Revista Cinética Cultura e Pensamento
A política do corpo e o corpo político - o cinema de Karim Aïnouz
Por Ilana Feldman e Cléber Eduardo
Transcrição: Leonardo Mecchi
Entrevistas

A recusa ao “flagrar o real”

Cinética: Grosso modo, a biopolítica hoje diz respeito ao modo como a vida se tornou o núcleo da política, da economia e da produção audiovisual contemporâneas, resultando em um crescente valor de mercado que essa idéia de “homem ordinário” e de “autenticidade” vem adquirindo. Por que essa ascensão do homem ordinário? Por que essa ascensão dos reality shows? Por que essa demanda por autenticidade? A performance da autenticidade pauta hoje a ponta do cinema brasileiro. Pois existe uma valoração daquilo que supostamente se aproxima, da maneira mais fiel possível, ao que é a vida. A autenticidade hoje é um valor artístico e um valor de mercado, seja através do documentário, seja através da ficção, que se cerca de uma série de procedimentos para conseguir esse efeito de captura da vida. Isso está muito valorizado na agenda contemporânea.

Karim Aïnouz: Eu ganhei um prêmio com O Céu de Suely no festival de Mar del Plata, na Argentina, e a menção que justificava a premiação do filme dizia que ele tinha uma relação muito forte com o real. Comecei a pensar que existe um conjunto de filmes brasileiros contemporâneos que tentam captar o “real”. E eu acho que me coloquei de forma errada quando falei de O Céu de Suely, porque, na realidade, eu nunca tive a intenção de fazer um filme realista. Na ocasião, eu disse em entrevistas e a críticos que os atores moraram na casa onde eu filmei, que o roteiro era reescrito o tempo todo, que havia improvisação, que a gente conseguia filmar de uma maneira discreta, podendo usar quem estava passando no lugar. Comecei a ouvir esse discurso [sobre “captar o real”] e pensei: “peraí, tem alguma diferença aqui entre o que eu fiz e esse discurso”.

Se em Madame Satã havia um personagem de exceção, heróico, em O Céu de Suely eu queria muito fazer um filme sobre um personagem comum. Quando passou pela primeira vez no Festival de Veneza, o primeiro embate crítico que eu tive foi em relação ao Neo-realismo italiano. As pessoas diziam que o filme seguia a tradição neo-realista. Porque existe um filme italiano da tradição neo-realista chamado La Riffa, em que havia o assunto rifa no filme, então O Céu de Suely ficou eternamente amalgamado por essa perspectiva neo-realista. Quando a gente olha para a tradição do Neo-realismo, a construção da dramaturgia era sempre via questões financeiras, uma questão objetual. O conflito do personagem era o que ele podia ter ou não ter.

Então houve uma crítica da Variety que descrevia o filme como se fosse a história de uma menina muito pobre, com uma vida muito dura, que tinha que conseguir dinheiro para ir embora. Na verdade, o filme para mim nunca foi nada disso, mas é engraçado como ele foi recebido dessa maneira. Para mim, o filme era a história de uma pessoa comum que tinha um problema afetivo muito forte. Ela tinha então que resolver isso de algum jeito e resolve atrapalhadamente, da forma que ela resolveu, para poder viver uma outra vida. Quando eu comecei a pensar no Céu de Suely, eu queria falar do anônimo, porque eu via que o anônimo nunca era representado no jornalismo cotidiano, embora o Big Brother já existisse naquela época. Eu ficava muito curioso de ver como era o problema afetivo de alguém que não tem dinheiro. Não como era a vida dele por não ter dinheiro, mas como era a vida cotidiana de uma pessoa que vive numa situação financeira que não é confortável, mas que não é miserável também.

Aquelas estratégias que eu usei para fazer o filme, em nenhum momento eram para fazer um filme que fosse perto da “verdade”, mas sim uma maneira de eu ter um material com o qual eu pudesse criar um discurso na montagem. Que é um discurso completamente construído, completamente artificial. O maior insulto para mim era quando diziam que o filme tinha “uma coisa documental”. O que é “uma coisa documental’? Eu sinto que a gente está criando um discurso em que as coisas se colapsam. Por que documental é o quê? Reportagem de televisão? É esse que é o registro que de alguma maneira é fiel ao real, é autêntico e capta a verdade? Porque quando se fala de uma nova vertente do cinema brasileiro, eu não acho que é documental, mas sim reportagem de televisão. É muito diferente do documental. A única diferença do documental para a ficção é que você não faz take dois. Mas há uma escolha, um recorte. Eu estou dizendo tudo isso porque eu tenho uma grande resistência ao cinema que se pretende “flagrar o real”, que pretende ser um não-olhar, ser um acidente. Eu até procuro o acidente quando estou encenando, acho que é importante porque ele tem algum frescor, mas você pega esse acidente e constrói um discurso a partir dele. É muito diferente de você pegar um acidente bruto. Acidente bruto são as câmeras da CNN ou os caras que mandam um filme de celular sobre a bomba que caiu hoje na Argélia. Acho muito perigoso esse discurso. Muito delicado enquanto postura política, porque parece ser uma postura neutra, mas na verdade ela não é.

Cinética: Em Céu de Suely, há uma tentativa de integrar experiências da personagem ao espaço, mas buscando reter aquelas experiências em vez de transformá-las em sintomas de ambiente...

Karim Aïnouz: Tem a ver com o meu próprio desejo de documentar! Eu não nego meu desejo de documentar...

Cinética: E aí está a matéria-prima para o filme ser vinculado a uma idéia de realismo. Mas não a um realismo que vai fazer uma interpretação da realidade, localizar de onde vêm os problemas dela. Um realismo mais centrado no fenômeno da experiência.

Karim Aïnouz: Na experiência em si, exatamente...

Cinética: E isso é uma outra vertente do cinema hoje, em que se tem uma preocupação com a experiência. Os irmãos Dardenne, por exemplo. Eles não estão interessados na origem do desemprego da Rosetta. Eles estão interessados na tragédia que é o desemprego para a Rosetta, a experiência dela...

Karim Aïnouz: Há uma coisa da repetição ali, em Rosetta, que é de uma outra ordem. Aquela coisa das botas, em que ela tira e põe as botas quando sai daquele lugar, repete-se no filme. É diferente da questão da causalidade. É da ordem da experiência. Tanto que o som, se você for ver o som de O Filho, você ouve o barulho da respiração, o cara está respirando lá em primeiríssimo plano. São os barulhos do corpo, o quanto o corpo está sentindo em mexer naquelas madeiras, colocá-las naquelas pilhas. É diferente, é outra coisa.

 

Utopia no deslocamento

Cinética: Em Madame Satã, Satã usa o corpo para se impor ao espaço e para lá permanecer. Já em O Céu de Suely, Suely vai usar o seu corpo para sair de seu espaço. Existe esse vínculo, embora ambíguo e não fechado, entre o deslocamento físico e uma certa potência de vida, uma certa abertura para o desconhecido que pode ser potente. E pelo que sabemos de Alice [série que está sendo realizada por Karim Aïnouz para o canal HBO], é a confirmação dessa potência. Seria como se a Suely tivesse chegado ao Sudeste, e você a estaria acompanhando, mostrando que há uma potência aí. Haveria então de sua parte um certo elogio à mobilidade? Seria um projeto seu anterior aos filmes ou isso vai saindo das dramaturgias?

Karim Aïnouz: Eu não acho que seja um projeto deliberado. Há um projeto deliberado que é a afirmação da vida, uma afirmação da vida que se exerce no caos, na desorganização, no não-planejamento. Isso tem. E é curioso falar isso, pois estou desenvolvendo um filme novo que é muito fruto do Alice, não enquanto conteúdo, mas enquanto processo. Porque quando eu comecei a fazer Alice eu estava sem nenhum projeto de longa, estava muito desencantado, e este ano inteiro eu fui encontrando, sem nenhuma aflição, sem nenhuma angústia, o que realmente me interessava em falar. E nesse projeto há, de novo, uma questão do deslocamento muito forte, um personagem muito forte e uma perspectiva do porvir.

Na realidade, é um projeto que começa numa praia no Ceará, que se chama Praia do Futuro, onde eu fui criado, e termina em Berlim. Eu nem vou contar a história pois não sei direito qual ela é, mas eu tenho uma intuição sobre os personagens. A primeira parte do filme é a história de um cara que trabalha como salva-vidas nessa praia, que é a praia com o maior número de afogamentos do Brasil. E a segunda parte do filme, que começa em Hamburgo e termina em Berlim, é a história de uma personagem que está nessa primeira parte, mas que vai pra Hamburgo atrás de algo, que se descobre ao final que é um irmão dela que morreu. Acho que é uma coisa muito intuitiva.

Nesse filme novo, eu não sentei e pensei “eu quero fazer um filme sobre isso”. Eu queria fazer um filme sobre uma praia, que era uma praia utópica e distópica. É como se a Barra da Tijuca [na zona oeste do Rio de Janeiro] não tivesse dado certo. Era um projeto imobiliário da década de 70, que na década de 80 faliu, porque a salinidade que havia no ar era muito alta, então os prédios começaram a se desintegrar. Portanto, para responder sua pergunta, eu não acho que há um projeto consciente, ou melhor, deliberado. Mas eu acho que tem a ver com certo desejo de anarquia, no final das contas. Primeiro, porque acho muito importante deixar os personagens, no fim de cada filme, num pequeno abismo. Acho que tem que haver um “a seguir”, embora eu não me interesse sobre o que é esse “a seguir”.

A Suely, por exemplo, tinha que ir para um lugar que, para ela, seria melhor do que o lugar em que ela estava. Aí eu soltei “Porto Alegre”, por ser o lugar mais longe onde ela podia chegar saindo do Ceará em direção ao sul, e por causa do nome, porque ela estava vivendo em um lugar onde não tinha água e que era no interior, então eu queria um lugar que tivesse um porto, onde houvesse água e que fosse alegre. É simplesmente uma pequena tradução de uma pequena utopia da personagem. A personagem vai atrás de uma utopia. Berlim, nesse filme novo, é um lugar que eu acho encantador. É quase como se fosse Porto Alegre de alguma maneira.

O Paixão Nacional, um curta que eu fiz há alguns anos baseado num fato real, era sobre um garoto, que era flanelinha no Galeão, que tentou fugir do país dentro de um avião, mas se escondeu no compartimento de carga e morreu congelado. Seu corpo foi encontrado na Europa. E o filme conta essa trajetória. O filme dura nove minutos, porque é o tempo do corpo congelar e perder a memória. São nove minutos da memória desse menino indo embora. Mas é quase como se eu o absorvesse e permitisse que ele tivesse uma experiência transformadora, a partir do momento em que ele fica dormente. Então, na realidade, há isso nos filmes. Eu nunca tinha pensando nisso direito, mas há esse desejo de catapultar o personagem para um lugar abissal onde ele tudo pode, onde tudo vai ser possível. Eu também acho que é muito violento, enquanto alguém que imaginou aquilo, eu descrever o que é o possível. Mas é verdade, está em todos os filmes mesmo.

Cinética: Nos últimos 12 anos, essa demanda do exílio, a necessidade de partir, tem sido muito recorrente na dramaturgia audiovisual brasileira. O que é curioso porque não é um momento histórico em que isso está sendo uma questão para nós. Se fosse na década de 70, seria o exílio político...

Karim Aïnouz: Eu estava pensando hoje no último plano de Matou a Família e Foi ao Cinema [de Julio Bressane], por exemplo. Acho que são exílios diferentes. Até, por exemplo, no filme do Walter [Salles, Terra Estrangeira], para mim não é o exílio enquanto estado-nação. Acho que Terra Estrangeira fala de um exílio que é um descontentamento com o aqui e agora. Isso eu descobri depois que O Céu de Suely estava pronto, que é um exílio utópico.

Cinética: Por isso a “demanda” de exílio, porque não importa o lugar onde você vai chegar, porque a demanda vai continuar existindo para você partir de novo. É uma demanda existencial e de deslocamento pelo corpo.

Karim Aïnouz: Realmente. Primeiro porque eu acho que existe um esgotamento de utopias de várias ordens, a partir de 1989, com o fim da União Soviética, com o fim de uma fantasia social que fosse de outra ordem. E O Céu de Suely também vem muito a reboque de uma coisa que me aflige demais, que é uma utopia que seja através do corpo e que seja um lugar que eu não sei qual é. Porque eu acho que existe um projeto de utopia hoje, no Brasil e no mundo, que é muito assustador, que é uma utopia religiosa: a possibilidade de um exílio para um lugar sobrenatural. Isso anula qualquer possibilidade de uma utopia física, material, imanente, não-transcendente. Isso para mim é muito importante em todos os meus filmes. Que, na realidade, é uma tentativa de utopia material, por mais que não seja explicada, mas através de seu corpo. Há um desejo meu, que é um pouco programático até, mas é um programático com certa liberdade, de que o espectador, no final dos filmes, tenha uma possibilidade de utopia que ele possa exercitar. Um desejo de imaginar um comportamento, uma experiência, que o espectador possa vivenciar e que não seja transcendente.

 

O individual como campo político

Cinética: Quando você fala da utopia do corpo, na verdade deixa de ser uma utopia, porque a utopia lida com o espaço, com o lugar ideal, mas o lugar ideal não vai existir nunca. A utopia lida com a noção de coletivo e de comunidade, como conceito. E você está fazendo a afirmação do indivíduo. Ou seja, não havendo a possibilidade de uma transformação da comunidade, resta ao indivíduo transformar sua trajetória. Essa é, digamos assim, uma pauta de seu cinema. Mas essa afirmação do sujeito não é, de certa maneira, despolitizante, no sentido de que, com ela, se abre a mão do projeto de transformação da comunidade?

Karim Aïnouz: Quando penso no cinema enquanto forma de discurso, eu não acho que seja o melhor lugar para se fazer o discurso do coletivo. Eu não sei como fazer isso no cinema e eu não sei se acredito no cinema que pretende fazer isso enquanto discurso. Eu me sinto completamente desarticulado e atomizado. Acho que o experiencial dentro de uma narrativa audiovisual é mais potente do que um discurso político do coletivo. Há no cinema uma coisa da sensorialidade e suspensão daquele espaço que é bem diferente da TV.

Esse é um discurso delicado, que pode facilmente ser colocado como um discurso da apologia do indivíduo, do tipo “se eu mudar, o mundo vai mudar”, essa coisa da microfísica do poder. Mas, ao mesmo tempo, é a única maneira através da qual eu consigo falar sobre algo que me incomoda: através desse discurso que é o discurso do indivíduo. O meu paradigma para algumas dessas questões são alguns dos filmes do Costa-Gavras. Fico pensando se eu queria fazer isso... Mas ao mesmo tempo eu me lembro da raiva, da vontade que eu tinha de fazer algo quando eu vi Z, aos 15 anos de idade. Então eu não sei, acho que não encontrei o jeito de se fazer isso. Talvez um dia eu encontre, mas eu tenho essa intuição de que o cinema não é a melhor mídia para isso.

 

O contemporâneo no arcaico

Cinética: Chama atenção em O Céu de Suely a relação com dinheiro, com o valor que as coisas têm, e como aquele universo do sertão, supostamente um universo mais preservado, é radicalmente atravessado não só pelo consumo como pelos apetrechos tecnológicos. E é incrível essa contradição entre uma suposta tradição e os elementos da modernidade, que é uma temática do Jia Zhang-ke muito forte, que está em O Mundo, um filme que é atravessado por esses sinais da modernidade.

Karim Aïnouz: Eu sempre me incomodei muito, minha vida inteira, com essa imagem do sertão como espaço mítico. Quando fiz o Carranca com Marcelo Gomes, a gente foi atrás de um sertão pop, porque achava que havia um apelo pop ali, das cores, por exemplo. Mas era totalmente intuitivo, vindo de uma reflexão a partir do que a gente tinha estudado antes, lendo vários ensaios sobre a questão da representação da modernidade e da contemporaneidade. No sertão há algo muito evidente, que é o fato de que ele nunca se industrializou. A cultura do gado, especificamente no Ceará, foi marcada por um nomadismo mesmo, com os tropeiros que iam de um lugar para outro. Na faixa da Zona da Mata, você tinha uma cultura mais sedentária, por causa da cultura da cana de açúcar. E depois disso acabou.

Com exceção de Recife na década de 50, quando você teve um movimento de industrialização, o sertão ficou meio paradão ali, abandonado economicamente, depois desses ciclos de monocultura. Isso para mim ficou muito evidente quando a gente chegou em Caruaru. Pois há aquela cena da feira de Caruaru no documentário com o Marcelo, onde realmente havia temporalidades muito diferentes, mas que estavam aglutinadas ali num só tempo, que era o tempo do agora. Uma coexistência, que é um pouco o que deve estar acontecendo na China nesse momento, e estou pensando no Jia Zhang-ke e no Hou Hsiao-hsien. Eu acho que são temporalidades que são muito distantes e que se aglutinam. Em São Paulo, na realidade, isso não tem nenhum impacto, porque são várias camadas: há a camada do café, a camada da indústria, depois a camada dos serviços e a camada do trânsito de objetos que são muito contemporâneos.

Lembro que um amigo fez um filme, um curta-metragem, sobre vaqueiros, em que esses vaqueiros não usavam mais animais, mas usavam motos para tomar conta do rebanho. Então, para mim, era uma coisa que eu queria muito implodir um pouquinho, que a gente começou a fazer lá no filme com o Marcelo e que em O Céu de Suely era muito importante. E o [diretor de arte] Marquinhos Pedroso foi muito importante nisso, porque ele é um cara muito contemporâneo, muito inquieto, e toda vez que a gente caía para o folclórico ele nos lembrava que aquilo não existia, que era uma fantasia que a gente tinha daquele lugar. A gente ficou um tempão ali em Iguatu tentando observar como eram essas negociações objetuais. A cidade era lotada por lojas de 1,99, com coisas que eram muito coloridas, mais coloridas ali do que em qualquer outro lugar. Porque ali era tudo tão monocromático...

Então eu comecei a observar como aqueles objetos que eram vendidos em Iguatu se propagavam no cotidiano da cidade, no lugar onde você ia comer, onde ia cortar o cabelo. Nesse sertão que a gente observou havia um desejo muito claro de se preencher com cor um lugar que não tinha cor. E que essa invasão de produtos made in Taiwan ou made in China servia muito bem. Há uma cena sobre isso no Carranca, em um lugar que vende flores artificiais. Era um jardim que tinha na feira, à noite, só com flores de plástico, e aquilo vende como água no deserto. Havia esse desejo de olhar para frente e não de olhar para um país que está sendo dominado pela globalização, que está perdendo sua identidade e que está deixando de ser autêntico. Na verdade, a autenticidade mora exatamente nesse lugar que é o lugar do sincrético. A questão é como você se apropria disso e o que você faz com isso.

Cinética: E é muito interessante isso, primeiro, pelos produtos serem made in China, porque não é uma conexão só simbólica, é uma conexão comercial avassaladora entre o sertão e a China; segundo, é como esse sincretismo e essas tecnologias estão, no caso de O Céu de Suely, atravessando o próprio corpo dela. Aquela mecha loura é justamente um signo da modernidade que opera um deslocamento naquela figura.

Karim Aïnouz: Exatamente. E é um signo estranho, porque é um signo mal acabado.

Cinética: Isso. Ele conota uma precariedade e, ao mesmo tempo, esse corpo “precário” age sempre como resposta a uma inadequação, seja uma inadequação existencial, seja social.

Karim Aïnouz: Completamente. As roupas, por exemplo. A gente ficou muito preocupado de que as roupas fossem erradas para aquele corpo. Há uma cidade no Capibaribe, interior de Pernambuco, que é tomada por indústrias de confecção. E todo dia há uma feira de roupas, mas só com roupas feitas de tecido sintético, que é o resto, absolutamente inadequado para aquele clima. Então há o fato das roupas serem muito justas e tal, mas que carrega uma graça. E como é um tecido vagabundo, mas sintético, ele desbota muito pouco, trazendo umas cores que são totalmente improváveis, enquanto os modelos são mal desenhados para aqueles corpos. É como a comida. A comida no sertão é completamente absurda, porque, como não se tem dinheiro, não se tem carne, come-se muito carboidrato, então o que aquilo faz com o corpo é muito específico. Então havia uma vontade de brincar com isso, que no sertão é muito mais flagrante do que em qualquer outro lugar.

Cinética: Nesse trabalho com o Marcelo Gomes, houve da parte de vocês, sobretudo na hora de finalizar, uma disposição de tornar aquele sertão um território em conexão com outras regiões do mundo? Porque há momentos em que o filme parece ter sido realizado no Oriente Médio, sobretudo na trilha sonora...

Karim Aïnouz: No Carranca havia algo para mim muito pessoal. Meu pai é da Argélia e eu nunca fui para a Argélia. Então a Argélia para mim sempre foi um território oriental, no sentido de alteridade. Quando fui visitar meu pai, que mora na França, ele me deu um monte de CDs de um cantor argelino, que é o cantor que está em Carranca. E eu ficava me perguntando como minha mãe se apaixonou pelo meu pai e vice-versa. Mas quando eu ouvi aquela música... E então quando eu estava montando o Carranca, lembrei da música naquele momento em que eles chegam em Juazeiro. E ali eu a usei muito como uma necessidade que eu tinha de conectar, quase como se os trovadores estivessem cantando ali no sertão. Havia um desejo ali de dizer que esse lugar não é tão específico assim, que ele poderia ser um outro lugar no mundo.

E é engraçado, porque, quando a gente começou a fazer o Carranca, a primeira idéia nem era sobre o sertão, era um projeto que eu queria fazer com o Marcelo, no qual a gente queria aglutinar um monte de feiras-livres do mundo inteiro e ver como elas dialogavam, de onde vinha essa matriz de mercado a céu aberto que vendia coisas “autênticas”. E eu achava que a Argélia, para onde eu nunca tinha ido, deveria ter alguma coisa muito semelhante com o sertão, então coloquei aquela música de propósito, para criar um estranhamento. Eu tentava assim entender a relação que aquele deserto tinha com minha outra origem argelina. E agora, em 2008, vamos fazer uma nova versão do filme, em longa-metragem, que é a história de uma pessoa que encontrou aquele material, como se aquele material tivesse sido perdido por alguém que filmou o sertão. É como se fosse a narrativa de alguém que fizesse aquele percurso dos lugares onde aquele material foi filmado. Acho que o filme terá um quê de travelogue, sem nenhum fio narrativo. Será um mosaico de fragmentos.

 

O preço das coisas

Cinética: A questão das condições materiais em O Céu de Suely é muito sui generis: as coisas têm preço, são valoradas. Então quando a Suely vai comprar a passagem, o trajeto do deslocamento dela é centimetrado pelo preço; a avó de Suely trabalha num restaurante por quilo; no posto Veneza há uma placa de promoção em primeiro plano. O valor da rifa, o tempo todo. Acho isso um tipo de construção absolutamente politizante.

Karim Aïnouz: Isso começou numa leitura do Cidade Baixa com o Eduardo Coutinho. Sérgio mostrou o roteiro de Cidade Baixa para o Coutinho, e ele perguntou: “mas esse povo não trabalha não? Eles ficam viajando de barco, ela fazendo programa. Mas quanto custa o programa? Quanto custa isso e aquilo?”. E aí, em O Céu de Suely, isso me pareceu importantíssimo. Porque, de novo, voltamos à questão de como se pode falar de questões políticas e questões de classe. Essa foi uma das maneiras que a gente encontrou ali de falar de questões objetivas. Acho que as condições de vida de cada um são absolutamente ditadas em função disso, principalmente num lugar onde a regra básica é o salário mínimo. E então há uma questão fundamental: mostrar que as pessoas trabalham.

Eu briguei muito com os produtores por causa disso, pois há muitas cenas que não têm função narrativa, mas têm função descritiva: “essa mulher trabalha num lugar quente, tem que ficar carregando essas panelas”. É árduo, é fisicamente difícil, o dinheiro não cai como essa chuva que está caindo aqui. E, curiosamente, nessa série da HBO, Alice, é uma dificuldade falar disso, não se fala de dinheiro, não há interesse nessa questão. Aí eu fiquei pensando, como um contra-plano, que a novela nunca fala de dinheiro, ninguém trabalha, só a empregada doméstica. E você não sabe quanto ela ganha, mas deve ganhar super bem, porque se veste de um jeito...

Então para mim era importante falar do trabalho, de quanto o trabalho custa, o quanto esse custo permite e quanto isso determina o jeito que você vive. Era importante que isso não fosse a questão do filme, mas que fosse a trama do filme, que estivesse presente o tempo inteiro. Como é que alguém que ganha o salário mínimo consegue pagar as coisas? Como é que ela consegue acordar no dia seguinte? É isso que eu falo da questão de classe neste país. Acho que isso é determinante do cotidiano de todos nós. A alimentação, por exemplo. Eu fiz um plano documental em uma dessas passarelas do centro de São Paulo, e eu ficava olhando para essas pessoas enquanto pensava como elas eram mal alimentadas.

Por isso, acho que é fundamental falar das condições materiais. Em qualquer trabalho que construa um personagem não há como não se falar disso, porque é isso que determina as coisas ao final do dia. E eu falo isso sem nenhuma autocomiseração. Teve uma época em que eu morava em Nova York e eu não sabia direito o que eu queria fazer da vida. Ninguém me mandava dinheiro e eu tinha que pagar aluguel, então minha vida virou sobre aquilo. Na realidade, trata-se disso: de como você consegue pagar as contas, de como você consegue se vestir, que roupa que você consegue usar, que comida você consegue comer. Talvez aí esteja um jeito de falar dessa aflição e, ao mesmo tempo, dar conta do coletivo.

Cinética: Dessa forma você vai estar lidando de uma maneira mais prática com o que é a sociedade na vida cotidiana de uma pessoa. Porque é onde a estrutura política e social determina a experiência de alguém. A falta de dinheiro, o lugar onde se vive, a estrutura ou não do lugar onde se vive. Por exemplo, quando Suely chega com o filho na casa da sogra, a sogra está com um sutiã de alça de silicone, num casebre sem cimento, de tijolo aparente, mas com uma super geladeira, e ela [a sogra] dá ao menino um controle remoto para ele brincar... aquilo é de uma sofisticação tão sutil...

Karim Aïnouz: Mas é uma coisa importantíssima. Foi o Coutinho quem me chamou a atenção pra isso.

 

O corpo inadequado

Cinética: Voltando à questão do corpo, eu sinto que em seu projeto de cinema o corpo é sempre um elemento de resposta a uma inadequação ao espaço em que vive o personagem. E a potência que eu vejo nesses personagens vem, justamente, dessa inadequação de um corpo que não se adapta. Isso me lembra muito uma frase do Godard no Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela, em que a personagem dizia: “tenho uma subjetividade que me exila e uma objetividade que me oprime”. Então, como situar um corpo entre a opressão do meio social e o exílio existencial?

Karim Aïnouz: Realmente há isso em todos os meus personagens, porque eu acho que é uma condição necessária. No momento em que há uma adequação é a morte. Claro que, dependendo do personagem isso é dramatizado, potencializado, exponencializado de maneiras diferentes e por razões diferentes, mas eu acho que não saberia falar de personagens que são adequados. Eu até gostaria um dia, talvez, seria um grande desafio. Mas não sei o quanto isso é dramático, o quanto se presta ao discurso cinematográfico. Acho que essa inquietação é sempre produtiva e, quando ela não existe, é perigoso. Se a gente acha que está tudo ok, tem alguma coisa errada. No caso do Madame Satã, se trata de uma coisa muito específica, porque eu queria falar da raiva, de uma postura que não fosse a cordialidade, mas que fosse reativa, violenta, que não fosse de maneira nenhuma cordial e educada. Já no personagem da Hermila, há outras cores, é um personagem que é inadequado pelo silêncio, pelo jeito como ele anda. Ela tem raiva, mas a raiva é filtrada de um outro jeito. Eu acho que tem uma coisa agressiva quando ela diz “eu vou fazer um sorteio e o prêmio serei eu”. Acho que há uma postura de confrontação.

Esses personagens inadequados possibilitam, então, um ato de confrontamento, que eu acho, especificamente falando do Brasil, que é uma coisa muito importante. Não o confronto pelo confronto, enquanto exercício de uma violência meio narcísica, mas o confronto enquanto atitude promotora de movimento e de mudanças. Não é que eu sinta falta de confronto nesse país, porque ele é cheio de confrotamentos, mas de um confronto que ande para frente, que promova uma mudança e que indique que ali pra frente pode vir a ser melhor.

Karim Aïnouz formou-se em arquitetura (UNB) e em Teoria do Cinema (Universidade de Nova York). Estreou como diretor de longa-metragem com Madame Satã, que foi selecionado para a mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes e recebeu mais de 40 prêmios em festivais nacionais e internacionais. É co-autor dos roteiros de Abril Despedaçado (Walter Salles), Cidade Baixa (Sérgio Machado) e Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes). O Céu de Suely é seu segundo longa-metragem.