. A língua estrangeira aparece então, por
um lado, como o que desestabiliza as partilhas da língua
dominante e, por outro, como o que funda novos lugares
para os atores que atuam nessa nova língua. É ainda
com a noção de fabulação nesse capítulo que Deleuze
se distância de um embate dialético entre duas falas.
Pela fabulação há, por um lado, a desestabilização da
língua dominante, que, em si, exclui e, por outro lado,
ela torna o ato de fala um enunciado coletivo que impossibilita
a manutenção da exclusão daquele que fala.
Possuir a sua língua
aparece assim como um gesto político, forma de produzir
uma igualdade dissensual. Um gesto que não se
desdobra no isolamento de uma comunidade de falantes
de uma mesma língua comum, mas que, ao falá-la, encontra
meios para uma enunciação não subordinada e necessária.
Enquanto a literatura dominante faz cada caso individual
se conectar a outros casos individuais, em uma literatura
menor, “cada caso individual é imediatamente ligado
à política” [12] . Nas palavras de Deleuze
e Guattari: “Não há sujeito, mas sujeitos coletivos
de enunciação” [13] . O caráter político passa
pela virtualidade dessa presença que desestabiliza a
língua dominante no mesmo gesto que forja meios “de
uma outra sensibilidade”
[14] , no momento em que
seus enunciados se tornam coletivos. Deleuze parece
estar assim próximo de Rancière na medida em que é na
estética que a igualdade é reivindicada como o princípio.
Como escreveu Rancière: “Quem parte da desigualdade
e se propõe a reduzi-la, hierarquiza as desigualdades,
hierarquiza as prioridades, hierarquiza as inteligências
e reproduz indefinidamente”. [15]
Os pólos da fórmula estética
de Rancière são, como ele costuma explicitar, o consenso
e a esquizofrenia [16]
. Na esquizofrenia, aquele que diz que é
melhor nada dizer, posto que o outro não o entenderia,
abre mão da política ao estabelecer uma relação hierárquica,
como se as palavras não pudessem afetar e participar
de uma mesma partilha. Enquanto no consenso, aquele
que tudo compreende do discurso do outro impossibilita
o que é absolutamente necessário à composição de um
campo democrático, a tensão, os buracos e vazios, entre
indivíduos falantes e diferentes. O movimento litigioso
da fala é assim atravessado por uma estética que mantém
a falta de medida e o excesso do outro na medida
de uma existência comum.
Tanto Rancière quanto
Deleuze percebem essa presença da palavra como um movimento
estético que, em si, pode se configurar como uma forma
de política, separada do discurso e dos embates propriamente
discursivos que dela possam sair. O litígio de que fala
Rancière, a fala como manifestação de uma separação,
configura, antes do embate discursivo, uma tomada do
espaço expressivo e sensível como dissenso político.
Tal ocupação do espaço parte do princípio da igualdade
e, nesse ponto, não há ambigüidade para Rancière: “Existe
a política por conta de uma só universal, a igualdade,
a qual tem a figura específica da injustiça, do dano”. [17]
Mas, voltemos por hora
a Deleuze, que, ao pensar um cinema político moderno,
deixou claro essa articulação: entre a política e a
estética e entre a política e um devir. A primeira característica
é parte da imagem-tempo como um todo. Rompem-se os vínculos
sensório-motores e a política não tem como ser pensada
dentro da organicidade que compunha um futuro como desdobramento
da ação. Esta noção de cinema político estava ligada
à imagem-movimento em que, como escreveu Deleuze: “Tudo
se passa como se o cinema nos dissesse: comigo, com
a imagem-movimento, vocês não podem escapar do choque
que desperta o pensador em vocês” [18] e, ironicamente, Deleuze
conclui: “Todos sabem que, se uma arte impusesse necessariamente
o choque ou a vibração, o mundo teria mudado há muito
tempo, e há muito tempo os homens pensariam” [19] . A segunda característica
se desdobra da primeira. Não só não há conexão e transformação
ideal entre presente e futuro, quanto não há povo pré-determinado
que o cinema possa levar a algum lugar. O povo falta.
Esta ausência do povo se configura como uma impossibilidade
de representá-lo. Uma impossibilidade de uma instância
exterior à matéria fílmica apontar para o povo e para
o seu futuro. Conhecemos os acontecimentos na imagem
que racham e introduzem vazios nessa representação;
o que acontece com o falso raccord (como corte
irracional), a imagem desencadeada e atonal de Godard,
a ruptura da unidade entre ator e personagem, a ruptura
dos monólogos interiores como unidade (Pasolini), a
constituição de séries, o off que tende a desaparecer,
as fronteiras entre o pessoal e o coletivo se dissolvem
etc. A imagem-tempo é assim parte de um projeto de desidentificação
do povo com ele mesmo. Fazer o povo faltar não é apenas
uma característica do povo que não se representa mais
nos nomes que lhe são atribuídos, mas um projeto estético
e político, produtor de uma crise identitária no povo
para que este possa constantemente se re-apresentar.
A criação perpétua da política e a invenção de um campo
democrático substituem, assim, o povo como um ator que
prevê o efeito de sua existência, o efeito de suas palavras.
O cinema político moderno, nesse sentido, seria a invenção
do povo como parte política e falante em um campo democrático
em que o próprio povo não está imune à conseqüência
de seu movimento.
Política e escândalo da democracia
A cena política não é
assim um lugar de acordos que organizam relações e poderes,
mas de irrupção de seres falantes, de línguas e entonações
em um universo que perde suas estruturas e seu caráter
policial de distribuição de lugares já dados,
para se haver com uma suspensão dos lugares que garantiam
a desigualdade. A política não está dada à priori, como
parte da natureza humana. As partilhas que se vêem estáveis,
onde não há mais o lugar de uma subjetividade excessiva,
que perturbe a partilha, são justamente os lugares em
que a política tende a desaparecer.
Esta igualdade na possibilidade
de ocupação dos espaços simbólicos é o escândalo
da democracia, segundo Rancière. A democracia é
propriamente a desconexão entre ordem civil e ordem
natural. Nenhuma ordem natural é anterior à democracia
- governo dos mais velhos ou sábios, por exemplo - esse
é o escândalo da democracia, uma ausência de legitimidade
natural que autorize o exercício do poder. A democracia
não está dada nem em uma forma de estado nem em uma
forma de sociedade, pela democracia a luta é infindável
e constante; poder de um povo, de uma singularidade
que não é particularmente legitimado por um sistema
de estado ou econômico; poder que excede, sem ter nenhuma
qualidade ética ou social particular; poder que refuta
uma representação adequada.
Seria isso então o que
podem essas imagens e sons pertencentes ao documentário
e que partem da criação de um espaço de interação, de
um espaço em que indivíduos e objetos estão expostos
às pressões uns dos outros? Ou seja, quando nos aproximamos
dessas obras, quais são os gestos e configurações que
tem a possibilidade de forjar essa dimensão política?
Até que ponto é possível pensar o documentário como
um espaço democrático, como espaço que apreende e fomenta
as mutações do sensível?
Jardim Nova Bahia
(1971)
Voltemos então aos filmes
que nos levaram a colocar essa possibilidade de pensarmos
o documentário como ator nessa reconfiguração do sensível
a partir da invenção de um campo democrático. Antes
de retomar o filme de Roberto Berliner, A pessoa
é para o que nasce, volto ao filme que se tornou
um caso clássico e que só recentemente tive a oportunidade
de ver no cinema [20] . Trata-se de Jardim Nova
Bahia, de Aluysio Raulino, discutido por Bernardet
em Cineastas e Imagens do Povo. Como sabemos,
Raulino entrega a câmera para seu personagem, um gesto
que, segundo Bernardet, “é provavelmente o ponto de
tensão máxima a que chega a problemática relação cineasta/outro
de classe”. [21]
Entretanto, o problema estava longe de ser
resolvido. Nem a palavra estava dada ao personagem,
nem a prática se tornaria uma forma de compartilhar
a linguagem entre realizadores e as pessoas presentes
no filme. Bernardet escreve que “mesmo quando ele filma,
o poder de decisão, bem como a posse da máquina, permanecem
nas mãos do cineasta. E contra isso o cineasta nada
pode fazer, pelo menos no que diz respeito a seu filme”.
[22]
Em relação a esta avaliação
de Bernardet, talvez duas observações. A primeira diz
respeito à transformação das tecnologias utilizadas
na época e as dos documentários contemporâneos – pelo
menos a maioria deles. O gesto de entregar a câmera
continua não se constituindo como uma forma efetiva
de se entregar a palavra ao outro ou de, com
esta passagem, resolver uma crise sujeito-cineasta,
como anuncia Bernardet. Entretanto, a intimidade e facilidade
que um indivíduo pode ter com uma câmera, mesmo sem
ser cineasta, vêm transformar de maneira definitiva
a relação deste com a técnica. O exemplo do filme de
Paulo Sacramento, fotografado pelo próprio Aluysio Raulino,
O Prisioneiro da Grade de Ferro (2004), é paradigmático.
Ao entregar a câmera para os presos, o filme, em diversos
momentos da montagem final, utiliza as imagens feitas
por Raulino e as feitas pelos presos de maneira indistinta.
A passagem aqui não é mais de um a outro, de “autorização”
para que a imagem fosse feita pelo outro. Estamos em
um campo mais complexo de compartilhamento e perda da
autoria. Não há, nesse caso, nenhum tipo de aposta que
esta entrega da câmera se configure como reveladora
do sujeito que produz a imagem.
O segundo ponto em relação ao filme de
Raulino diz respeito à forma como o compartilhamento
da câmera não é acompanhado do compartilhamento da palavra
e da angústia em filmar, ou do prazer em fazer suas
próprias imagens. Quando Raulino escreve, no final do
filme, que algumas imagens foram feitas por Destrudes
“sem qualquer interferência do realizador”, essa passagem
é difícil de ser levada ao pé da letra, mesmo como intenção
de Raulino. Ela precisa ser nuançada antes de falarmos
do fracasso da empreitada de Raulino. Primeiramente,
somos informados disso no final do filme, o que faz
com que tenhamos visto as imagens filmadas por Destrudes
sem saber que ali se tratavam de suas imagens. Esse
procedimento fragiliza a tentativa de conectarmos as
imagens feitas por Destrudes à sua afirmação enquanto
sujeito para além do filme. Em segundo lugar, a música
escolhida por Raulino, Strawberry Fields, dos
Beatles, certamente impõe a presença do autor a essas
imagens, mas isso não é feito sem a plena consciência
do realizador. Se há um compartilhamento nesse caso,
ele se dá justamente pela forma como Raulino explicita
sua presença com as imagens que, depois viemos saber,
são de Destrudes. Não vale a pena entrarmos em uma seara
mais interpretativa, mas vale lembrarmos a letra da
música de John Lennon e Paul McCartney escolhida por
Raulino: “Nada é real e nada para aprender. Viver é
fácil de olhos fechados, confundindo tudo que você vê.
Está se tornando difícil ser alguém, mas tudo dá certo,
não me importa muito”.
[23]
O problema colocado por
Bernardet neste filme é o que nos interessa. A presença
da câmera, das palavras e regras como forma de se estabelecer
ou não um campo de circulação discursivo que se configure
como lugar em que novas partilhas do sensível possam
se dar. O documentário se torna democrático quando ele
inventa formas para que um gesto ou um som intempestivo
possa surgir, mas, mais do que isso, que essas palavras
se tornem enunciados compartilháveis. Nesse sentido,
a presença da música de Raulino sobre aquelas imagens
torna-se muito mais um gesto de compartilhamento do
filme do que um fracasso, como escreveu Jean-Claude
Bernardet. Pensadas retroativamente, após sabermos que
aquelas imagens foram feitas por Destrudes e, evidentemente,
montadas por Raulino, podemos nos reportar à negociação
mesmo que as gerou; a passagem da câmera, as instruções,
o desejo de Destrudes em filmar os amigos etc. A música
sobre as imagens de Destrudes, único momento do filme
em que essa música aparece, se constitui menos como
uma recuperação do material “tosco” feita pela inabilidade
de Destrudes do que de pela vontade de Raulino em participar
daquelas imagens. Mais do que um gesto fracassado revelador
de uma crise do espaço documental, o filme de Raulino
me parece também bem sucedido nesta breve seqüência
em que Raulino e Destrudes inventam um olhar que escapa
a ambos.
O problema do compartilhamento
apontado por Bernardet não se desdobra ainda na reivindicação,
por parte do personagem, pelo seu lugar no “produto”
material e simbólico, como no filme de Berliner e outros.
No rastro do camaleão
(2007)
Um outro exemplo, mais
recente, é o documentário de Eric Laurence, No rastro
do camaleão. Por diversas vezes, ao longo de mais
de 30 anos, os Irmãos Aniceto, grupo de artistas/agricultores
da Paraíba, foram filmados [24] , como nos mostra o filme. Desde o início do documentário de Laurence
são privilegiados momentos em que os irmãos interpelam
os realizadores sobre o fato de eles serem “objetos”
de um produto comercial, que dá dinheiro para o cineasta
e não traz nada para eles. Os personagens expõem com
clareza a sensação de estarem sendo explorados no momento
mesmo em que o filme se faz.
Na segunda seqüência,
por exemplo, em meio a risadas e descontração, enquanto
se espera o café ficar pronto, um dos irmãos, em um
quadro que inclui o outro irmão, diz: “Fazer um filme...
nós não fazemos questão de fazer não. Nós temos feito
muitos e o pessoal se aproveita muito de nós. Ficam
ganhando dinheiro por aí. A gente sabe de tudo; um filme
é muito dinheiro pra fazer. Isso aí a gente entende,
o que é isso daí”. Depois dessa fala sem cortes, há
um corte seco que conecta o texto para a continuação
da negociação, não mais em torno da exploração, mas
de datas, tipo de filme etc. O irmão que apenas ouviu
essa primeira reivindicação intervém dizendo que o filme
já esta sendo feito; “é assim mesmo” – ele diz entendendo
que se trata de um registro documental.
Mas é sobre esse corte
que conecta os dois textos que quero me deter um momento.
Colocadas as imagens dos quatro filmes em que os irmãos
aparecem, seguidas de duas seqüências sobre ser filmado
e sobre a forma como “os filmes se aproveitam deles”,
constrói-se um comentário do filmado sobre os filmes,
sobre os cineastas e, por que não, sobre o cinema. Ao
fazer esse corte que liga o texto da reivindicação ao
outro mais simpático e ameno, o filme nos priva do acontecimento
que efetivamente interessa. E agora? Este filme é sobre
o fato de estes músicos serem filmados e eles dizem
que estão sendo explorados, e agora? Por enquanto o
filme não fala, nem falará até o final, mas, além disso,
nos priva do tempo em que aquela fala poderia fazer
efeito. O que se diz depois da reivindicação, como o
outro reage, como é o silêncio quando se explicita o
dano e a exploração - segundo o filmado -, tudo isso
desaparece e a reivindicação vira mais um texto que
se conecta com outro, mas não ecoa. Durante todo o filme
o registro continua o mesmo. As regras entre documentarista
e filmados não estão claras, pelo menos para os irmãos
Aniceto. Ou seja, o filme documenta um processo de negociação
em que apenas uma das partes aparece, retirando da negociação
o seu caráter conflitual.
Poderíamos então supor
que, se por um lado o filme constrói um espaço em que
a fala reivindicatória desses indivíduos pode aparecer,
se tornando o centro mesmo do documentário, por outro,
é o próprio filme que não se vê implicado. Em No
rastro do camaleão, a reivindicação corre o risco
de ser transformada em anedota, posto que ela não passa
a habitar o mesmo dizível dos realizadores: “eu te deixo
falar, mas não te escuto”. Se o documentário clássico
e expositivo trabalha na formação de dois pólos, o ligado
ao saber e à ciência que ensinava àquele que ignorava,
neste exemplo podemos perceber uma inversão de pólos.
O documentário se torna passivo e o filme não se estabelece
como um encontro de inteligências que formam um comum.
Mato Eles?
(1982)
Em
Mato Eles?, de Sérgio Bianchi,
para voltarmos a um exemplo clássico antes de retomarmos
o filme de Berliner, o dissenso ecoa e contamina o próprio
filme. Em um certo momento do filme, um índio, já de
mais idade, pergunta ao realizador: “E o senhor, quanto
está ganhando para fazer esse filme?” O realizador no
momento não responde, mas logo depois, nos créditos,
aparece em off dizendo algo como: “Você quer
se dar bem em cima deles? Monta uma loja de produtos
indígenas, fotografa ou faz um filme”. A fala irônica
de Bianchi reinsere a fala do índio em um mesmo espaço
de tensão. Não se trata de dar razão ao índio, mas de
fazer aquelas palavras ecoarem, serem percebidas, impossibilitando
que o filme continue a existir como se ele próprio não
existisse.
A escritura democrática,
aquela que se faz a partir do encontro mesmo com a palavra
do índio, não se dá no momento da filmagem, mas no processo
de montagem. A resposta de Bianchi não é direta e imediata,
mas parte de um trabalho. Trabalho propriamente político,
temporalmente longo. A invenção do espaço democrático
ali é propriamente coletiva - entre Bianchi e o índio
- e estendida no tempo, parte da elaboração do cineasta
com o outro.
Mas não nos enganemos,
a democracia não aparece como uma universal, um lugar
de julgamento absoluto, de maneira alguma. Ela só pode
ser vislumbrada na imanência, nos raros momentos em
que ela aparece. Só nos discursos autoritários a “democracia”
encontra consenso e deixa de existir. Quando tudo é
democracia, nada o é, já havia entendido o nosso amigo
naquele final de noite.
Na passagem que ela opera
nas formas de organização dos lugares, dos que ganham
direito de dizer e sentir em uma certa ordem, a democracia
destes encontros com as imagens traz para a própria
imagem uma crença, coloca a imagem como parte de uma
operação que a extrapola. Imagem nem consensual, que
aceita o mundo tal qual ele se apresenta, nem niilista,
que nega toda sua possibilidade de participar desse
campo democrático.
O paradoxo da biopolítica
Trazer essas noções de
democracia para o universo dos documentários é um gesto
arriscado. Entretanto, os problemas que a presença ou
ausência da democracia colocam estão diretamente ligados
à construção de uma cena em que uma relação entre indivíduos,
instituições, tecnologias e capturas das potências vitais
se dá. A construção de um documentário depende, intensamente,
desta cena, depende da presença desses indivíduos e
das formas como cada um dos pontos e atores desta cena
se relaciona com os outros pontos e atores, dos modos
de sociabilidade, da presença da palavra e da escuta,
das formas de associação e ruptura. A democracia pode
assim indicar formas de privilegiar certos gestos em
detrimento de outros, neste paradoxo próprio à forma
como a vida é o que alimenta e resiste aos poderes.
Ou seja, as potências subjetivas não cabem nas ordens
institucionais e políticas - lembremos que a democracia
não é um sistema político, nem um regime de representação.
Antes, o que perturba tenciona a representação e a política.
O capitalismo se nutre
da vida na medida em que se coloca como medida para
o sem medida - as potências mesmo dos indivíduos. A
democracia é o que mantém o dissenso e a possibilidade
de novos atores intempestivos adentrarem as brechas
das partilhas que o capitalismo tende a organizar, restringindo
o acesso ao que é comum (saberes, artes, inteligência,
afetos) e interrompendo os processos subjetivos quando
o excesso da própria vida pode ser capitalizado. [25] Os irmãos Aniceto sabem disso.
A pessoa é para o
que nasce
Voltemos então ao nosso
ponto de partida, o filme A pessoa é para o que nasce
de Roberto Berliner.
O filme começa com uma
apresentação clássica das três irmãs em que cada uma
diz onde nasceu, nome e apelido. Logo depois as vemos
na rua cantando. O plano começa no alto de um prédio
e somos assim apresentados ao trabalho e ao que as singulariza:
a música e a cegueira. A terceira seqüência mostra imagens
de arquivo de dois momentos. O primeiro, em que vemos
as três cantoras, ainda muito jovens, no ano de 1966
em
Campina Grande, filmadas por Geraldo
Sarno em preto e branco; depois, no filme As Cegas,
de Maria Antonia Pereira, em uma seqüência em que elas
continuam um histórico pessoal, relatando dificuldades,
esmolas e a forma como existia uma exploração no interior
mesmo da família: “Trabalhava o feio pro bonito comer”.
A continuidade entre os dois tempos, do arquivo e de
hoje, é enfatizada pelo corte do passado para o presente
da narrativa com a mesma música sendo cantada pelas
três. Tão importante quanto o que descobrimos sobre
elas nessa época é o fato de elas já estarem sendo documentadas.
Em uma segunda seqüência
com imagens de arquivo, voltamos a 1991. As três cantoras
são filmadas e entrevistadas por Regina Casé para o
Programa Legal, da Rede Globo. Na narrativa do
filme esta seqüência serve para apresentar o ex-marido
de Maroca, mas, com essa breve seqüência, descobrimos
que não só existem imagens de arquivo das três como
elas foram filmadas pela Globo e estiveram em horário
nobre.
É com vinte minutos de
filme que ouvimos pela primeira vez a voz de Berliner.
O filme continua interessado pela narrativa da vida
delas e Maroca conta o grande amor que teve.
- “Durante dois anos e oito meses ele
não tocou em mim”
- “Não tocou?”, pergunta Berliner, indignado
e percebendo o choque entre o amor e a falta de toque.
- “Pra bater em mim não!”, responde Maroca.
- “Ah sim…”
Se o realizador já se
fazia bastante presente nas opções estéticas, nesse
momento ele fez questão de entender com clareza o que
elas desejam dizer. Maroca abandona sua narrativa pessoal
para falar do lugar dela, de mulher, de adulta.
- “Ele tá pensando que está conversando
com criança!”, diz ela, depois de saber que passou
pela cabeça de Berliner que durante 2 anos e oito
meses de relação ela e o marido poderiam não ter se
tocado eroticamente.
A indignação de Berliner
desvia o filme de um olhar sobre elas para trazer a
negociação entre eles. A fala de Maroca abre um espaço
para ela e para as irmãs no filme. Um campo em que a
palavra dela se torna propriamente uma forma de afetar
o filme e afetar o modo como a narrativa se desdobrará.
Graças à espontaneidade e ingenuidade de Berliner, a
personagem se coloca ali de igual para igual, compartilhando
o mesmo universo do realizador, o mesmo lugar de fala
em que o sexo e o desejo não estão excluídos.
A presença do filme,
da mídia, a consciência de estarem sendo filmadas e
de estarem participando de uma mise en scène
é constante. “A comida não é sempre assim não, é pro
filme”, dizem na hora do almoço. Mas é com um anúncio
no rádio que o filme é obrigado a incorporar a sua própria
presença de maneira definitiva, não só no discurso como
na sua própria estética. “Cega está sendo estrela de
cinema” diz o radialista.
“Estrela de cinema tem
muito valor, né? E eu pensei que eu não tinha esse valor”,
diz Maroca, em uma seqüência em que leva a câmera à
mão, filmando o próprio rosto. O interesse a partir
desse momento se desloca delas para o filme e essa passagem
da câmera é muito mais metafórica do que enunciativa.
O filme e seu próprio efeito passam ao primeiro plano:
- “Roberto, quem deu essa idéia de você
fazer um filme? Foi você mesmo ou foi o pessoal lá
do Rio?”, perguntam elas.
- “Porque você está perguntado isso?”,
retruca o realizador.
- “Porque eu já vi muita agente dizer
isso: “Esse povo tá fazendo isso pra pegar as fitas
pra vender e ganhar dinheiro para eles…será que eles
vão dar alguma coisa pra vocês? Eu disse: eu não estou
trabalhando pra eles. Se eles quiserem dar, a boa
vontade é deles. Só que eu não estou trabalhando com
eles não é por interesse, é pra ficar conhecida”.
A resposta do filme é
certeira. Corte para um movimento de câmera que nos
leva até um contra-plongé das três irmãs no alto
de um morro, com o céu denso ao fundo em uma música
triunfal, fade-out e uma cartela: “dois anos
depois”. Diante do outro, da presença das três irmãs
com suas palavras sendo ouvidas pelo filme, não houve
filme possível que não fosse, também, sobre ele próprio.
Biopolítica e Democracia
Ainda no início dos anos
70 Foucault escreve: “ O controle da sociedade sobre
os indivíduos não se efetua somente pela consciência
ou pela ideologia, mas também no corpo e com o corpo.
Para a sociedade capitalista é a biopolítica que interessa,
antes de tudo, a biologia, o somático, o corporal”.
[26] Estas aproximações
entre o capital, o poder e a vida permitirão Foucault
apresentar o poder não mais centrado em uma ordem negativa
e destrutiva, “você não pode isso ou aquilo”, para ganhar
uma dimensão produtiva, que irá interessar aos pesquisadores
que retomam a noção de biopolítica hoje. O poder não
é o que impede (somente) de fazer, mas o que estimula
a fazer e, sobretudo, a ser. À diferença da era disciplinar,
as produções subjetivas não são sobras, mas a essência
mesmo do que nutre o capitalismo contemporâneo e na
qual repousa todo seu esforço de captura. Neste esforço,
são as individuações que transitam constantemente entre
a fragmentação utilitária e a singularidade incapturável.
Estas duas dimensões da biopolítica convivem na mesma
prática.
Por um lado, há a necessidade
da constante adaptabilidade das vidas para as novas
tarefas e novos consumos, e, por outro, não é o molde
que possibilitará que a criação subjetiva exista e seja
logo capturada pelo poder. A biopolítica acompanha assim
o nascimento de uma política e de uma forma de controle
e poder que é modular. Ou seja, a biopolítica é a forma
de Foucault expressar uma nova relação entre os indivíduos
e suas existências na polis, em que está em jogo
a possibilidade do poder capturar algo – potências,
saberes, afetos, estéticas - que não provêm dele. O
biopoder atua controlando os lugares de uma partilha
do sensível sem estabelecer quais lugares estão disponíveis
nem que sentidos são dados a existir antes da invenção
mesmo desses lugares e afetos, que partem das vidas
e dos corpos que inventam uma comunidade. Algo muito
distinto do panóptico ou da linha de montagem, é claro,
em que a cena era armada pelo poder e habitada pelos
corpos. Em um ambiente pós-disciplinar, é a partir da
liberdade da cena que o poder opera. Nesse sentido,
o biopoder é o corte que imobiliza uma potência, mas
depende dela. Ou seja, se a vida é o objeto do poder
em forma de um biopoder, é justamente ao inserir a política
nesta relação entre potência e captura que a vida pode
se tornar inseparável do dissenso que constitui a própria
política. Biopolítica é assim o nome que podemos dar
ao limite e ao excesso que a vida impõe às formas de
captura que o capital forja das potências vitais.
Mas entendo que a biopolítica não é uma
forma autômata do contemporâneo, ou seja, não exclui
a resistência como forma de se relacionar com o biopoder
- e esta resistência é propriamente uma ação democrática.
Se o paradoxo da resistência é explicito em relação
à maneira de o capitalismo operar, capturando os mesmo
processos de individuação que inventam formas singulares
de ser, a democracia e, consequentemente a política,
precisa ser estancada pelo capitalismo no momento em
que se cristalizam as identidades. Se podemos falar
em resistência é, justamente, de uma resistência da
democracia, contra a polícia, imanente e não-dialética.
O poder se ocupa da vida e a vida é em si poder, diria
Negri, mas não basta viver, eu acrescentaria.
[27] Nesta relação
não-dicotômica entre o poder e a resistência se encontram
os processos de individuação que operam em micro-enfrentamentos,
sem começo nem fim, necessariamente coletivos e atravessados
por uma escritura, como temos visto nos filmes que analisamos.
O paradoxo deve então ser mantido. A comunicação e as
trocas entre documentário e vida residem nas formas
de contaminação entre um e outro e nas maneiras em que
se efetuam “esgarçamentos do tecido social”. [28]
A última seqüência de
A pessoa é para o que nasce marca um ponto decisivo
de inflexão na tradição documental. Em uma espetacular
praia nordestina, na Paraíba provavelmente, as três
irmãs se despem e tomam um banho de mar completamente
nuas. Esta seqüência difícil pode ser facilmente pensada
como uma forma de “espetacularização”, de super-exposição,
como se de alguma forma o filme aqui se avizinhasse
das formas mais corriqueiras que entrelaçam o espetáculo
à vigilância, com um agravante não desprezível: trata-se
de mulheres cegas. Esta proximidade com as formas mais
reles de exposição e funcionalização dos corpos colocam
o filme de Berliner em um limite do documentário que
se explicita na maneira como o realizador força o limite
do humanismo, do olhar distanciado, da vitimização.
Todas essas práticas contemporâneas que excluem a política
encontram nesta última seqüência um forte oponente.
Desfuncionalizado, o corpo aparece como tal, não serve
ao voyeur nem ao mercado, não é erotizado para ser consumido,
nem é o corpo da vítima descontextualizada, é apenas
corpo; não se trata do corpo forte, ativo, vigoroso
e fundado na ação, mas do corpo marcado, inscrição do
vivido, o corpo como “comunicação de um comunicável”,
nas palavras de Agamben sobre o gesto.
Neste filme, o olhar
do realizador transita entre o singular - o que é “eles
mesmos”, como falou Guattari em 1970 - e um outro estar
junto, afetado pela singularidade. Em um mesmo gesto
se demarca a singularidade e se joga ela em uma hiperpresença
do entorno - o filme, o Rio de Janeiro, a câmera, a
mídia etc. Refaz-se um campo em que o singular não estanca
em um campo identitário. Ou seja, a singularidade só
é potente se opera em um campo democrático, se afeta
e é afetada. Estamos no cerne da biopolítica contemporânea,
em que os processos de modulação dos corpos e das subjetividades
são habitados por forças que estão constantemente aumentando
e diminuindo as potências de transformação e invenção
desse processo. Essas potências da própria vida e de
seus modos de ser interessam ao capitalismo, claro.
O papel da democracia, também ela interessada nessas
potências, é manter a instabilidade do processo. Por
um lado, o capitalismo diz: seja você e singularmente
você. Mas essa singularidade só existe se ela for um
“problema” político, se ela for um operador do sensível.
Assim, a democracia é a forma de manter a potência do
singular como participante das tensões políticas.
Enfim…
Só uma instância que
se quer exterior aos embates dissensuais pode dizer
que “tudo é democracia”. A ironia do nosso amigo nos
deixou claro que, pela democracia, há uma luta constante,
já que de outra maneira acreditaríamos que tudo é democracia
e calados permaneceríamos, sem palavras, sem imagens.
Aproximar o que potencializa o capitalismo - a vida
- da política - forma de ocupar a polis - é o
que pode a democracia, é tarefa do documentário.
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“Si la première phase da la revolution
industriel a été celle qui consistait a transformé
les individues en robot, en automate, avec la parcialization
du geste de travail. Maitenant, de plus en plus, dans
le sein même de l’évolution de forces productives
est possé le probleme de la singularité, de l’imagination,
de l’invention. De plus en plus, ce que será demandé
aux individues dans la production c’est d’être eux
même.” (Les Vendredi de la Philosophie. Emissão radiofônica. France Culture, Arquivo INA - 26/04/1970
- livre tradução).
Algumas observações sobre essa noção
a partir do artigo de Comolli de 1999, “Au non
de personne”
In: Voir et Pouvoir. A partir desse artigo
podemos visualizar que o direito à imagem implica
uma percepção do valor da imagem para além da vida
como valor. Essa percepção opera da seguinte forma.
Só é possível reivindicar um direito de imagem se
aquele que está no filme se separa da imagem mesmo.
Ou seja, o direito de imagem pressupõe o desaparecimento
do filme. Como se a imagem não fosse fruto de um agenciamento
coletivo, de uma escritura com múltiplos atores, mas
uma relação direta entre o aparato e o indivíduo filmado,
o que produzirá uma imagem explorável. Comolli parece
neste artigo mobilizado por casos em que após o filme
feito os personagens recorrem aos tribunais para pedir
seus “direitos”; é o caso de Giscard d’Estaing no
filme 50,81% (1974) de Depardon, que tenta
proibir a exibição do filme – citado por Comolli –
e, mais recentemente, o filme de Ser e Ter
(Être et Avoir) (2002), de Nicolas Philibert. Comolli
pensa esse pedido também como uma questão propriamente
temporal. O desejo que move essas pessoas aos tribunais,
indo até ao impedimento do filme, é um desejo de voltar
a um estado anterior ao filme, como se ao serem filmados
eles perdessem algo. Nesse sentido, no mesmo artigo,
Comolli nos lembra que o direito à imagem é também
o direito ao som, às próprias palavras. E essas são
sempre mais ou menos o que se deseja que elas sejam.
A reivindicação do direito à imagem não está assim
desligado de um desejo de pureza identitária, de fechamento
e concentração sobre si.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do
sensível: Estética e Política. São Paulo: Editora
34, 2005, p.14
NOGUEZ, Dominique. Le cinéma, autrement.
Paris: Les Éditions du Cerf, 1987, p. 51
“L’ensemble des processus par lequeles
s’opèrent l’agrégation et le consentement des collectivités,
l’organisation des pouvoirs, la distribuition des
places et fonctions et les systèmes de ces légitimation”. RANCIERE,
Jacques. La Mésentente :
Politique et philosophie. Paris: Galilée, 1995.
p. 51
“La politique est l’exhibition d’une
médialité, le rendre visible, un moyen en tant que
tel. Ce n’est ni la sphère d’une fin en soi, ni des
moyens subordonnés à une fin, mais une médialité pure
et sans fin comme champ de l’agir et de la pensée
humaine.” AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins: Notes
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2004, p. 129
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“Il y a de la politique en raison d’une seule universel,
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tort”. RANCIÉRE. La Mésentente, p. 64
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BERNARDET.
Cineastas e Imagens do Povo, 137.
Strawberry Fields (John Lennon/Paul
McCartney): “Let me take you down, 'cos I'm going
to Strawberry Fields/ Nothing is real, and nothing
to get hang about/ Strawberry Fields forever/ Living
is easy with eyes closed, misunderstanding all you
see/ It's getting hard to be someone but it all works
out, it doesn't matter much to me/ Let
me take you down, 'cos I'm going to Strawberry Fields/
Nothing is real, and nothing to get hungabout/ Strawberry
Fields forever”.
Zabumba (1974) de Zelito Viana;
Dona Ciça do Barro Cru (1979) de Jefferson
Albuquerque Jr.; O caldeirão de Santa cruz do Deserto
(1986) de Rosemberg Cariri; Corisco e Dadá
(1986) de Rosemberg Cariri.
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