in loco O
cinema é o moto-perpétuo do mundo por Paulo
Santos Lima O
fluxo entrecortado de filmes que acabamos por ver numa mostra acaba criando novas
pontes, quando não recortes inusitados. Ao ver quase em sequência O Caminho
do Homem, de Chico de Paula, e Descaminhos (foto), filme documental
em episódios de vários diretores (ambos bem acertados no recorte “Estéticas
e Identidades Mineiras”); e, no dia seguinte, Andarilho, de Cao Guimarães,
veio-me à mente (ou ao menos aos olhos) a certeza de que existe, na busca por
uma geografia identitária que vemos nos filmes, uma pulsação mecânica, um captar
de coisas, união “câmera-movimento-olhar” que desenha a imagem do filme. Um mapeamento
geo-espacial sem freio. Ou, um moto-perpétuo - sendo que, nesse movimento contínuo,
tal perpetuidade não é infinita, mas delimitada ao tempo de duração do filme (com
exceção do belíssimo longa de Cao Guimarães). Mas o que há
de significativo nesse moto-perpétuo? Tanto em O Caminho do Homem como
em Descaminhos o sentido é o da identidade. É no movimento, ou seja, no
passear da câmera nos espaços da geografia mineira que se constrói um inventário
mineiro. Um tom urgente pauta as duas empreitadas, pois se no filme de Chico de
Paula o movimento de câmera beira a esquizofrenia, sua montagem também dará uma
idéia de deslocamento contínuo, pois sempre estilhaçada, feita em planos curtíssimos:
um chicotear que não se fixa nos espaços nem nas experiências daqueles sem número
de seres que surgem na travessia do diretor e sua equipe pelo interior mineiro,
apenas os adiciona. A álgebra mostra-se pelas legendas determinando nomes e lugares
– ou seja, o “ter passado por” é mais importante do que o “estar”. Se
a pulsação frenética da equação movimento de câmera+montagem cria um batimento
cardíaco sem sangue nas veias, “cabeças falantes” que se tornam coisa alguma,
massa única fundida num caleidoscópio de imagens-estilhaço, o tal movimento-perpétuo
leva para lugar nenhum. Temos um filme com movimento contínuo, com planos curtos
para seres e deslocamentos espaciais da equipe, e, nessa busca por um baú de costumes,
não se chega a lugar algum. O esforço em se registrar algo é detectável, tanto
pela postura ética do cineasta quanto a algo que parece fora do filme, mas enunciado
nele: a experiência da captação foi valiosíssima, entre Ouro Preto e Diamantina,
mais de centena de entrevistados. Portanto, na utilização do material, na criação
do moto, do movimento, sua perpetuação, só o tornou mais vácuo, mais fora do mundo. Composto
por episódios dirigidos por oito diretores mineiros, Descaminhos vem no
sentido oposto: os traços culturais, já detectados pela história, jazem nos trilhos
esquecidos de uma linha-férrea desativada. Há seres humanos pelas estações visitadas,
mas, no eterno deslocamento que avança a cada milha, a cada estação, a cada diretor
e seu episódio, nada se estabelece. Há, nessa viagem “funerária” que em princípio
denuncia o assassinato da ferrovia, uma postura involuntariamente semelhante à
daqueles que fecharam a estrada férrea, que é um apagamento da história. Assim,
as pessoas que aparecem no filme: jamais são seres humanos, mas coisas, objetos
que compõem a instalação cênica. As vozes são recursos de áudio para criar um
sentido plástico às imagens. Nesse deslocamento que olha as coisas sempre com
um esquadro, régua e compasso no plano, o filme parece fazer do seu moto-perpétuo
um correr de esteira. Desloca-se para mostrar a geometria de corpos e carnes,
e determina a esses elementos uma história. Nesse conflito entre objeto e significado,
a identidade é uma abstração. A
identidade, termo perigoso porque determinista e porque reduz a experiência a
um nome, um “time”, e que nos obriga a uma conexão a algo, filiar-nos a um espaço
ou cotidiano, não é o norte de Andarilho. Ou até se poderia pensar numa
identidade, um RG que responde não a este, mas a todos os filmes, pois o movimento
(ou ausência dele) determina o que é cinema. A tal identidade do filme, aqui,
é movimento. Porque é o movimento o que interessa a Cao Guimarães, que põe homem,
inseto, carro, céu, grama, barro, asfalto, natureza, tudo sob o mesmo estatuto.
A câmera mantém atenção nobre ao moto, que é tanto o de deslocar-se pelas pradarias
asfálticas, entre caminhões e grilos transeuntes, quanto o de ter flutuante sua
passagem pelo mundo, em falas. Daí que o primeiro plano,
com um dos andarilhos entranhado no mato, para logo depois falar, responde à idéia
de moto-perpétuo cósmico, onde coisas se fundem (via fotografia, que fique claro),
sinfonias fazem-se entre voz humana e trovão, entre homem e Deus, terra e céu.
A câmera, que em outra chave lembra a ética de Gus Van Sant com os seus jovens
deslocados, mantém-se atenta e refratária aos cortes da montagem para assim assistir,
dar espaço de cena, ao deslocamento desses componentes do mundo. Assim, há um
respeito pelos seres vivos e suas experiências na Terra: um homem andando ribeirinho
à linha de asfalto, um outro sem nada fazer, um barbeiro penteando um cliente,
um inseto cruzando a morte na pista da estrada com o mesmo ímpeto de um corpo
humano nessa situação etc. O movimento faz-se aqui sobretudo
pelo tempo dado aos planos. Um tempo que permite uma presença, uma existência
como imagem, das ações mais banais e corriqueiras e que se tornam transcendentes
como imagem, simplesmente. Um moto-perpétuo sinfônico, cósmico, de resgate do
homem à Terra. Daí termos um deslocamento ad infinitum, além filme, porque
não existe causa e efeito, apenas movimento. Ou vida. Curioso
é que, nessa maré de filmes, Cão Sem Dono ganhe uma releitura que dialoga
com a questão do movimento contínuo. O mundo pulsa neste filme de Beto Brant e
Renato Ciasca, mas Ciro, o protagonista, é um ser estanque: mais contemplação
amarga que ação, e, ao conhecer a bela Marcela (mulher esta que se põe literalmente
de pernas no mundo – machucando-se em suas andanças, inclusive), é empurrado ao
movimento. Antes de estar apenas um moto interruptus, Ciro procura engatar
a marcha num mundo que se faz de movimento, de caminhos levando a algum lugar.
Quase emparedado num apartamento absurdo, que é menos local e mais posto de observação,
sua anestesia é também uma resposta ao mundo. A um mundo que se move incerto,
arriscado, mas que, como em Andarilho, se faz belo nesse movimento sem
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