Revista Cinética Cultura e Pensamento

Igualdade Dissensual:
Democracia e biopolítica no documentário contemporâneo

Cezar Migliorin Ensaios Críticos

Os pratos já se acumulavam sobre a mesa enquanto discutíamos algum assunto político em pauta no momento, Hugo Chavez, Lula, Sarkozy, escolas, hospitais ou ainda os filmes do Frederick Wiseman, não me lembro mais. Acho que fui eu mesmo que em uma afirmação ingênua, comentei que todos eles, por algum motivo, se diziam democráticos –, nem sei mais o porquê ou quem. De bate pronto, o André Brasil, que até ali permanecia mais calado, disse:

- Tudo é democracia!

Éramos umas 10 pessoas que diante de tal afirmação fizemos o silêncio necessário para todos pensarem em ir ao banheiro ou para casa. Uma artista marroquina que jantava conosco finalmente disse: Hoje, tudo é democracia?

O absurdo e a verdade, contidos naquela frase tão precisa, me mobilizaram. Como assim tudo é democracia? De maneira precisa e irônica aquela frase levava a tudo uma dúvida sobre a existência da democracia. É impossível que tudo seja democracia, entretanto, nada se diz não-democrático. A democracia é assim aceita como princípio geral, valor universal, desejo coletivo, mas a afirmação de que tudo é democracia, ao mesmo tempo em que reflete um estado das coisas, causa grande estranhamento.

Facilmente poderíamos apontar para um sem número de lugares e processos em que a democracia falta. Parecia-me claro que a frase comportava essas duas dimensões da democracia; presença e ausência. Por um lado, o discurso da democracia é o que funda a opinião, a homogeneidade que rechaça a diferença. Por outro lado, e é esse o sentido que me interessa, a democracia é um estar junto instável, sem que a diferença possa ser apagada. Nela residem as potências do mundo. Mas, a democracia como embate, tensão e dissenso, não é simples, requer um risco, um excesso, uma luta, uma igualdade dissensual.

A pessoa é para o que nasce (2003)

“O pessoal lá da igreja disse: esse povo tá fazendo isso pra pegar as fitas pra vender e ganhar dinheiro para eles… será que eles vão dar alguma coisa pra vocês?”, diz Maroca, uma das três cegas cantoras, personagens principais do filme A pessoa é para o que nasce, de Roberto Berliner. Elas trazem para o filme a tensão que existe na imagem documental hoje. Por um lado, o filme é movido pela diferença que se materializa naquelas três mulheres, pela singularidade nos seus modos de vida e pela forma como elas dão a ver um mundo que vai de Campina Grande, na Paraíba, ao palco com Gilberto Gil. Berliner e sua equipe saem do Rio de Janeiro muitas vezes e entram em um mundo que não é o deles, tendo essas três senhoras como guias, como forma de acesso. Elas são o centro do filme e ao mesmo tempo o que mobiliza o deslocamento, geográfico e subjetivo, do filme e do espectador. Por outro lado, o filme é recheado por uma percepção, por parte delas, que pode ser resumida em algo como: nossos modos de vida têm valor, econômico e simbólico. Econômico, claro, porque o filme vai ser vendido, como diz Maroca, e simbólico porque estar perto delas, ouvir sobre suas vidas é, em si, uma forma de transformação subjetiva de todos, dos realizadores e, talvez, dos espectadores.

Em 1970, durante uma entrevista, Felix Guattari já explicitava a transformação da relação entre vida e capital que se tornaria a base para todo pensamento em torno do filósofo Antonio Negri e para a revitalização da biopolítica como forma de resistência paradoxal. As palavras de Guattari: “a primeira fase da revolução industrial consistia em transformar os indivíduos em robôs, em autômatos, com a fragmentação do gesto do trabalho [1] . Agora, cada vez mais, no seio mesmo da evolução das forças produtivas, está colocado o problema das singularidades, da imaginação, da invenção. Cada vez mais, o que será demandado aos indivíduos na produção é que eles sejam eles mesmos”. [2]

Diversas imagens contemporâneas, muitas delas ligadas ao campo do documentário, se encontram atravessadas por esse dilema. A noção de direto de imagem é apenas parte desta percepção de que a imagem e a vida têm valor. [3] Se boa parte do documentário sempre encontrou sua potência na forma como dava a ver o singular, como documentava formas de vida e estéticas marginalizadas, seria ele afetado pelo capitalismo contemporâneo que leva ao limite a singularização dos desejos e formas de vida, se abstendo em disciplinar corpos e mentes para atuar nas possíveis capturas da vida e dos modos de ser? É esta ampla questão que atravessa esse artigo.

Partilha do sensível

Os indivíduos circulam por mundos em que lhes é permitido e possível sentir e dizer determinadas coisas, de determinadas maneiras. Essas possibilidades são coletivas; habitadas, construídas e deslocadas por indivíduos singulares. Ao mesmo tempo, não são todos os indivíduos que ocupam o mesmo lugar nesta ordem do que é dado a sentir e dizer. Em um mesmo universo, as mesmas linhas que traçam um comum definem lugares exclusivos. Estas divisões são o que o Jacques Rancière chama de uma partilha do sensível, um esquadrinhamento da circulação do que é dado a dizer, a ouvir e sentir. Em uma partilha é possível apontar os que têm direito à fala e quais as possibilidades do sensível dentro dessa partilha. Ao mesmo tempo, no seu interior, aparecem os indivíduos e grupos que operam deslocamentos no que é possível ver, dizer e sentir, ou seja, uma atividade rara, mas propriamente política.

Para Rancière, toda atividade política é um conflito para dizer o que é palavra e o que é grito, o que é parte de um comum e o que pode ser apenas separado dele. Recortes que constituem a própria dimensão estética da política.

[Um] recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do grito que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem a competência para dizer sobre o que é visto, de quem têm competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo [4] .

Esta composição entre visibilidades e dizíveis é o que produz a política como cena para Rancière, tendo o teatro como modelo. O crítico e cineasta francês Jean-Louis Comolli, ao pensar as subjetivações e o universo do documentário, faz uso de uma metáfora teatral também. Para Comolli, os indivíduos estão constantemente passando de uma mise en scène a uma outra. Articulando várias mise en scène ele constitui a sua própria. “Filmar o outro é confrontar a minha mise en scène com a do outro”, escreveu Comolli.[5] Comolli expõe assim uma percepção do documentário como espaço conflitual. Neste mesmo texto, Comolli se aproxima ainda mais dessa noção da política como constituição de uma cena. Para ele, o cinema que não está sob o risco do real, limpo e livre dos acidentes, faz-se com menos corpo e menos real, se protege da cena, o que implica seu próprio desaparecimento. Se a co-presença dos elementos que compõe uma cena não é necessária e, pelo contrário, deve ser domada, é a cena que se torna inútil. A retirada, nesse caso, é da política mesmo.

Esta percepção estética da política transfere para a linguagem os princípios que organizam as noções de justiça e democracia. Não se trata de, partir de um ideal de direitos dos indivíduos, sempre absoluto e facilmente alienável da prática, pensar a justiça como o que garante uma igualdade entre eles, mas operar na imanência de como o poder se exerce, na distribuição do que pode ser reivindicado por cada grupo e na possibilidade de uma determinada fala ou gesto poder operar um comum, deixando de ser ruído para circular sem fim definido, mas com a potência de reconfigurar o espaço, o tempo, a memória. Esta é uma das dimensões políticas das imagens, uma vez que elas se apresentam como maneiras de fazer, dizer e sentir que têm a potência de reconfigurar as formas de visibilidade e sensibilidade.

Mas até que ponto é possível pensar o documentário como um espaço democrático? Porque convocar essa noção para pensar os lugares do filme, do espectador e dos indivíduos filmados? O problema não é novo; toda discussão em torno da possibilidade do documentário “dar voz ao outro” passa por esse problema da palavra, do poder e do compartilhamento de um espaço físico e simbólico.

A palavra e a distribuição dos lugares

Se entendermos então que uma partilha do sensível é esta distribuição de lugares em que a circulação da palavra e do sensível encontra passagens e barreiras, trocas e surdez, ela não pode ser confundida com o direito à fala. Ou seja, quando um indivíduo ou um grupo tem direito à fala, este direito não implica ainda a presença desta fala em um espaço comum, não implica que ela opere necessariamente uma escuta. O jornalismo, tanto impresso como eletrônico, por exemplo, é recheado por falas de excluídos que não chegam a se concretizar como uma forma de reconfiguração de uma partilha. Pelo contrário, as imagens de dor ou o choro dos pais que perderam o filho em um deslizamento normalmente são as imagens e sons que reafirmam a separação, reafirmam a partilha vigente. Nesses casos, a imagem reafirma o não-pertencimento daquele que sofre ao universo daquele que produz a imagem ou ao mundo do espectador. O que sofre é isolado pelo sentimento de injustiça que rapidamente se converte em uma acusação: se o barraco caiu é problema do estado, logo, não é parte do meu mundo, posso ir para a próxima imagem, para o próximo ruído. Nesses casos, a existência de uma palavra ou de uma imagem do outro não reconfiguram a experiência sensível.

Assim, a política não é necessariamente presente uma vez que o indivíduo tem a fala. Não é por falar que o homem se torna um animal político. A palavra não garante o logos, “uma inscrição simbólica na cité”. Esta distinção é reveladora da política como construção e escritura, ao mesmo tempo em que não nos permite resumir a política ou as imagens com que trabalhamos ao freqüente discurso: “tudo é política”. Dominique Noguez, por exemplo, ao tratar da dimensão política do cinema, se baseia em Aristóteles para afirmar que todo filme é político posto que “o homem é um animal político”. “Até mesmo a recusa da política é, ela mesma, direta ou indiretamente política” [6] , escreveu Noguez. Se seguirmos com Rancière, o que normalmente se chama de política ele chamará de polícia: “o conjunto dos processos nos quais se operam a agregação e os consentimentos das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e funções e os sistemas de legitimação” [7] . A polícia se configura assim como a instância enunciativa que se separa da tensão da qual a imagem surge. A polícia, para Rancière, não é uma instituição, mas um princípio de partilha do sensível que, entre outros recortes, delimita a elite; aqueles que falam e são ouvidos sem necessidade de legitimar o que dizem, ou seja, a legitimação é a própria forma com que ocupam o espaço.

No campo do documentário, por exemplo, a polícia pode ser exercida pela voz off em forma de uma voz absoluta, que, como sabemos, teve forte presença no documentário clássico, sobretudo àquele ligado à escola inglesa tendo John Grierson, nos anos 30, como líder do grupo e inventor do recurso. Onipresente e Onisciente, a voz off era propriamente a distribuidora dos lugares dos indivíduos e grupos, organizadora da partilha. A presença da polícia hoje está distribuída de maneiras as mais diversas nas produções de imagens. Os reality shows configuram o exemplo mais bem acabado desse novo estatuto dessa instância organizadora exterior que funciona como polícia. Diferentemente da voz off, a polícia em um reality show não precisa nem habitar a imagem. As palavras das pessoas filmadas, esse participante/objeto, são sempre direcionadas a esses operadores do jogo em que o espectador é transformado em juiz (Comolli).

Podemos então dizer que a política é antes a possibilidade de reordenar o que está dado a sentir e dizer por sujeitos quaisquer, do que propriamente os discursos feitos pelos indivíduos e grupos que operam estas reconfigurações. A política assim pode ser pensada como o que acontece sem um fim predeterminado, anterior a um objetivo. Antes de ser uma informação, ou uma comunicação, ela é uma operação de esquadrinhamento do espaço e do tempo. Aproximamos-nos assim de Agamben, no sentido que entendemos que é próprio à política a invenção de meios que são o próprio fim; como Agamben explicita nesta passagem de seu artigo, Notas sobre a política: “A política é a exibição de uma mediação, o tornar visível, um meio enquanto tal. Não é nem o quadro de um fim em si, nem de meios subordinados a um fim, mas uma medição pura e sem fim, como campo do agir e do pensamento humano”. [8]

Palavra e política, um movimento litigioso

A palavra habita assim a cena política como produtora de um dissenso, trazendo para esta cena a possibilidade de irrupção de atores intempestivos, não roteirizados, que adentram a política sem serem chamados, em um esforço de linguagem que rompe a estabilidade dos conflitos pré-existentes. Nesse sentido, a política é absolutamente distinta da denúncia da injustiça, lição cara ao documentário que, frequentemente, ao se concentrar na denúncia de uma injustiça, abdica da própria possibilidade de fazer política.

No final do capítulo Cinema, corpo e cérebro, do livro A Imagem-Tempo, Deleuze explora a célebre formulação de que o povo falta e que a política não se faz com um povo passado, mas “com a fabulação de um povo por vir” [9] e acrescenta: “é preciso que o ato de fala se crie como uma língua estrangeira em uma língua dominante, precisamente para exprimir uma impossibilidade de viver sob a dominação” [10] . A noção de uma língua estrangeira não é desenvolvida aqui, mas encontra eco quando Deleuze, citando Proust, diz: “As obras-primas são sempre escritas em uma espécie de língua estrangeira” [11]  e também no livro com Guattari sobre Kafka.

O que primeiramente interessa nessa noção é que quando Deleuze fala de uma língua estrangeira, essa língua é uma diferença que racha a língua dominante. Não se trata assim de reivindicar um lugar - contra a dominação - no interior da língua dominante. A reivindicação é assim uma estética que parte da igualdade. Não há uma hierarquização dessas línguas nem uma tentativa de falar e de se fazer ouvir na língua dominante, mas tornar a língua dominante a opressão em si. A língua como o que divide e determina os lugares. A língua estrangeira aparece então, por um lado, como o que desestabiliza as partilhas da língua dominante e, por outro, como o que funda novos lugares para os atores que atuam nessa nova língua. É ainda com a noção de fabulação nesse capítulo que Deleuze se distância de um embate dialético entre duas falas. Pela fabulação há, por um lado, a desestabilização da língua dominante, que, em si, exclui e, por outro lado, ela torna o ato de fala um enunciado coletivo que impossibilita a manutenção da exclusão daquele que fala.

Possuir a sua língua aparece assim como um gesto político, forma de produzir uma igualdade dissensual. Um gesto que não se desdobra no isolamento de uma comunidade de falantes de uma mesma língua comum, mas que, ao falá-la, encontra meios para uma enunciação não subordinada e necessária. Enquanto a literatura dominante faz cada caso individual se conectar a outros casos individuais, em uma literatura menor, “cada caso individual é imediatamente ligado à política” [12] . Nas palavras de Deleuze e Guattari: “Não há sujeito, mas sujeitos coletivos de enunciação” [13] . O caráter político passa pela virtualidade dessa presença que desestabiliza a língua dominante no mesmo gesto que forja meios “de uma outra sensibilidade” [14] ,  no momento em que seus enunciados se tornam coletivos. Deleuze parece estar assim próximo de Rancière na medida em que é na estética que a igualdade é reivindicada como o princípio. Como escreveu Rancière: “Quem parte da desigualdade e se propõe a reduzi-la, hierarquiza as desigualdades, hierarquiza as prioridades, hierarquiza as inteligências e reproduz indefinidamente”. [15]

Os pólos da fórmula estética de Rancière são, como ele costuma explicitar, o consenso e a esquizofrenia [16] . Na esquizofrenia, aquele que diz que é melhor nada dizer, posto que o outro não o entenderia, abre mão da política ao estabelecer uma relação hierárquica, como se as palavras não pudessem afetar e participar de uma mesma partilha. Enquanto no consenso, aquele que tudo compreende do discurso do outro impossibilita o que é absolutamente necessário à composição de um campo democrático, a tensão, os buracos e vazios, entre indivíduos falantes e diferentes. O movimento litigioso da fala é assim atravessado por uma estética que mantém a falta de medida e o excesso do outro na medida de uma existência comum.

Tanto Rancière quanto Deleuze percebem essa presença da palavra como um movimento estético que, em si, pode se configurar como uma forma de política, separada do discurso e dos embates propriamente discursivos que dela possam sair. O litígio de que fala Rancière, a fala como manifestação de uma separação, configura, antes do embate discursivo, uma tomada do espaço expressivo e sensível como dissenso político. Tal ocupação do espaço parte do princípio da igualdade e, nesse ponto, não há ambigüidade para Rancière: “Existe a política por conta de uma só universal, a igualdade, a qual tem a figura específica da injustiça, do dano”. [17]

Mas, voltemos por hora a Deleuze, que, ao pensar um cinema político moderno, deixou claro essa articulação: entre a política e a estética e entre a política e um devir. A primeira característica é parte da imagem-tempo como um todo. Rompem-se os vínculos sensório-motores e a política não tem como ser pensada dentro da organicidade que compunha um futuro como desdobramento da ação. Esta noção de cinema político estava ligada à imagem-movimento em que, como escreveu Deleuze: “Tudo se passa como se o cinema nos dissesse: comigo, com a imagem-movimento, vocês não podem escapar do choque que desperta o pensador em vocês” [18] e, ironicamente, Deleuze conclui: “Todos sabem que, se uma arte impusesse necessariamente o choque ou a vibração, o mundo teria mudado há muito tempo, e há muito tempo os homens pensariam” [19] . A segunda característica se desdobra da primeira. Não só não há conexão e transformação ideal entre presente e futuro, quanto não há povo pré-determinado que o cinema possa levar a algum lugar. O povo falta. Esta ausência do povo se configura como uma impossibilidade de representá-lo. Uma impossibilidade de uma instância exterior à matéria fílmica apontar para o povo e para o seu futuro. Conhecemos os acontecimentos na imagem que racham e introduzem vazios nessa representação; o que acontece com o falso raccord (como corte irracional), a imagem desencadeada e atonal de Godard, a ruptura da unidade entre ator e personagem, a ruptura dos monólogos interiores como unidade (Pasolini), a constituição de séries, o off que tende a desaparecer, as fronteiras entre o pessoal e o coletivo se dissolvem etc. A imagem-tempo é assim parte de um projeto de desidentificação do povo com ele mesmo. Fazer o povo faltar não é apenas uma característica do povo que não se representa mais nos nomes que lhe são atribuídos, mas um projeto estético e político, produtor de uma crise identitária no povo para que este possa constantemente se re-apresentar. A criação perpétua da política e a invenção de um campo democrático substituem, assim, o povo como um ator que prevê o efeito de sua existência, o efeito de suas palavras. O cinema político moderno, nesse sentido, seria a invenção do povo como parte política e falante em um campo democrático em que o próprio povo não está imune à conseqüência de seu movimento.

Política e escândalo da democracia

A cena política não é assim um lugar de acordos que organizam relações e poderes, mas de irrupção de seres falantes, de línguas e entonações em um universo que perde suas estruturas e seu caráter policial de distribuição de lugares já dados, para se haver com uma suspensão dos lugares que garantiam a desigualdade. A política não está dada à priori, como parte da natureza humana. As partilhas que se vêem estáveis, onde não há mais o lugar de uma subjetividade excessiva, que perturbe a partilha, são justamente os lugares em que a política tende a desaparecer.

Esta igualdade na possibilidade de ocupação dos espaços simbólicos é o escândalo da democracia, segundo Rancière. A democracia é propriamente a desconexão entre ordem civil e ordem natural. Nenhuma ordem natural é anterior à democracia - governo dos mais velhos ou sábios, por exemplo - esse é o escândalo da democracia, uma ausência de legitimidade natural que autorize o exercício do poder. A democracia não está dada nem em uma forma de estado nem em uma forma de sociedade, pela democracia a luta é infindável e constante; poder de um povo, de uma singularidade que não é particularmente legitimado por um sistema de estado ou econômico; poder que excede, sem ter nenhuma qualidade ética ou social particular; poder que refuta uma representação adequada.

Seria isso então o que podem essas imagens e sons pertencentes ao documentário e que partem da criação de um espaço de interação, de um espaço em que indivíduos e objetos estão expostos às pressões uns dos outros? Ou seja, quando nos aproximamos dessas obras, quais são os gestos e configurações que tem a possibilidade de forjar essa dimensão política? Até que ponto é possível pensar o documentário como um espaço democrático, como espaço que apreende e fomenta as mutações do sensível?

Jardim Nova Bahia (1971)

Voltemos então aos filmes que nos levaram a colocar essa possibilidade de pensarmos o documentário como ator nessa reconfiguração do sensível a partir da invenção de um campo democrático. Antes de retomar o filme de Roberto Berliner, A pessoa é para o que nasce, volto ao filme que se tornou um caso clássico e que só recentemente tive a oportunidade de ver no cinema [20] . Trata-se de Jardim Nova Bahia, de Aluysio Raulino, discutido por Bernardet em Cineastas e Imagens do Povo. Como sabemos, Raulino entrega a câmera para seu personagem, um gesto que, segundo Bernardet, “é provavelmente o ponto de tensão máxima a que chega a problemática relação cineasta/outro de classe”. [21] Entretanto, o problema estava longe de ser resolvido. Nem a palavra estava dada ao personagem, nem a prática se tornaria uma forma de compartilhar a linguagem entre realizadores e as pessoas presentes no filme. Bernardet escreve que “mesmo quando ele filma, o poder de decisão, bem como a posse da máquina, permanecem nas mãos do cineasta. E contra isso o cineasta nada pode fazer, pelo menos no que diz respeito a seu filme”. [22]

Em relação a esta avaliação de Bernardet, talvez duas observações. A primeira diz respeito à transformação das tecnologias utilizadas na época e as dos documentários contemporâneos – pelo menos a maioria deles. O gesto de entregar a câmera continua não se constituindo como uma forma efetiva de se entregar a palavra ao outro ou de, com esta passagem, resolver uma crise sujeito-cineasta, como anuncia Bernardet. Entretanto, a intimidade e facilidade que um indivíduo pode ter com uma câmera, mesmo sem ser cineasta, vêm transformar de maneira definitiva a relação deste com a técnica. O exemplo do filme de Paulo Sacramento, fotografado pelo próprio Aluysio Raulino, O Prisioneiro da Grade de Ferro (2004), é paradigmático. Ao entregar a câmera para os presos, o filme, em diversos momentos da montagem final, utiliza as imagens feitas por Raulino e as feitas pelos presos de maneira indistinta. A passagem aqui não é mais de um a outro, de “autorização” para que a imagem fosse feita pelo outro. Estamos em um campo mais complexo de compartilhamento e perda da autoria. Não há, nesse caso, nenhum tipo de aposta que esta entrega da câmera se configure como reveladora do sujeito que produz a imagem. 

O segundo ponto em relação ao filme de Raulino diz respeito à forma como o compartilhamento da câmera não é acompanhado do compartilhamento da palavra e da angústia em filmar, ou do prazer em fazer suas próprias imagens. Quando Raulino escreve, no final do filme, que algumas imagens foram feitas por Destrudes “sem qualquer interferência do realizador”, essa passagem é difícil de ser levada ao pé da letra, mesmo como intenção de Raulino. Ela precisa ser nuançada antes de falarmos do fracasso da empreitada de Raulino. Primeiramente, somos informados disso no final do filme, o que faz com que tenhamos visto as imagens filmadas por Destrudes sem saber que ali se tratavam de suas imagens. Esse procedimento fragiliza a tentativa de conectarmos as imagens feitas por Destrudes à sua afirmação enquanto sujeito para além do filme. Em segundo lugar, a música escolhida por Raulino, Strawberry Fields, dos Beatles, certamente impõe a presença do autor a essas imagens, mas isso não é feito sem a plena consciência do realizador. Se há um compartilhamento nesse caso, ele se dá justamente pela forma como Raulino explicita sua presença com as imagens que, depois viemos saber, são de Destrudes. Não vale a pena entrarmos em uma seara mais interpretativa, mas vale lembrarmos a letra da música de John Lennon e Paul McCartney escolhida por Raulino: “Nada é real e nada para aprender. Viver é fácil de olhos fechados, confundindo tudo que você vê. Está se tornando difícil ser alguém, mas tudo dá certo, não me importa muito”. [23]

O problema colocado por Bernardet neste filme é o que nos interessa. A presença da câmera, das palavras e regras como forma de se estabelecer ou não um campo de circulação discursivo que se configure como lugar em que novas partilhas do sensível possam se dar. O documentário se torna democrático quando ele inventa formas para que um gesto ou um som intempestivo possa surgir, mas, mais do que isso, que essas palavras se tornem enunciados compartilháveis. Nesse sentido, a presença da música de Raulino sobre aquelas imagens torna-se muito mais um gesto de compartilhamento do filme do que um fracasso, como escreveu Jean-Claude Bernardet. Pensadas retroativamente, após sabermos que aquelas imagens foram feitas por Destrudes e, evidentemente, montadas por Raulino, podemos nos reportar à negociação mesmo que as gerou; a passagem da câmera, as instruções, o desejo de Destrudes em filmar os amigos etc. A música sobre as imagens de Destrudes, único momento do filme em que essa música aparece, se constitui menos como uma recuperação do material “tosco” feita pela inabilidade de Destrudes do que de pela vontade de Raulino em participar daquelas imagens. Mais do que um gesto fracassado revelador de uma crise do espaço documental, o filme de Raulino me parece também bem sucedido nesta breve seqüência em que Raulino e Destrudes inventam um olhar que escapa a ambos.

O problema do compartilhamento apontado por Bernardet não se desdobra ainda na reivindicação, por parte do personagem, pelo seu lugar no “produto” material e simbólico, como no filme de Berliner e outros.

No rastro do camaleão (2007)

Um outro exemplo, mais recente, é o documentário de Eric Laurence, No rastro do camaleão. Por diversas vezes, ao longo de mais de 30 anos, os Irmãos Aniceto, grupo de artistas/agricultores da Paraíba, foram filmados [24] , como nos mostra o filme. Desde o início do documentário de Laurence são privilegiados momentos em que os irmãos interpelam os realizadores sobre o fato de eles serem “objetos” de um produto comercial, que dá dinheiro para o cineasta e não traz nada para eles. Os personagens expõem com clareza a sensação de estarem sendo explorados no momento mesmo em que o filme se faz.

Na segunda seqüência, por exemplo, em meio a risadas e descontração, enquanto se espera o café ficar pronto, um dos irmãos, em um quadro que inclui o outro irmão, diz: “Fazer um filme... nós não fazemos questão de fazer não. Nós temos feito muitos e o pessoal se aproveita muito de nós. Ficam ganhando dinheiro por aí. A gente sabe de tudo; um filme é muito dinheiro pra fazer. Isso aí a gente entende, o que é isso daí”. Depois dessa fala sem cortes, há um corte seco que conecta o texto para a continuação da negociação, não mais em torno da exploração, mas de datas, tipo de filme etc. O irmão que apenas ouviu essa primeira reivindicação intervém dizendo que o filme já esta sendo feito; “é assim mesmo” – ele diz entendendo que se trata de um registro documental.

Mas é sobre esse corte que conecta os dois textos que quero me deter um momento. Colocadas as imagens dos quatro filmes em que os irmãos aparecem, seguidas de duas seqüências sobre ser filmado e sobre a forma como “os filmes se aproveitam deles”, constrói-se um comentário do filmado sobre os filmes, sobre os cineastas e, por que não, sobre o cinema. Ao fazer esse corte que liga o texto da reivindicação ao outro mais simpático e ameno, o filme nos priva do acontecimento que efetivamente interessa. E agora? Este filme é sobre o fato de estes músicos serem filmados e eles dizem que estão sendo explorados, e agora? Por enquanto o filme não fala, nem falará até o final, mas, além disso, nos priva do tempo em que aquela fala poderia fazer efeito. O que se diz depois da reivindicação, como o outro reage, como é o silêncio quando se explicita o dano e a exploração - segundo o filmado -, tudo isso desaparece e a reivindicação vira mais um texto que se conecta com outro, mas não ecoa. Durante todo o filme o registro continua o mesmo. As regras entre documentarista e filmados não estão claras, pelo menos para os irmãos Aniceto. Ou seja, o filme documenta um processo de negociação em que apenas uma das partes aparece, retirando da negociação o seu caráter conflitual.

Poderíamos então supor que, se por um lado o filme constrói um espaço em que a fala reivindicatória desses indivíduos pode aparecer, se tornando o centro mesmo do documentário, por outro, é o próprio filme que não se vê implicado. Em No rastro do camaleão, a reivindicação corre o risco de ser transformada em anedota, posto que ela não passa a habitar o mesmo dizível dos realizadores: “eu te deixo falar, mas não te escuto”. Se o documentário clássico e expositivo trabalha na formação de dois pólos, o ligado ao saber e à ciência que ensinava àquele que ignorava, neste exemplo podemos perceber uma inversão de pólos. O documentário se torna passivo e o filme não se estabelece como um encontro de inteligências que formam um comum.

Mato Eles? (1982)

Em Mato Eles?, de Sérgio Bianchi, para voltarmos a um exemplo clássico antes de retomarmos o filme de Berliner, o dissenso ecoa e contamina o próprio filme. Em um certo momento do filme, um índio, já de mais idade, pergunta ao realizador: “E o senhor, quanto está ganhando para fazer esse filme?” O realizador no momento não responde, mas logo depois, nos créditos, aparece em off dizendo algo como: “Você quer se dar bem em cima deles? Monta uma loja de produtos indígenas, fotografa ou faz um filme”. A fala irônica de Bianchi reinsere a fala do índio em um mesmo espaço de tensão. Não se trata de dar razão ao índio, mas de fazer aquelas palavras ecoarem, serem percebidas, impossibilitando que o filme continue a existir como se ele próprio não existisse.

A escritura democrática, aquela que se faz a partir do encontro mesmo com a palavra do índio, não se dá no momento da filmagem, mas no processo de montagem. A resposta de Bianchi não é direta e imediata, mas parte de um trabalho. Trabalho propriamente político, temporalmente longo. A invenção do espaço democrático ali é propriamente coletiva - entre Bianchi e o índio - e estendida no tempo, parte da elaboração do cineasta com o outro.

Mas não nos enganemos, a democracia não aparece como uma universal, um lugar de julgamento absoluto, de maneira alguma. Ela só pode ser vislumbrada na imanência, nos raros momentos em que ela aparece. Só nos discursos autoritários a “democracia” encontra consenso e deixa de existir. Quando tudo é democracia, nada o é, já havia entendido o nosso amigo naquele final de noite.

Na passagem que ela opera nas formas de organização dos lugares, dos que ganham direito de dizer e sentir em uma certa ordem, a democracia destes encontros com as imagens traz para a própria imagem uma crença, coloca a imagem como parte de uma operação que a extrapola. Imagem nem consensual, que aceita o mundo tal qual ele se apresenta, nem niilista, que nega toda sua possibilidade de participar desse campo democrático.

O paradoxo da biopolítica

Trazer essas noções de democracia para o universo dos documentários é um gesto arriscado. Entretanto, os problemas que a presença ou ausência da democracia colocam estão diretamente ligados à construção de uma cena em que uma relação entre indivíduos, instituições, tecnologias e capturas das potências vitais se dá. A construção de um documentário depende, intensamente, desta cena, depende da presença desses indivíduos e das formas como cada um dos pontos e atores desta cena se relaciona com os outros pontos e atores, dos modos de sociabilidade, da presença da palavra e da escuta, das formas de associação e ruptura. A democracia pode assim indicar formas de privilegiar certos gestos em detrimento de outros, neste paradoxo próprio à forma como a vida é o que alimenta e resiste aos poderes. Ou seja, as potências subjetivas não cabem nas ordens institucionais e políticas - lembremos que a democracia não é um sistema político, nem um regime de representação. Antes, o que perturba tenciona a representação e a política.

O capitalismo se nutre da vida na medida em que se coloca como medida para o sem medida - as potências mesmo dos indivíduos. A democracia é o que mantém o dissenso e a possibilidade de novos atores intempestivos adentrarem as brechas das partilhas que o capitalismo tende a organizar, restringindo o acesso ao que é comum (saberes, artes, inteligência, afetos) e interrompendo os processos subjetivos quando o excesso da própria vida pode ser capitalizado. [25]   Os irmãos Aniceto sabem disso.

A pessoa é para o que nasce

Voltemos então ao nosso ponto de partida, o filme A pessoa é para o que nasce de Roberto Berliner.

O filme começa com uma apresentação clássica das três irmãs em que cada uma diz onde nasceu, nome e apelido. Logo depois as vemos na rua cantando. O plano começa no alto de um prédio e somos assim apresentados ao trabalho e ao que as singulariza: a música e a cegueira. A terceira seqüência mostra imagens de arquivo de dois momentos. O primeiro, em que vemos as três cantoras, ainda muito jovens, no ano de 1966 em Campina Grande, filmadas por Geraldo Sarno em preto e branco; depois, no filme As Cegas, de Maria Antonia Pereira, em uma seqüência em que elas continuam um histórico pessoal, relatando dificuldades, esmolas e a forma como existia uma exploração no interior mesmo da família: “Trabalhava o feio pro bonito comer”. A continuidade entre os dois tempos, do arquivo e de hoje, é enfatizada pelo corte do passado para o presente da narrativa com a mesma música sendo cantada pelas três. Tão importante quanto o que descobrimos sobre elas nessa época é o fato de elas já estarem sendo documentadas.

Em uma segunda seqüência com imagens de arquivo, voltamos a 1991. As três cantoras são filmadas e entrevistadas por Regina Casé para o Programa Legal, da Rede Globo. Na narrativa do filme esta seqüência serve para apresentar o ex-marido de Maroca, mas, com essa breve seqüência, descobrimos que não só existem imagens de arquivo das três como elas foram filmadas pela Globo e estiveram em horário nobre.

É com vinte minutos de filme que ouvimos pela primeira vez a voz de Berliner. O filme continua interessado pela narrativa da vida delas e Maroca conta o grande amor que teve.

- “Durante dois anos e oito meses ele não tocou em mim”

- “Não tocou?”, pergunta Berliner, indignado e percebendo o choque entre o amor e a falta de toque.

- “Pra bater em mim não!”, responde Maroca.

- “Ah sim…”

Se o realizador já se fazia bastante presente nas opções estéticas, nesse momento ele fez questão de entender com clareza o que elas desejam dizer. Maroca abandona sua narrativa pessoal para falar do lugar dela, de mulher, de adulta.

- “Ele tá pensando que está conversando com criança!”, diz ela, depois de saber que passou pela cabeça de Berliner que durante 2 anos e oito meses de relação ela e o marido poderiam não ter se tocado eroticamente.

A indignação de Berliner desvia o filme de um olhar sobre elas para trazer a negociação entre eles. A fala de Maroca abre um espaço para ela e para as irmãs no filme. Um campo em que a palavra dela se torna propriamente uma forma de afetar o filme e afetar o modo como a narrativa se desdobrará. Graças à espontaneidade e ingenuidade de Berliner, a personagem se coloca ali de igual para igual, compartilhando o mesmo universo do realizador, o mesmo lugar de fala em que o sexo e o desejo não estão excluídos.

A presença do filme, da mídia, a consciência de estarem sendo filmadas e de estarem participando de uma mise en scène é constante. “A comida não é sempre assim não, é pro filme”, dizem na hora do almoço. Mas é com um anúncio no rádio que o filme é obrigado a incorporar a sua própria presença de maneira definitiva, não só no discurso como na sua própria estética. “Cega está sendo estrela de cinema” diz o radialista.

“Estrela de cinema tem muito valor, né? E eu pensei que eu não tinha esse valor”, diz Maroca, em uma seqüência em que leva a câmera à mão, filmando o próprio rosto. O interesse a partir desse momento se desloca delas para o filme e essa passagem da câmera é muito mais metafórica do que enunciativa. O filme e seu próprio efeito passam ao primeiro plano:

- “Roberto, quem deu essa idéia de você fazer um filme? Foi você mesmo ou foi o pessoal lá do Rio?”, perguntam elas.

- “Porque você está perguntado isso?”, retruca o realizador.

- “Porque eu já vi muita agente dizer isso: “Esse povo tá fazendo isso pra pegar as fitas pra vender e ganhar dinheiro para eles…será que eles vão dar alguma coisa pra vocês? Eu disse: eu não estou trabalhando pra eles. Se eles quiserem dar, a boa vontade é deles. Só que eu não estou trabalhando com eles não é por interesse, é pra ficar conhecida”.

A resposta do filme é certeira. Corte para um movimento de câmera que nos leva até um contra-plongé das três irmãs no alto de um morro, com o céu denso ao fundo em uma música triunfal, fade-out e uma cartela: “dois anos depois”. Diante do outro, da presença das três irmãs com suas palavras sendo ouvidas pelo filme, não houve filme possível que não fosse, também, sobre ele próprio.

Biopolítica e Democracia

Ainda no início dos anos 70 Foucault escreve: “ O controle da sociedade sobre os indivíduos não se efetua somente pela consciência ou pela ideologia, mas também no corpo e com o corpo. Para a sociedade capitalista é a biopolítica que interessa, antes de tudo, a biologia, o somático, o corporal”. [26] Estas aproximações entre o capital, o poder e a vida permitirão Foucault apresentar o poder não mais centrado em uma ordem negativa e destrutiva, “você não pode isso ou aquilo”, para ganhar uma dimensão produtiva, que irá interessar aos pesquisadores que retomam a noção de biopolítica hoje. O poder não é o que impede (somente) de fazer, mas o que estimula a fazer e, sobretudo, a ser. À diferença da era disciplinar, as produções subjetivas não são sobras, mas a essência mesmo do que nutre o capitalismo contemporâneo e na qual repousa todo seu esforço de captura. Neste esforço, são as individuações que transitam constantemente entre a fragmentação utilitária e a singularidade incapturável. Estas duas dimensões da biopolítica convivem na mesma prática.

Por um lado, há a necessidade da constante adaptabilidade das vidas para as novas tarefas e novos consumos, e, por outro, não é o molde que possibilitará que a criação subjetiva exista e seja logo capturada pelo poder. A biopolítica acompanha assim o nascimento de uma política e de uma forma de controle e poder que é modular. Ou seja, a biopolítica é a forma de Foucault expressar uma nova relação entre os indivíduos e suas existências na polis, em que está em jogo a possibilidade do poder capturar algo – potências, saberes, afetos, estéticas - que não provêm dele. O biopoder atua controlando os lugares de uma partilha do sensível sem estabelecer quais lugares estão disponíveis nem que sentidos são dados a existir antes da invenção mesmo desses lugares e afetos, que partem das vidas e dos corpos que inventam uma comunidade. Algo muito distinto do panóptico ou da linha de montagem, é claro, em que a cena era armada pelo poder e habitada pelos corpos. Em um ambiente pós-disciplinar, é a partir da liberdade da cena que o poder opera. Nesse sentido, o biopoder é o corte que imobiliza uma potência, mas depende dela. Ou seja, se a vida é o objeto do poder em forma de um biopoder, é justamente ao inserir a política nesta relação entre potência e captura que a vida pode se tornar inseparável do dissenso que constitui a própria política. Biopolítica é assim o nome que podemos dar ao limite e ao excesso que a vida impõe às formas de captura que o capital forja das potências vitais.

Mas entendo que a biopolítica não é uma forma autômata do contemporâneo, ou seja, não exclui a resistência como forma de se relacionar com o biopoder - e esta resistência é propriamente uma ação democrática. Se o paradoxo da resistência é explicito em relação à maneira de o capitalismo operar, capturando os mesmo processos de individuação que inventam formas singulares de ser, a democracia e, consequentemente a política, precisa ser estancada pelo capitalismo no momento em que se cristalizam as identidades. Se podemos falar em resistência é, justamente, de uma resistência da democracia, contra a polícia, imanente e não-dialética. O poder se ocupa da vida e a vida é em si poder, diria Negri, mas não basta viver, eu acrescentaria. [27] Nesta relação não-dicotômica entre o poder e a resistência se encontram os processos de individuação que operam em micro-enfrentamentos, sem começo nem fim, necessariamente coletivos e atravessados por uma escritura, como temos visto nos filmes que analisamos. O paradoxo deve então ser mantido. A comunicação e as trocas entre documentário e vida residem nas formas de contaminação entre um e outro e nas maneiras em que se efetuam “esgarçamentos do tecido social”. [28]

A última seqüência de A pessoa é para o que nasce marca um ponto decisivo de inflexão na tradição documental. Em uma espetacular praia nordestina, na Paraíba provavelmente, as três irmãs se despem e tomam um banho de mar completamente nuas. Esta seqüência difícil pode ser facilmente pensada como uma forma de “espetacularização”, de super-exposição, como se de alguma forma o filme aqui se avizinhasse das formas mais corriqueiras que entrelaçam o espetáculo à vigilância, com um agravante não desprezível: trata-se de mulheres cegas. Esta proximidade com as formas mais reles de exposição e funcionalização dos corpos colocam o filme de Berliner em um limite do documentário que se explicita na maneira como o realizador força o limite do humanismo, do olhar distanciado, da vitimização. Todas essas práticas contemporâneas que excluem a política encontram nesta última seqüência um forte oponente. Desfuncionalizado, o corpo aparece como tal, não serve ao voyeur nem ao mercado, não é erotizado para ser consumido, nem é o corpo da vítima descontextualizada, é apenas corpo; não se trata do corpo forte, ativo, vigoroso e fundado na ação, mas do corpo marcado, inscrição do vivido, o corpo como “comunicação de um comunicável”, nas palavras de Agamben sobre o gesto.

Neste filme, o olhar do realizador transita entre o singular - o que é “eles mesmos”, como falou Guattari em 1970 - e um outro estar junto, afetado pela singularidade. Em um mesmo gesto se demarca a singularidade e se joga ela em uma hiperpresença do entorno - o filme, o Rio de Janeiro, a câmera, a mídia etc. Refaz-se um campo em que o singular não estanca em um campo identitário. Ou seja, a singularidade só é potente se opera em um campo democrático, se afeta e é afetada. Estamos no cerne da biopolítica contemporânea, em que os processos de modulação dos corpos e das subjetividades são habitados por forças que estão constantemente aumentando e diminuindo as potências de transformação e invenção desse processo.  Essas potências da própria vida e de seus modos de ser interessam ao capitalismo, claro. O papel da democracia, também ela interessada nessas potências, é manter a instabilidade do processo. Por um lado, o capitalismo diz: seja você e singularmente você. Mas essa singularidade só existe se ela for um “problema” político, se ela for um operador do sensível. Assim, a democracia é a forma de manter a potência do singular como participante das tensões políticas.

Enfim…

Só uma instância que se quer exterior aos embates dissensuais pode dizer que “tudo é democracia”. A ironia do nosso amigo nos deixou claro que, pela democracia, há uma luta constante, já que de outra maneira acreditaríamos que tudo é democracia e calados permaneceríamos, sem palavras, sem imagens. Aproximar o que potencializa o capitalismo - a vida - da política - forma de ocupar a polis - é o que pode a democracia, é tarefa do documentário.

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[1] Richard Sennet chama atenção para como, na Alemanha de Otto Bismarck, um modelo militar muito bem sucedido passava a ser empregado nas empresas também (A cultura do novo capitalismo, p. 26), iniciando-se ali esse deslocamento da lógica militar para a lógica empresarial.

[2] “Si la première phase da la revolution industriel a été celle qui consistait a transformé les individues en robot, en automate, avec la parcialization du geste de travail. Maitenant, de plus en plus, dans le sein même de l’évolution de forces productives est possé le probleme de la singularité, de l’imagination, de l’invention. De plus en plus, ce que será demandé aux individues dans la production c’est d’être eux même.” (Les Vendredi de la Philosophie. Emissão radiofônica. France Culture, Arquivo INA - 26/04/1970 - livre tradução).

[3] Algumas observações sobre essa noção a partir do artigo de Comolli de 1999, “Au non de personne” In: Voir et Pouvoir. A partir desse artigo podemos visualizar que o direito à imagem implica uma percepção do valor da imagem para além da vida como valor. Essa percepção opera da seguinte forma. Só é possível reivindicar um direito de imagem se aquele que está no filme se separa da imagem mesmo. Ou seja, o direito de imagem pressupõe o desaparecimento do filme. Como se a imagem não fosse fruto de um agenciamento coletivo, de uma escritura com múltiplos atores, mas uma relação direta entre o aparato e o indivíduo filmado, o que produzirá uma imagem explorável. Comolli parece neste artigo mobilizado por casos em que após o filme feito os personagens recorrem aos tribunais para pedir seus “direitos”; é o caso de Giscard d’Estaing no filme 50,81% (1974) de Depardon, que tenta proibir a exibição do filme – citado por Comolli – e, mais recentemente, o filme de Ser e Ter (Être et Avoir) (2002), de Nicolas Philibert. Comolli pensa esse pedido também como uma questão propriamente temporal. O desejo que move essas pessoas aos tribunais, indo até ao impedimento do filme, é um desejo de voltar a um estado anterior ao filme, como se ao serem filmados eles perdessem algo. Nesse sentido, no mesmo artigo, Comolli nos lembra que o direito à imagem é também o direito ao som, às próprias palavras. E essas são sempre mais ou menos o que se deseja que elas sejam. A reivindicação do direito à imagem não está assim desligado de um desejo de pureza identitária, de fechamento e concentração sobre si.

[4] RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: Estética e Política. São Paulo: Editora 34, 2005, p.14

[5] COMOLLI, J. C. Voir e Pouvoir. L´innocence perdue: cinema, télévison, fiction, documentaire. Paris, Verdier, 2004, 214.

[6] NOGUEZ, Dominique. Le cinéma, autrement. Paris: Les Éditions du Cerf, 1987, p. 51

[7] “L’ensemble des processus par lequeles s’opèrent l’agrégation et le consentement des collectivités, l’organisation des pouvoirs, la distribuition des places et fonctions et les systèmes de ces légitimation”. RANCIERE, Jacques. La Mésentente : Politique et philosophie. Paris: Galilée, 1995. p. 51

[8] “La politique est l’exhibition d’une médialité, le rendre visible, un moyen en tant que tel. Ce n’est ni la sphère d’une fin en soi, ni des moyens subordonnés à une fin, mais une médialité pure et sans fin comme champ de l’agir et de la pensée humaine.” AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins: Notes sur le politique. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 129

[9] DELEUZE, G. A imagem-tempo, Cinema 2. S. Paulo: Brasiliense, 1990, p.266

[10] DELEUZE. A imagem-tempo, Cinema 2, p.266

[11] In “L'abécédaire de Gilles Deleuze”, com Claire Parnet  – Dirigido e Produzido por Pierre Andre Boutang - Letra S.

[12] “Chaque affaire individuelle est immédiatement branchée sur la politique”. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka: pour une Littérature Mineure. Paris, éd de Minuit, critique, 1975, p.30

[13] DELEUZE & GUATTARI. Kafka: pour une Littérature Mineure, p.33

[14] DELEUZE & GUATTARI. Kafka: pour une Littérature Mineure, p.32

[15] RANCIÈRE, Jacques. Aux Bords du politique. Paris : La Fabrique, 1998. p.95

[16] A noção de esquizofrenia utilizada por Rancière é diferentemente daquela tão trabalhada por Deleuze. No campo das imagens, a representação está em questão. O schizo, para Deleuze, é uma presença que escapa, como ele coloca em Esquizofrenia e Sociedade (Deus Régimes de fous, p. 27): “como fazer para que o furo (percée/Breakthrough) não se transforme em desmoronamento (breakdown)?”. Este lugar intermediário se aproxima da noção de frase-imagem para Rancière. Enquanto que, para Rancière, o schizo seria mais um desmoronamento da representação.

[17] Il y a de la politique en raison d’une seule universel, l’égalité, laquelle prend la figure spécifique du tort”.  RANCIÉRE. La Mésententep. 64

[18] DELEUZE. A imagem-tempo, Cinema 2, p.190

[19] DELEUZE. A imagem-tempo, Cinema 2, p 190

[20] Mostra de Curtas de Goiânia: mostra de documentários históricos organizada por Tetê Mattos – Goiânia, 09/2007.

[21] BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e Imagens do Povo. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.128

[22] BERNARDET. Cineastas e Imagens do Povo, 137.

[23] Strawberry Fields (John Lennon/Paul McCartney): “Let me take you down, 'cos I'm going to Strawberry Fields/ Nothing is real, and nothing to get hang about/ Strawberry Fields forever/ Living is easy with eyes closed, misunderstanding all you see/ It's getting hard to be someone but it all works out, it doesn't matter much to me/ Let me take you down, 'cos I'm going to Strawberry Fields/ Nothing is real, and nothing to get hungabout/ Strawberry Fields forever”.

[24] Zabumba (1974) de Zelito Viana; Dona Ciça do Barro Cru (1979) de Jefferson Albuquerque Jr.; O caldeirão de Santa cruz do Deserto (1986) de Rosemberg Cariri; Corisco e Dadá (1986) de Rosemberg Cariri.

[25] Bernard Stiegler pensa em termos de uma dinâmica social que funciona por elementos diacrônicos e sincrônicos que estão constantemente em contato e tensão. Os elementos sincrônicos são como os consensos e repetições sociais enquanto os diacrônicos são singularidades que alteram os consensos. Pois, para ele, essa operação de capitalização tem o nome de particularização do singular: “Particularizar o singular não é produzir o diacrônico, é produzir uma subcategoria do sincrônico: aquilo que o marketing chama de segmento, é eliminar a diacronicidade e a possibilidade de afirmação de uma singularidade”. STIEGLER, Bernard, Reflexões (não) contemporâneas. Chapecó: Argos, 2007. P.39

[26] “Le contrôle de la société sur les individus ne s’effectue pas seulement par la conscience ou par l’idéologie, mais aussi dans le corps et avec le corps. Pour la société capitaliste c’est le biopolitique qui importait avant tout, la biologie, le somatique, le corporel” . FOUCAULT. Michel, Dits et écrits II, 1976-1988 : Paris, Quatro Gallimard, 2001, p.210

[27] Esta brevíssima observação visa apenas marcar que a política não se faz apenas com a expressão subjetiva, como a afirmação de modos de vida, como a leitura de Negri e Hardt em Império pode dar a entender.

[28] Esta expressão é de Suely Rolnik.

Cezar Migliorin é pesquisador, artista plástico e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ, em co-tutela com Sorbonne Nouvelle (Paris). Nos últimos anos teve seus trabalhos em vídeo apresentados na Tate Modern (Londres), Centre George Pompidou (Paris) e Museu Patio Herreriano (Espanha). Desde 2001 ministra aulas em universidades, tendo passagens pela Estácio de Sá, Unisul, PUC-Rio e UFF. É também redator revista eletrônica Cinética.