Em 1974, durante uma palestra no
Rio de Janeiro [1] e logo
depois no livro História da Sexualidade - A Vontade
de Saber, também de 74, Michel Foucault apresenta
pela primeira vez o conceito de biopolítica: trata-se
de um desdobramento da disciplina, quando o poder passa
a investir menos o indivíduo do que a população. Segundo
Foucault, na segunda metade do século XVIII, o poder
teria ultrapassado os limites do corpo individual para
intervir em uma série de processos reguladores da vida
como um todo: a proliferação, a natalidade e a mortalidade,
a saúde e a longevidade. Diferenciando-se das individualizantes
estratégias disciplinares, as novas práticas biopolíticas
passam a se dirigir ao homem como um corpo-espécie.
Trata-se de uma estatização do biológico
que se concretiza no século XIX. Foucault resume assim
a nova forma de biopoder: “A nova tecnologia que se
instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na
medida em que eles se resumem a corpos, mas na medida
em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada
por processos de conjunto que são próprios da vida,
que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a
doença etc”.
[2]
Hoje, o conceito ganha novos desdobramentos,
tendo em vista, principalmente, a ramificação, pelo
corpo social, das técnicas empresariais de (auto)gestão,
o desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação,
e os dispositivos de produção e circulação de imagens
e sons. Por um lado, mantém-se e intensificam-se as
estratégias de administração e regulação da vida das
populações, algo que se legitima pela retórica do risco,
da instabilidade e da insegurança, em um momento histórico
em que se trata menos de criar a ordem do que de gerir
a desordem, como diria Agambem. Por outro lado, vemos
um deslocamento das estratégias biopolíticas institucionais
para o universo do capitalismo avançado e, principalmente,
do espetáculo, aqui compreendido não como um conjunto
de imagens mas como “uma relação social entre pessoas,
mediada por imagens”, conforme postula Guy Debord [3].
Preparávamos este editorial, quando, durante
um congresso de filosofia, ouvimos um participante reclamar
da disseminação do conceito de biopolítica. “Daqui a
pouco, até o Lula vai estar falando em biopolítica”,
disse ele. Pois, nós, ligados à comunicação, ao cinema
e ao audiovisual, estávamos certamente ampliando o conceito.
E se alguém se ressente é porque nesse ressentimento
residem dois preconceitos persistentes: um, bem nosso
conhecido, de ordem social, e o outro, teórico-conceitual.
Em comum a ambos, o pressuposto de que determinadas
idéias são - e devem permanecer - domínio de poucos
privilegiados: a linguagem deve ser repartida, e, nessa
partilha, algumas idéias têm sua circulação limitada,
como se fosse essa a garantia para que elas não se diluam
e banalizem. Desde já, diríamos que um primeiro desdobramento
da ligação entre estética e biopolítica
diz respeito aos modos de circulação e operação desse
conceito, ou seja, o próprio modo como ele ocupa (ou
deixa de ocupar) certos espaços, operando socialmente
por meio de diversas práticas e tecnologias, sobretudo
audiovisuais.
Antes de se propor como resistência, esta
publicação parte, então, de uma insistência. Trata-se
de insistir nos desdobramentos de um conceito que, a
nosso ver, constitui um potente operador crítico da
atualidade. Ao contrário de uma postura restritiva,
excludente, acreditamos ser necessário insistir na vitalidade
do conceito, justamente no momento de sua expansão,
justamente no momento de sua passagem do domínio dos
experts ao domínio público. Lutar pelo conceito
é preservar sua precisão, suas nuances, sua força crítica.
É protegê-lo, não de sua expansão, mas do uso doutrinário,
por um lado, e do uso indiscriminado, por outro. Seguindo
as trilhas teórico-metodológicas propostas por Michel
Foucault, poderíamos então dizer que o nível em que
gostaríamos de atuar “não é o nível da teoria política,
mas, antes, o nível dos mecanismos, das técnicas e das
tecnologias de poder”
[4].
De fato, neste “daqui a pouco, até o Lula
vai estar falando em biopolítica”, podemos vislumbrar
resquícios de um “há muito”, ou seja, a persistência
de uma velha dicotomia que, ainda na origem da Estética,
separava o homem culto, de gosto, do homem inculto,
ordinário. Uma dicotomia que, no fundo, sempre legitimou
a vocação ou o título daqueles que se incluem no campo
em que as idéias e conceitos circulam. Mas, se essa
dicotomia persiste em alguns domínios do saber, no âmbito
mais amplo do capitalismo contemporâneo ela se desfaz
ou, ao menos, se reconfigura. Por um lado, a dissolução
desta fronteira poderia tornar inócuos os julgamentos
elitistas e discriminatórios. Por outro, nos exige renovar
nossas perspectivas críticas, já que é aí, nesse deslimite,
que se desenvolve o capitalismo pós-industrial - dito
imaterial, cognitivo, semiótico, estético e, por que
não, biopolítico.
Como veremos aqui, o capitalismo contemporâneo
se constitui, justamente, de dois processos que deslocam
a experiência estética e a vida ordinária para o centro
de seus investimentos. De um lado, a dimensão estética
da experiência deixa de ser domínio restrito da arte
e passa a compor o próprio modus operandi das
estratégias de produção e circulação do capital. De
outro, a vida ordinária, traduzida em “modos de vida”,
se torna a fonte de inventividade que alimenta as tecnologias
da comunicação, as técnicas de autogestão e as estratégias
de marketing, seja no âmbito da produção, seja no âmbito
do consumo. Liberar a vida e a criação, estimular -
ou mais, turbinar - a experiência: funções de um poder
que se confunde com o próprio capitalismo. Aqui, continua
a ecoar a fórmula foucaultiana, segundo a qual “o poder
só se exerce sobre sujeitos livres, e enquanto eles
são livres. (…) onde as determinações são saturadas
não há relação de poder”. [5]
Uma crítica renovada, atenta a esse processo,
deveria se ocupar de duas hipóteses: a primeira nos
levaria a pensar o conceito foucaultiano de biopolítica
em sua dimensão estética. Afinal, desde o princípio,
a biopolítica pode ser pensada como uma reconfiguração
do sensível, isto é, como uma reorganização da forma
como o poder investe nossa experiência sensível: o espaço,
o tempo, a circulação e reprodução dos corpos e das
populações, os modos como somos vistos e como vemos
o outro, em suma, o modo como vivemos, em sua dimensão
de produção e gestão da vida.
Aqui, não precisamos recorrer - como faz
Giorgio Agamben - à formulação extrema da biopolítica,
caso do nacional-socialismo (é sabido como, para cientistas
ligados ao nazismo, como Verschuer, a política visaria
“dar forma à vida de um povo”
[6]). Basta vermos como, no
âmbito da biopolítica, em sua versão contemporânea,
nossos mínimos gestos, nossos deslocamentos geográficos
ou simbólicos, nossos desejos de consumo, individuais
e coletivos, e nossas demandas por liberdade e prazer
são modulados por dispositivos informacionais e comunicacionais
de todo tipo, sendo estes também moduladores das dinâmicas
do capital e dos discursos mais intimamente a ele ligados.
Trata-se, antes de tudo, menos de moldar do que de modular
nossa experiência sensível e a forma como a vida se
desloca, se posiciona, ocupa espaços, geográficos e
simbólicos, escapa às dominações ou demanda ser por
elas reativada.
A segunda hipótese deriva desta constatação:
trata-se de pensar a biopolítica, hoje, a partir do
modo como a própria vida passa a ser investida pelos
poderes, que não se restringem mais - ou apenas - aos
ditames dos Estados nacionais. No âmbito do capitalismo
cognitivo, a biopolítica se volta, cada vez mais intensamente,
para a vida em sua plasticidade, em seu poder de invenção
e em sua capacidade de se diferenciar de si mesma, ou
seja, para a dimensão estética da experiência. Caberia,
então, perguntar: o que reivindicar à experiência estética?
O que reivindicar à vida, tanto a vida como forma de
resistência aos poderes que dela se apropriam quanto
a vida por eles ignorada? Qual a possibilidade da crítica,
no momento em que a experiência estética e os modos
de vida singulares são, justamente, aquilo que garante
a continuidade e rotatividade do capitalismo em sua
versão cognitiva, imaterial?
A vida ordinária, antes visada pelas objetivas
técnicas disciplinares, torna-se alvo de estratégias,
aparentemente contraditórias, de subjetivação: se, de
um lado, ela continua a ser regulada, vigiada e monitorada
por meio de técnicas e tecnologias cada vez mais sofisticadas
de controle, do geoprocessamento à biogenética, passando
pelos dispositivos de vigilância e identificação, por
outro, ela precisa ser liberada, turbinada, devendo
tornar-se criativa e performática, porque daí mesmo
o capitalismo retira sua força de invenção e sua lucratividade.
De um lado, portanto, os procedimentos objetivos que
visam a totalização, como o controle e a regulação da
vida coletiva e individual (ou “dividual”, como diria
Deleuze). De outro, as técnicas de individualização,
ou “tecnologias do eu” (conforme Foucault), por meio
das quais a vida se subjetiviza, se virtualiza, especula,
se diferencia e imagina.
Em ambas as linhas de força da biopolítica
contemporânea, a produção de imagens - sejam aquelas
de caráter científico, aquelas próprias ao universo
da arte ou aquelas próprias ao entretenimento - faz
a vida passar à esfera da informação e a informação
à esfera da vida. As imagens reforçam e oferecem assim
um novo matiz à dimensão estética da biopolítica contemporânea:
afinal, por meio delas, o sensível é dividido, partilhado
e compartilhado. Por meio delas, também, a força de
invenção da vida ordinária se torna força de invenção,
e fonte de lucratividade, do próprio capitalismo.
A publicação Estéticas da biopolítica:
audiovisual, política e novas tecnologias partiu
de um paradoxo, sem buscar negá-lo ou resolvê-lo: como
pensar as estratégias de afirmação, emancipação e resistência
no momento em que são essas mesmas estratégias que alimentam
o capitalismo em seu viés imaterial, cognitivo, bélico,
especulativo e espetacular ? Como defender as potências
da vida no momento em que a vida, em sua potência, alimenta
as forças que a regulam, controlam e descartam ?
Desde o princípio, os editores da
publicação defendem uma edição aberta, processual,
“arriscada”, que seja mais o início do que o fim de
um percurso - característica, aliás, defendida entre
os editores e colaboradores da revista Cinética. Assim,
a provocação acima nos ofereceu ensaios de interesses
e matizes diversos, perspectivas múltiplas, o que faz
desta empreitada algo ainda mais difuso e plural. A
idéia que sempre nos pautou é a de que essa processualidade
própria ao projeto poderia nos ajudar a encontrar interlocutores
em diversos campos do conhecimento e em diversas regiões
do país, além da América Latina, nos permitindo vislumbrar
a forma como o conceito de biopolítica aparece em suas
pesquisas específicas.
Alguns ensaios trilham um caminho
mais teórico-conceitual, outros fazem o conceito operar
em confronto com experiências específicas no campo do
audiovisual, da política, da ciência, da experiência
estética, do ciberativismo, da pornografia, das novas
tecnologias de vigilância, de comunicação, de digitalização
da imagem e de gestão mesma da vida. Não obstante, além
dos 18 ensaios críticos sobre diversos aspectos da biopolítica,
nossa proposta contempla ainda: duas intervenções artísticas
produzidas especialmente para esta publicação, a partir
de uma provocação conceitual inicial; uma curadoria,
especializada na produção audiovisual contemporânea,
de trabalhos disponíveis na internet que dialoguem com
as questões privilegiadas nesse debate; uma entrevista,
acerca do tema “políticas do corpo”, com um prestigiado
cineasta brasileiro; e um fórum on-line, para que se
realize o debate, a troca de idéias (entre leitores,
editores e colaboradores) e a dimensão propriamente
processual do pensamento.
Ao fundo de toda essa diversidade, mantém-se
a convicção de que o conceito de biopolítica mantém
sua força de análise da experiência contemporânea e,
mais ainda, que sua disseminação não é sinônimo de banalização.
Se estes são textos, imagens e idéias sobre as possíveis
estéticas da biopolítica, acreditamos que há uma discussão
estética implícita e coextensiva à forma como se opera
a circulação das idéias, à maneira como se preservam
e se reconfiguram os espaços de sua produção e disseminação.
Esta é a estética que está ao fundo da política: as
formas sensíveis que permitem a emergência do pensamento.
FOUCAULT, M. “Le sujet et le pouvoir”.
In: Dits et Écrits II, 1976-1988. Paris: Éditions Gallimard, 2001. p.1059
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