A recusa ao “flagrar o real”
Cinética: Grosso modo, a biopolítica hoje diz respeito ao modo como a vida se tornou o núcleo da política, da economia e da produção audiovisual contemporâneas, resultando em um crescente valor de mercado que essa idéia de “homem ordinário” e de “autenticidade” vem adquirindo. Por que essa ascensão do homem ordinário? Por que essa ascensão dos reality
shows? Por que essa demanda por autenticidade? A performance da autenticidade pauta hoje a ponta do cinema brasileiro. Pois existe uma valoração daquilo que supostamente se aproxima, da maneira mais fiel possível, ao que é a vida. A autenticidade hoje é um valor artístico e um valor de mercado, seja através do documentário, seja através da ficção, que se cerca de uma série de procedimentos para conseguir esse efeito de captura da vida. Isso está muito valorizado na agenda contemporânea.
Karim Aïnouz: Eu ganhei um prêmio com O
Céu de Suely no festival de Mar del Plata, na Argentina, e a menção que justificava a premiação do filme dizia que ele tinha uma relação muito forte com o real. Comecei a pensar que existe um conjunto de filmes brasileiros contemporâneos que tentam captar o “real”. E eu acho que me coloquei de forma errada quando falei de O
Céu de Suely, porque, na realidade, eu nunca tive a intenção de fazer um filme realista. Na ocasião, eu disse em entrevistas e a críticos que os atores moraram na casa onde eu filmei, que o roteiro era reescrito o tempo todo, que havia improvisação, que a gente conseguia filmar de uma maneira discreta, podendo usar quem estava passando no lugar. Comecei a ouvir esse discurso [sobre “captar o real”] e pensei: “peraí, tem alguma diferença aqui entre o que eu fiz e esse discurso”.
Se em Madame Satã havia um personagem
de exceção, heróico, em O
Céu de Suely eu queria muito fazer um filme
sobre um personagem comum. Quando passou pela primeira
vez no Festival de Veneza, o primeiro embate crítico
que eu tive foi em relação ao Neo-realismo italiano.
As pessoas diziam que o filme seguia a tradição neo-realista.
Porque existe um filme italiano da tradição neo-realista
chamado La
Riffa, em que havia o assunto rifa no filme,
então O Céu de Suely ficou eternamente amalgamado
por essa perspectiva neo-realista. Quando a gente
olha para a tradição do Neo-realismo, a construção
da dramaturgia era sempre via questões financeiras,
uma questão objetual. O conflito do personagem era
o que ele podia ter ou não ter.
Então houve uma crítica da Variety que descrevia o filme como se fosse
a história de uma menina muito pobre, com uma vida muito dura, que tinha
que conseguir dinheiro para ir embora. Na verdade, o filme para mim nunca
foi nada disso, mas é engraçado como ele foi recebido dessa maneira. Para
mim, o filme era a história de uma pessoa comum que tinha um problema afetivo
muito forte. Ela tinha então que resolver isso de algum jeito e resolve
atrapalhadamente, da forma que ela resolveu, para poder viver uma outra
vida. Quando eu comecei a pensar no Céu de Suely, eu queria falar do anônimo,
porque eu via que o anônimo nunca era representado no jornalismo cotidiano,
embora o Big Brother já existisse naquela época. Eu ficava muito curioso
de ver como era o problema afetivo de alguém que não tem dinheiro. Não
como era a vida dele por não ter dinheiro, mas como era a vida cotidiana
de uma pessoa que vive numa situação financeira que não é confortável,
mas que não é miserável também.
Aquelas estratégias que eu usei para fazer o filme, em nenhum momento eram
para fazer um filme que fosse perto da “verdade”, mas sim uma maneira de
eu ter um material com o qual eu pudesse criar um discurso na montagem.
Que é um discurso completamente construído, completamente artificial. O
maior insulto para mim era quando diziam que o filme tinha “uma coisa documental”.
O que é “uma coisa documental’? Eu sinto que a gente está criando um discurso
em que as coisas se colapsam. Por que documental é o quê? Reportagem de
televisão? É esse que é o registro que de alguma maneira é fiel ao real, é autêntico
e capta a verdade? Porque quando se fala de uma nova vertente do cinema
brasileiro, eu não acho que é documental, mas sim reportagem de televisão. É muito
diferente do documental. A única diferença do documental para a ficção é que
você não faz take dois. Mas há uma escolha, um recorte. Eu estou dizendo
tudo isso porque eu tenho uma grande resistência ao cinema que se pretende “flagrar
o real”, que pretende ser um não-olhar, ser um acidente. Eu até procuro
o acidente quando estou encenando, acho que é importante porque ele tem
algum frescor, mas você pega esse acidente e constrói um discurso a partir
dele. É muito diferente de você pegar um acidente bruto. Acidente bruto
são as câmeras da CNN ou os caras que mandam um filme de celular sobre
a bomba que caiu hoje na Argélia. Acho muito perigoso esse discurso. Muito
delicado enquanto postura política, porque parece ser uma postura neutra,
mas na verdade ela não é.
Cinética: Em Céu de Suely, há uma tentativa de integrar experiências da personagem
ao espaço, mas buscando reter aquelas experiências em vez de transformá-las em
sintomas de ambiente...
Karim Aïnouz: Tem a ver com o meu próprio desejo de documentar! Eu não nego meu
desejo de documentar...
Cinética: E aí está a matéria-prima para o filme ser vinculado a uma idéia de
realismo. Mas não a um realismo que vai fazer uma interpretação da realidade,
localizar de onde vêm os problemas dela. Um realismo mais centrado no fenômeno
da experiência.
Karim Aïnouz: Na experiência em si, exatamente...
Cinética: E isso é uma outra vertente do cinema hoje, em que se tem uma preocupação
com a experiência. Os irmãos Dardenne, por exemplo. Eles não estão interessados
na origem do desemprego da Rosetta. Eles estão interessados na tragédia que é o
desemprego para a Rosetta, a experiência dela...
Karim Aïnouz: Há uma coisa da repetição ali, em Rosetta, que é de uma outra ordem.
Aquela coisa das botas, em que ela tira e põe as botas quando sai daquele lugar,
repete-se no filme. É diferente da questão da causalidade. É da ordem da experiência.
Tanto que o som, se você for ver o som de O Filho, você ouve o barulho da respiração,
o cara está respirando lá em primeiríssimo plano. São os barulhos do corpo, o
quanto o corpo está sentindo em mexer naquelas madeiras, colocá-las naquelas
pilhas. É diferente, é outra coisa.
Utopia no deslocamento
Cinética: Em Madame
Satã, Satã usa o corpo para se impor ao espaço
e para lá permanecer.
Já em O Céu de Suely, Suely vai usar o seu corpo para sair
de seu espaço. Existe
esse vínculo, embora ambíguo e não fechado, entre o deslocamento
físico e uma
certa potência de vida, uma certa abertura para o desconhecido
que pode ser potente. E pelo que sabemos de Alice [série
que está sendo realizada por Karim Aïnouz
para o canal HBO], é a confirmação dessa potência. Seria
como se a Suely tivesse chegado ao Sudeste, e você a estaria
acompanhando, mostrando que há uma potência
aí. Haveria então de sua parte um certo elogio à mobilidade?
Seria um projeto seu anterior aos filmes ou isso vai saindo
das dramaturgias?
Karim Aïnouz: Eu não acho que seja um projeto deliberado.
Há um projeto deliberado
que é a afirmação da vida, uma afirmação da vida que se exerce
no caos, na desorganização,
no não-planejamento. Isso tem. E é curioso falar isso, pois
estou desenvolvendo um filme novo que é muito fruto do Alice,
não enquanto conteúdo, mas enquanto
processo. Porque quando eu comecei a fazer Alice eu estava
sem nenhum projeto de longa, estava muito desencantado, e
este ano inteiro eu fui encontrando, sem
nenhuma aflição, sem nenhuma angústia, o que realmente me
interessava em falar. E nesse projeto há, de novo, uma questão
do deslocamento muito forte, um personagem muito forte e
uma perspectiva do porvir.
Na realidade, é um projeto que
começa
numa praia no Ceará, que se chama Praia do Futuro, onde eu
fui criado, e termina em Berlim. Eu nem vou contar a história
pois não sei direito qual ela é, mas
eu tenho uma intuição sobre os personagens. A primeira parte
do filme é a história
de um cara que trabalha como salva-vidas nessa praia, que é a
praia com o maior número de afogamentos do Brasil. E a segunda
parte do filme, que começa em Hamburgo
e termina em Berlim, é a história de uma personagem que está nessa
primeira parte, mas que vai pra Hamburgo atrás de algo, que
se descobre ao final que é um irmão
dela que morreu. Acho que é uma coisa muito intuitiva.
Nesse filme novo, eu não sentei e pensei “eu quero
fazer um filme sobre isso”. Eu queria fazer um filme
sobre uma praia, que era uma praia utópica
e distópica. É como se a Barra da Tijuca [na zona oeste
do Rio de Janeiro] não tivesse dado certo. Era um projeto
imobiliário da década de 70, que
na década de 80 faliu, porque a salinidade que havia
no ar era muito alta, então os prédios começaram a
se desintegrar. Portanto, para responder sua pergunta,
eu não acho que há um projeto consciente, ou melhor,
deliberado. Mas eu acho que tem a ver com certo desejo
de anarquia, no final das contas.
Primeiro, porque acho muito importante deixar os personagens,
no fim de cada filme, num pequeno abismo. Acho que
tem que haver um “a seguir”, embora
eu não me interesse sobre o que é esse “a seguir”.
A Suely, por exemplo, tinha que ir para
um lugar que, para ela, seria melhor
do que o lugar em que ela estava. Aí eu soltei “Porto
Alegre”, por ser
o lugar mais longe onde ela podia chegar saindo do
Ceará em direção ao
sul, e por causa do nome, porque ela estava vivendo
em um lugar onde não
tinha água e que era no interior, então eu queria um
lugar que tivesse um porto, onde houvesse água e que
fosse alegre. É simplesmente uma pequena
tradução de uma pequena utopia da personagem. A personagem
vai atrás de
uma utopia. Berlim, nesse filme novo, é um lugar que
eu acho encantador. É quase
como se fosse Porto Alegre de alguma maneira.
O Paixão
Nacional, um curta que eu fiz há alguns anos baseado
num fato real, era sobre um garoto, que era flanelinha
no Galeão, que tentou fugir do país dentro de um avião,
mas se escondeu no compartimento de carga e morreu
congelado. Seu corpo foi encontrado na Europa. E o
filme conta essa trajetória. O filme dura
nove minutos, porque é o tempo do corpo congelar e
perder a memória. São
nove minutos da memória desse menino indo embora. Mas é quase
como se eu o absorvesse e permitisse que ele tivesse
uma experiência transformadora,
a partir do momento em que ele fica dormente. Então,
na realidade, há isso
nos filmes. Eu nunca tinha pensando nisso direito,
mas há esse desejo de
catapultar o personagem para um lugar abissal onde
ele tudo pode, onde tudo vai ser possível. Eu também
acho que é muito violento, enquanto alguém
que imaginou aquilo, eu descrever o que é o possível.
Mas é verdade, está em
todos os filmes mesmo.
Cinética: Nos últimos 12 anos, essa demanda do exílio, a
necessidade de partir, tem sido muito recorrente na dramaturgia
audiovisual brasileira. O que é curioso
porque não é um momento histórico em que isso está sendo
uma questão para nós.
Se fosse na década de 70, seria o exílio político...
Karim Aïnouz: Eu estava
pensando hoje no último
plano de Matou a Família e Foi
ao Cinema [de Julio Bressane], por exemplo. Acho
que são
exílios diferentes.
Até, por exemplo, no filme do Walter [Salles, Terra
Estrangeira], para mim não é o
exílio enquanto estado-nação. Acho que Terra Estrangeira fala de um exílio que é um
descontentamento com o aqui e agora. Isso eu descobri
depois que O Céu de Suely estava pronto, que é um exílio utópico.
Cinética: Por isso a “demanda” de exílio, porque não importa o lugar onde você vai
chegar, porque a demanda vai continuar existindo para
você partir
de novo. É uma
demanda existencial e de deslocamento pelo corpo.
Karim Aïnouz: Realmente. Primeiro porque eu acho que
existe um esgotamento de utopias de várias ordens,
a partir de 1989, com o fim da União Soviética, com
o fim de uma fantasia social que fosse de outra ordem.
E O Céu de Suely também
vem muito a reboque de uma coisa que me aflige demais,
que é uma
utopia que seja através do corpo e que seja um lugar
que eu não sei qual é. Porque eu acho que
existe um projeto de utopia hoje, no Brasil e no mundo,
que é muito
assustador, que é uma utopia religiosa: a possibilidade
de um exílio para um lugar sobrenatural.
Isso anula qualquer possibilidade de uma utopia física,
material, imanente, não-transcendente.
Isso para mim é muito importante em todos os meus filmes.
Que, na realidade, é uma
tentativa de utopia material, por mais que não seja
explicada, mas através de
seu corpo. Há um desejo meu, que é um pouco programático
até, mas é um programático
com certa liberdade, de que o espectador, no final
dos filmes, tenha uma possibilidade de utopia que ele
possa exercitar.
Um desejo de imaginar um comportamento, uma
experiência, que o espectador possa vivenciar e que
não seja
transcendente.
O individual como campo político
Cinética: Quando você fala da utopia do corpo, na verdade deixa de ser uma utopia,
porque a utopia lida com o espaço, com o lugar ideal,
mas o lugar ideal não vai
existir nunca. A utopia lida com a noção de coletivo
e de comunidade, como conceito. E você está fazendo
a afirmação
do indivíduo. Ou seja, não havendo a possibilidade
de uma transformação da comunidade, resta ao indivíduo
transformar sua trajetória.
Essa é, digamos assim, uma pauta de seu cinema. Mas
essa afirmação do sujeito
não é, de certa maneira, despolitizante, no sentido
de que, com ela, se abre a mão do projeto de transformação
da comunidade?
Karim Aïnouz: Quando penso no cinema enquanto forma de discurso, eu não acho
que seja o melhor lugar para se fazer o discurso do
coletivo. Eu não sei como
fazer isso no cinema e eu não sei se acredito no cinema
que pretende fazer isso enquanto discurso. Eu me sinto
completamente
desarticulado e atomizado. Acho
que o experiencial dentro de uma narrativa audiovisual é mais
potente do que um discurso político do coletivo. Há no
cinema uma coisa da sensorialidade e suspensão daquele
espaço que é bem
diferente da TV.
Esse é um discurso delicado, que
pode facilmente ser colocado como um discurso da apologia
do indivíduo, do
tipo “se eu mudar, o mundo vai mudar”, essa
coisa da microfísica do poder. Mas, ao mesmo
tempo, é a única
maneira através
da qual eu consigo falar sobre algo que me incomoda:
através desse discurso
que é o discurso do indivíduo. O meu paradigma
para algumas dessas questões
são alguns dos filmes do Costa-Gavras. Fico pensando
se eu queria fazer isso... Mas ao mesmo tempo
eu me lembro da raiva, da vontade que eu tinha
de fazer algo quando eu vi Z, aos 15 anos de
idade.
Então eu não sei, acho
que não encontrei o jeito de se fazer isso. Talvez
um dia eu encontre, mas eu tenho essa intuição
de que o cinema não é a melhor mídia para isso.
O contemporâneo no arcaico
Cinética: Chama atenção em O
Céu de Suely a relação com dinheiro, com o valor
que as coisas têm, e como aquele universo do sertão,
supostamente um universo mais preservado, é radicalmente
atravessado não
só pelo consumo como pelos apetrechos
tecnológicos. E é incrível essa contradição entre uma
suposta tradição e os elementos
da modernidade, que é uma temática do Jia Zhang-ke
muito forte, que está em O
Mundo, um filme que é atravessado por esses sinais
da modernidade.
Karim Aïnouz: Eu sempre me incomodei muito, minha vida inteira, com essa imagem
do sertão como espaço mítico. Quando fiz o Carranca com Marcelo Gomes, a gente foi atrás de um sertão pop,
porque achava que havia um apelo pop ali, das cores,
por exemplo. Mas era
totalmente intuitivo, vindo de uma reflexão a partir
do que a gente tinha estudado antes, lendo vários ensaios
sobre a questão da representação
da modernidade e da contemporaneidade. No sertão há algo
muito evidente, que é o
fato de que ele nunca se industrializou. A cultura
do gado, especificamente no Ceará, foi marcada por
um nomadismo mesmo, com os tropeiros que iam de um
lugar para outro. Na faixa
da Zona da Mata, você tinha uma cultura mais sedentária,
por causa da cultura da cana de açúcar. E depois disso
acabou.
Com exceção de Recife na década de 50, quando
você teve
um movimento de industrialização, o sertão ficou meio
paradão
ali, abandonado economicamente, depois desses ciclos
de monocultura. Isso para mim ficou muito evidente
quando a gente chegou em Caruaru. Pois há aquela
cena da feira de Caruaru no documentário com
o Marcelo, onde realmente havia temporalidades
muito diferentes,
mas que estavam aglutinadas ali num só tempo,
que era o tempo do agora. Uma coexistência,
que é um
pouco o que deve estar acontecendo na China
nesse momento, e estou pensando no Jia Zhang-ke
e no
Hou Hsiao-hsien.
Eu acho que são temporalidades que são muito
distantes e que se aglutinam. Em São Paulo,
na realidade, isso não tem nenhum impacto,
porque são várias
camadas: há a camada do café, a camada da indústria,
depois a camada dos serviços e a camada do
trânsito
de objetos que são muito contemporâneos.
Lembro que um amigo fez um filme, um
curta-metragem, sobre vaqueiros, em que esses vaqueiros
não
usavam mais animais, mas usavam motos para
tomar conta
do rebanho. Então, para mim, era uma coisa
que eu queria muito implodir um pouquinho,
que a gente começou
a fazer lá no filme
com o Marcelo e que em O Céu de Suely era muito
importante. E o [diretor de arte] Marquinhos
Pedroso foi muito
importante nisso, porque ele é um
cara muito contemporâneo, muito inquieto, e
toda vez que a gente caía
para o folclórico ele nos lembrava que aquilo
não
existia, que era uma fantasia que a gente
tinha daquele lugar. A gente ficou um tempão
ali em Iguatu tentando observar como eram
essas negociações
objetuais. A cidade era lotada por lojas
de 1,99, com coisas que eram muito coloridas,
mais coloridas ali do que em qualquer outro
lugar.
Porque ali era tudo tão monocromático...
Então eu comecei a observar como aqueles objetos
que eram vendidos em Iguatu se propagavam no
cotidiano
da cidade, no lugar onde você ia comer, onde
ia cortar o cabelo. Nesse sertão que a gente
observou havia um desejo muito claro de se preencher
com cor
um lugar que não tinha cor. E que essa invasão
de produtos made in Taiwan ou made
in China servia
muito bem. Há uma cena
sobre isso no Carranca, em um lugar que vende
flores artificiais. Era um jardim que tinha na
feira, à noite,
só com flores de plástico, e aquilo
vende como água no deserto. Havia esse desejo
de olhar para frente e não
de olhar para um país que está sendo dominado
pela globalização, que está perdendo
sua identidade e que está deixando de ser autêntico.
Na verdade, a autenticidade mora exatamente nesse
lugar que é o lugar do sincrético. A questão é como
você se apropria disso e o que você faz com isso.
Cinética: E é muito interessante isso, primeiro, pelos produtos serem made
in China, porque não é uma conexão só simbólica, é uma
conexão
comercial avassaladora entre o sertão e a China; segundo, é como
esse sincretismo e essas tecnologias estão, no caso
de O Céu de Suely, atravessando o próprio corpo dela.
Aquela mecha loura é justamente um signo da modernidade
que opera um deslocamento naquela figura.
Karim Aïnouz: Exatamente. E é um signo estranho, porque é um
signo mal acabado.
Cinética: Isso. Ele conota uma precariedade e, ao mesmo tempo, esse corpo “precário” age
sempre como resposta a uma inadequação, seja uma inadequação
existencial, seja social.
Karim Aïnouz: Completamente. As roupas, por exemplo.
A gente ficou muito preocupado de que as roupas fossem
erradas para
aquele corpo. Há uma cidade no Capibaribe,
interior de Pernambuco, que é tomada por indústrias
de confecção.
E todo dia há uma feira de roupas, mas só com roupas
feitas de tecido sintético, que é o
resto, absolutamente inadequado para aquele clima.
Então
há o fato das roupas
serem muito justas e tal, mas que carrega uma graça.
E como é um
tecido vagabundo, mas sintético, ele desbota muito
pouco, trazendo umas cores que são totalmente
improváveis, enquanto os modelos são mal desenhados
para aqueles corpos. É como
a comida. A comida no sertão é completamente absurda,
porque, como não se tem
dinheiro, não se tem carne, come-se muito carboidrato,
então
o que aquilo faz com o corpo é muito específico. Então
havia uma vontade de brincar com isso, que no sertão é muito
mais flagrante do que em qualquer outro lugar.
Cinética: Nesse trabalho com o Marcelo Gomes, houve da parte de vocês,
sobretudo na hora de finalizar, uma disposição de tornar aquele sertão
um território em
conexão com outras regiões do mundo? Porque há momentos
em que o filme parece ter sido realizado no Oriente
Médio, sobretudo
na trilha sonora...
Karim Aïnouz: No Carranca havia algo para mim muito pessoal. Meu pai é da
Argélia
e eu nunca fui para a Argélia. Então a Argélia para
mim sempre foi um território
oriental, no sentido de alteridade. Quando fui visitar
meu pai, que mora na França,
ele me deu um monte de CDs de um cantor argelino, que é o
cantor que está em
Carranca. E eu ficava me perguntando como minha mãe
se apaixonou pelo meu pai e vice-versa. Mas quando
eu ouvi aquela música...
E então quando eu estava montando
o Carranca, lembrei da música naquele momento em que
eles chegam em Juazeiro. E ali eu a usei muito como
uma necessidade
que eu tinha de conectar, quase como
se os trovadores estivessem cantando ali no sertão.
Havia um desejo ali de dizer que esse lugar não é tão
específico
assim, que ele poderia ser um outro lugar no mundo.
E é engraçado,
porque, quando a gente começou a fazer o Carranca,
a primeira idéia nem era sobre o sertão, era um projeto
que eu queria fazer com o Marcelo, no qual a gente
queria aglutinar
um monte de feiras-livres do mundo
inteiro e ver como elas dialogavam, de onde vinha essa
matriz de mercado a céu
aberto que vendia coisas “autênticas”. E eu achava
que a Argélia, para onde eu
nunca tinha ido, deveria ter alguma coisa muito semelhante
com o sertão, então
coloquei aquela música de propósito, para criar um
estranhamento. Eu tentava assim entender a relação
que aquele deserto tinha com minha outra origem argelina.
E agora, em 2008, vamos
fazer uma nova versão do filme, em longa-metragem,
que é a
história de uma pessoa que encontrou aquele material,
como se aquele material tivesse sido perdido por alguém
que filmou o sertão. É como se fosse a narrativa
de alguém que fizesse aquele percurso dos lugares onde
aquele material foi filmado. Acho que o filme terá um
quê de travelogue,
sem nenhum fio narrativo. Será um
mosaico de fragmentos.
O preço das coisas
Cinética: A questão das condições materiais em O
Céu de Suely é muito sui generis:
as coisas têm preço, são valoradas. Então quando a
Suely vai comprar a passagem, o trajeto do deslocamento
dela é centimetrado
pelo preço; a avó de Suely trabalha
num restaurante por quilo; no posto Veneza há uma placa
de promoção em primeiro
plano. O valor da rifa, o tempo todo. Acho isso um
tipo de construção absolutamente
politizante.
Karim Aïnouz: Isso começou numa leitura do Cidade
Baixa com o Eduardo Coutinho. Sérgio mostrou o roteiro de
Cidade Baixa para o Coutinho, e ele perguntou: “mas
esse povo não trabalha não? Eles ficam viajando de
barco, ela fazendo programa. Mas quanto custa o programa?
Quanto
custa isso e aquilo?”. E aí, em O
Céu de
Suely, isso me pareceu importantíssimo. Porque, de
novo, voltamos à questão de
como se pode falar de questões políticas e questões
de classe. Essa foi uma das maneiras que a gente encontrou
ali de falar
de questões objetivas. Acho que as
condições de vida de cada um são absolutamente ditadas
em função disso, principalmente
num lugar onde a regra básica é o salário mínimo. E
então
há uma questão fundamental:
mostrar que as pessoas trabalham.
Eu briguei muito
com os produtores por causa disso,
pois há muitas cenas
que não
têm função narrativa, mas têm função descritiva: “essa
mulher trabalha num lugar quente, tem que ficar carregando
essas panelas”. É árduo, é fisicamente
difícil, o dinheiro não cai como essa chuva que está caindo
aqui. E, curiosamente, nessa série da HBO, Alice, é uma
dificuldade falar disso, não se fala de dinheiro,
não há interesse nessa questão. Aí eu fiquei pensando,
como um contra-plano, que a novela nunca fala de dinheiro,
ninguém
trabalha, só a empregada doméstica.
E você não sabe quanto ela ganha, mas deve ganhar super
bem, porque se veste de um jeito...
Então para mim
era importante falar do trabalho, de quanto o trabalho
custa, o quanto esse
custo permite e quanto isso determina o jeito que
você vive. Era importante que isso não fosse a questão
do filme, mas que fosse a trama do filme, que estivesse
presente
o tempo inteiro. Como é que alguém que
ganha o salário mínimo consegue pagar as coisas? Como é que
ela consegue acordar no dia seguinte? É isso que eu
falo da questão de classe neste país. Acho que
isso é determinante do cotidiano de todos nós. A alimentação,
por exemplo. Eu fiz um plano documental em uma dessas
passarelas do centro de São Paulo, e eu
ficava olhando para essas pessoas enquanto pensava
como elas eram mal alimentadas.
Por isso, acho que é fundamental
falar das condições materiais. Em qualquer
trabalho que construa um personagem não há como não
se falar disso, porque é isso
que determina as coisas ao final do dia. E eu falo
isso sem nenhuma autocomiseração.
Teve uma época em que eu morava em Nova York e eu
não sabia
direito o que eu queria fazer da vida. Ninguém me
mandava dinheiro e eu tinha que pagar aluguel, então
minha vida virou sobre aquilo. Na realidade, trata-se
disso: de como
você consegue
pagar as contas, de como você consegue se vestir,
que roupa que você consegue
usar, que comida você consegue comer. Talvez aí esteja
um jeito de falar dessa aflição e, ao mesmo tempo,
dar conta do coletivo.
Cinética: Dessa forma você vai estar lidando de uma maneira mais prática
com o que é a sociedade na vida cotidiana de uma pessoa. Porque é onde
a estrutura política e social determina a experiência
de alguém. A falta de dinheiro, o lugar
onde se vive, a estrutura ou não do lugar onde se vive.
Por exemplo, quando Suely chega com o filho na casa
da sogra,
a sogra está com um sutiã de alça de silicone,
num casebre sem cimento, de tijolo aparente, mas com
uma super geladeira, e ela [a sogra] dá ao menino um
controle remoto para ele brincar... aquilo é de uma
sofisticação tão sutil...
Karim Aïnouz: Mas é uma coisa importantíssima. Foi o Coutinho quem me chamou
a atenção pra isso.
O corpo inadequado
Cinética: Voltando à questão do corpo, eu sinto que em seu projeto de cinema
o corpo é sempre um elemento de resposta a uma inadequação
ao espaço em que vive
o personagem. E a potência que eu vejo nesses personagens
vem, justamente, dessa inadequação de um corpo que
não se
adapta. Isso me lembra muito uma frase do Godard no
Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela, em que a personagem
dizia: “tenho
uma subjetividade que me exila e uma objetividade que
me oprime”. Então, como
situar um corpo entre a opressão do meio social e o
exílio
existencial?
Karim Aïnouz: Realmente há isso em todos os meus personagens, porque eu
acho que é uma condição necessária. No momento em que há uma adequação é a
morte. Claro que, dependendo do personagem isso é dramatizado,
potencializado, exponencializado de maneiras diferentes
e por razões diferentes, mas eu acho que não saberia
falar de personagens que são adequados. Eu até gostaria
um dia, talvez, seria um grande desafio. Mas não sei
o quanto isso é dramático,
o quanto se presta ao discurso cinematográfico. Acho
que essa inquietação é sempre produtiva e, quando ela
não
existe, é perigoso. Se a gente acha que está tudo ok,
tem alguma coisa errada. No caso do Madame
Satã, se
trata de uma coisa muito específica, porque eu queria
falar da raiva, de uma postura que não fosse a cordialidade,
mas que fosse reativa, violenta, que não fosse de maneira
nenhuma cordial e educada. Já no personagem
da Hermila, há outras cores, é um personagem que é inadequado
pelo silêncio,
pelo jeito como ele anda. Ela tem raiva, mas a raiva é filtrada
de um outro jeito. Eu acho que tem uma coisa agressiva
quando ela diz “eu vou fazer um sorteio e
o prêmio serei eu”. Acho que há uma postura de confrontação.
Esses personagens inadequados possibilitam,
então,
um ato de confrontamento, que eu acho, especificamente
falando
do Brasil, que é uma coisa muito importante.
Não o confronto pelo confronto, enquanto exercício
de uma violência meio
narcísica, mas o confronto enquanto atitude promotora
de movimento e de mudanças. Não é que eu sinta
falta de confronto nesse país, porque ele é cheio
de confrotamentos, mas de um confronto que ande
para frente, que promova uma mudança
e que indique que ali pra
frente pode vir a ser
melhor.
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