Revista Cinética Cultura e Pensamento
Estéticas da Biopolítica:
audiovisual, política e novas tecnologias
Ilana Feldman, André Brasil, Cezar Migliorin e Leonardo Mecchi Editorial

 

Em 1974, durante uma palestra no Rio de Janeiro [1] e logo depois no livro História da Sexualidade - A Vontade de Saber, também de 74, Michel Foucault apresenta pela primeira vez o conceito de biopolítica: trata-se de um desdobramento da disciplina, quando o poder passa a investir menos o indivíduo do que a população. Segundo Foucault, na segunda metade do século XVIII, o poder teria ultrapassado os limites do corpo individual para intervir em uma série de processos reguladores da vida como um todo: a proliferação, a natalidade e a mortalidade, a saúde e a longevidade. Diferenciando-se das individualizantes estratégias disciplinares, as novas práticas biopolíticas passam a se dirigir ao homem como um corpo-espécie. Trata-se de uma estatização do biológico que se concretiza no século XIX. Foucault resume assim a nova forma de biopoder: “A nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem a corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença etc”. [2]

Hoje, o conceito ganha novos desdobramentos, tendo em vista, principalmente, a ramificação, pelo corpo social, das técnicas empresariais de (auto)gestão, o desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação, e os dispositivos de produção e circulação de imagens e sons. Por um lado, mantém-se e intensificam-se as estratégias de administração e regulação da vida das populações, algo que se legitima pela retórica do risco, da instabilidade e da insegurança, em um momento histórico em que se trata menos de criar a ordem do que de gerir a desordem, como diria Agambem. Por outro lado, vemos um deslocamento das estratégias biopolíticas institucionais para o universo do capitalismo avançado e, principalmente, do espetáculo, aqui compreendido não como um conjunto de imagens mas como “uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”, conforme postula Guy Debord [3].

Preparávamos este editorial, quando, durante um congresso de filosofia, ouvimos um participante reclamar da disseminação do conceito de biopolítica. “Daqui a pouco, até o Lula vai estar falando em biopolítica”, disse ele. Pois, nós, ligados à comunicação, ao cinema e ao audiovisual, estávamos certamente ampliando o conceito. E se alguém se ressente é porque nesse ressentimento residem dois preconceitos persistentes: um, bem nosso conhecido, de ordem social, e o outro, teórico-conceitual. Em comum a ambos, o pressuposto de que determinadas idéias são - e devem permanecer - domínio de poucos privilegiados: a linguagem deve ser repartida, e, nessa partilha, algumas idéias têm sua circulação limitada, como se fosse essa a garantia para que elas não se diluam e banalizem. Desde já, diríamos que um primeiro desdobramento da ligação entre estética e biopolítica diz respeito aos modos de circulação e operação desse conceito, ou seja, o próprio modo como ele ocupa (ou deixa de ocupar) certos espaços, operando socialmente por meio de diversas práticas e tecnologias, sobretudo audiovisuais.

Antes de se propor como resistência, esta publicação parte, então, de uma insistência. Trata-se de insistir nos desdobramentos de um conceito que, a nosso ver, constitui um potente operador crítico da atualidade. Ao contrário de uma postura restritiva, excludente, acreditamos ser necessário insistir na vitalidade do conceito, justamente no momento de sua expansão, justamente no momento de sua passagem do domínio dos experts ao domínio público. Lutar pelo conceito é preservar sua precisão, suas nuances, sua força crítica. É protegê-lo, não de sua expansão, mas do uso doutrinário, por um lado, e do uso indiscriminado, por outro. Seguindo as trilhas teórico-metodológicas propostas por Michel Foucault, poderíamos então dizer que o nível em que gostaríamos de atuar “não é o nível da teoria política, mas, antes, o nível dos mecanismos, das técnicas e das tecnologias de poder” [4].

De fato, neste “daqui a pouco, até o Lula vai estar falando em biopolítica”, podemos vislumbrar resquícios de um “há muito”, ou seja, a persistência de uma velha dicotomia que, ainda na origem da Estética, separava o homem culto, de gosto, do homem inculto, ordinário. Uma dicotomia que, no fundo, sempre legitimou a vocação ou o título daqueles que se incluem no campo em que as idéias e conceitos circulam. Mas, se essa dicotomia persiste em alguns domínios do saber, no âmbito mais amplo do capitalismo contemporâneo ela se desfaz ou, ao menos, se reconfigura. Por um lado, a dissolução desta fronteira poderia tornar inócuos os julgamentos elitistas e discriminatórios. Por outro, nos exige renovar nossas perspectivas críticas, já que é aí, nesse deslimite, que se desenvolve o capitalismo pós-industrial - dito imaterial, cognitivo, semiótico, estético e, por que não, biopolítico.

Como veremos aqui, o capitalismo contemporâneo se constitui, justamente, de dois processos que deslocam a experiência estética e a vida ordinária para o centro de seus investimentos. De um lado, a dimensão estética da experiência deixa de ser domínio restrito da arte e passa a compor o próprio modus operandi das estratégias de produção e circulação do capital. De outro, a vida ordinária, traduzida em “modos de vida”, se torna a fonte de inventividade que alimenta as tecnologias da comunicação, as técnicas de autogestão e as estratégias de marketing, seja no âmbito da produção, seja no âmbito do consumo. Liberar a vida e a criação, estimular - ou mais, turbinar - a experiência: funções de um poder que se confunde com o próprio capitalismo. Aqui, continua a ecoar a fórmula foucaultiana, segundo a qual “o poder só se exerce sobre sujeitos livres, e enquanto eles são livres. (…) onde as determinações são saturadas não há relação de poder”. [5]

Uma crítica renovada, atenta a esse processo, deveria se ocupar de duas hipóteses: a primeira nos levaria a pensar o conceito foucaultiano de biopolítica em sua dimensão estética. Afinal, desde o princípio, a biopolítica pode ser pensada como uma reconfiguração do sensível, isto é, como uma reorganização da forma como o poder investe nossa experiência sensível: o espaço, o tempo, a circulação e reprodução dos corpos e das populações, os modos como somos vistos e como vemos o outro, em suma, o modo como vivemos, em sua dimensão de produção e gestão da vida.

Aqui, não precisamos recorrer - como faz Giorgio Agamben - à formulação extrema da biopolítica, caso do nacional-socialismo (é sabido como, para cientistas ligados ao nazismo, como Verschuer, a política visaria “dar forma à vida de um povo” [6]). Basta vermos como, no âmbito da biopolítica, em sua versão contemporânea, nossos mínimos gestos, nossos deslocamentos geográficos ou simbólicos, nossos desejos de consumo, individuais e coletivos, e nossas demandas por liberdade e prazer são modulados por dispositivos informacionais e comunicacionais de todo tipo, sendo estes também moduladores das dinâmicas do capital e dos discursos mais intimamente a ele ligados. Trata-se, antes de tudo, menos de moldar do que de modular nossa experiência sensível e a forma como a vida se desloca, se posiciona, ocupa espaços, geográficos e simbólicos, escapa às dominações ou demanda ser por elas reativada.

A segunda hipótese deriva desta constatação: trata-se de pensar a biopolítica, hoje, a partir do modo como a própria vida passa a ser investida pelos poderes, que não se restringem mais - ou apenas - aos ditames dos Estados nacionais. No âmbito do capitalismo cognitivo, a biopolítica se volta, cada vez mais intensamente, para a vida em sua plasticidade, em seu poder de invenção e em sua capacidade de se diferenciar de si mesma, ou seja, para a dimensão estética da experiência. Caberia, então, perguntar: o que reivindicar à experiência estética? O que reivindicar à vida, tanto a vida como forma de resistência aos poderes que dela se apropriam quanto a vida por eles ignorada? Qual a possibilidade da crítica, no momento em que a experiência estética e os modos de vida singulares são, justamente, aquilo que garante a continuidade e rotatividade do capitalismo em sua versão cognitiva, imaterial?

A vida ordinária, antes visada pelas objetivas técnicas disciplinares, torna-se alvo de estratégias, aparentemente contraditórias, de subjetivação: se, de um lado, ela continua a ser regulada, vigiada e monitorada por meio de técnicas e tecnologias cada vez mais sofisticadas de controle, do geoprocessamento à biogenética, passando pelos dispositivos de vigilância e identificação, por outro, ela precisa ser liberada, turbinada, devendo tornar-se criativa e performática, porque daí mesmo o capitalismo retira sua força de invenção e sua lucratividade. De um lado, portanto, os procedimentos objetivos que visam a totalização, como o controle e a regulação da vida coletiva e individual (ou “dividual”, como diria Deleuze). De outro, as técnicas de individualização, ou “tecnologias do eu” (conforme Foucault), por meio das quais a vida se subjetiviza, se virtualiza, especula, se diferencia e imagina.

Em ambas as linhas de força da biopolítica contemporânea, a produção de imagens - sejam aquelas de caráter científico, aquelas próprias ao universo da arte ou aquelas próprias ao entretenimento - faz a vida passar à esfera da informação e a informação à esfera da vida. As imagens reforçam e oferecem assim um novo matiz à dimensão estética da biopolítica contemporânea: afinal, por meio delas, o sensível é dividido, partilhado e compartilhado. Por meio delas, também, a força de invenção da vida ordinária se torna força de invenção, e fonte de lucratividade, do próprio capitalismo.

A publicação Estéticas da biopolítica: audiovisual, política e novas tecnologias partiu de um paradoxo, sem buscar negá-lo ou resolvê-lo: como pensar as estratégias de afirmação, emancipação e resistência no momento em que são essas mesmas estratégias que alimentam o capitalismo em seu viés imaterial, cognitivo, bélico, especulativo e espetacular ? Como defender as potências da vida no momento em que a vida, em sua potência, alimenta as forças que a regulam, controlam e descartam ?

Desde o princípio, os editores da publicação defendem uma edição aberta,  processual, “arriscada”, que seja mais o início do que o fim de um percurso - característica, aliás, defendida entre os editores e colaboradores da revista Cinética. Assim, a provocação acima nos ofereceu ensaios de interesses e matizes diversos, perspectivas múltiplas, o que faz desta empreitada algo ainda mais difuso e plural. A idéia que sempre nos pautou é a de que essa processualidade própria ao projeto poderia nos ajudar a encontrar interlocutores em diversos campos do conhecimento e em diversas regiões do país, além da América Latina, nos permitindo vislumbrar a forma como o conceito de biopolítica aparece em suas pesquisas específicas.

Alguns ensaios trilham um caminho mais teórico-conceitual, outros fazem o conceito operar em confronto com experiências específicas no campo do audiovisual, da política, da ciência, da experiência estética, do ciberativismo, da pornografia, das novas tecnologias de vigilância, de comunicação, de digitalização da imagem e de gestão mesma da vida. Não obstante, além dos 18 ensaios críticos sobre diversos aspectos da biopolítica, nossa proposta contempla ainda: duas intervenções artísticas produzidas especialmente para esta publicação, a partir de uma provocação conceitual inicial; uma curadoria, especializada na produção audiovisual contemporânea, de trabalhos disponíveis na internet que dialoguem com as questões privilegiadas nesse debate; uma entrevista, acerca do tema “políticas do corpo”, com um prestigiado cineasta brasileiro; e um fórum on-line, para que se realize o debate, a troca de idéias (entre leitores, editores e colaboradores) e a dimensão propriamente processual do pensamento.

Ao fundo de toda essa diversidade, mantém-se a convicção de que o conceito de biopolítica mantém sua força de análise da experiência contemporânea e, mais ainda, que sua disseminação não é sinônimo de banalização. Se estes são textos, imagens e idéias sobre as possíveis estéticas da biopolítica, acreditamos que há uma discussão estética implícita e coextensiva à forma como se opera a circulação das idéias, à maneira como se preservam e se reconfiguram os espaços de sua produção e disseminação. Esta é a estética que está ao fundo da política: as formas sensíveis que permitem a emergência do pensamento.



[1] FOUCAULT, M. “La naissance de la médecine sociale”. In: Dits et Écrits II, 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001.

[2] FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade - Aula de 17 de março de 1976. São Paulo: Martins fontes, 2005. p.289

[3] DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. p.14.

[4] FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins fontes, 2005. p.288.

[5] FOUCAULT, M. “Le sujet et le pouvoir”. In: Dits et Écrits II, 1976-1988. Paris: Éditions Gallimard, 2001. p.1059

[6] AGAMBEN, G. Homo sacer – o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002, p.155.