ensaios
Das ruínas: livre reflexão a partir de duas exceções
Sobre Os Residentes e Santos Dumont Pré-Cineasta?
por Francis Vogner dos Reis

Contemporâneos e extemporâneos I

Entender a História é saber que ela não avança em linha reta e que o presente, para além de suas "potências", é também a tentativa de se entender uma fantasmática herança do passado. Entender essa herança não é repisar (lamentando ou festejando) o que passou e nem tentar girar a roda do tempo para trás, mas é, sem dúvida alguma, buscar alguns pontos notáveis que podem nos ajudar a entender criticamente o presente. Alguns dos grandes cineastas de hoje avançam olhando para o retrovisor. Manoel de Oliveira, Julio Bressane e Jean-Luc Godard. Este último não foi quem disse (possivelmente parafraseando alguém, talvez algum alemão) que o capitalismo tem medo do passado? Esses cineastas estão bem distantes daquele discurso que muitos dos nossos escribas de cinema e cineastas jovens adoram, um discurso que acredita que a imagem revelaria a flexibilidade das relações e do mundo, um mundo em que as coisas "não estão dadas" e onde se revelaria a potência preponderante do presente, ou uma melancolia, um sentimento de mundo, sem haver necessariamente um conflito e proposições concretas. Até a dor e o fracasso seriam doces em alguma medida. Não há peso existencial. Por isso a retórica dos "afetos e das sensorialidades"é só anestésico de dramas contingenciais. É a desintegração dos conflitos.

Não é à toa que alguns dos monumentos do cinema brasileiro dos últimos dez anos como Peões, Serras da Desordem (foto) e Signo do Caos estão voltados para o seu tempo e se aplicam a lidar com uma História que se faz por meio de um exame crítico do que somos e no que não conseguimos ser - seja como nação, seja como cultura, seja como comunidade. São filmes tristes? A tristeza está fora de moda? Sim, porém são trabalhos de resistência. A resistência é vital, porém não é doce.

Dito isso, é preciso que se chame para a conversa dois filmes recentes: Santos Dumont pré-cineasta?, de Carlos Adriano e Os Residentes, de Tiago Mata Machado, dois filmes que nadam a braçadas na contracorrente dessa "desintegração de conflitos". Por mais que Santos Dumont Pré-Cineasta? soe extemporâneo (como sugere o diretor) e Os Residentes possa ser tachado de mix anacrônico das vanguardas (como acusam jornalistas de cultura de almanaque), são filmes do nosso tempo porque, além de outras coisas, desconfiam desse tempo, desconfiam dos discursos, olham de soslaio o entusiasmo pelo porvir. Os filmes de Carlos Adriano e Tiago Mata Machado interpelam o cinema - arte e ciência, história e resistência, amor e política, o tempo e a morte. São filmes sobre o fim do mundo, um tema velho, mas sempre tão atual, de Édipo Rei a Filme Socialismo. A impressão é que o grande cinema de hoje (e todo o cinema moderno) é composto de crônicas sobre o fim do mundo. Por mais que isso pareça fatalista, falar sobre o fim do mundo é não negar a história em andamento, mas sim agir na falta provisória de perspectiva. Esse é um tipo de pessimismo que não se responde com otimismo, mas com alguma coragem.

Os dois filmes em questão têm processos diferentes, suas bases são fundadas sobre princípios distintos, suas referências não são as mesmas, mas ambos têm posicionamentos e, efetivamente, "trabalhos" que se interrogam sobre o lugar do cinema na vida e no mundo. O importante é que não dá pra falar de Santos Dumont (foto) e Os Residentes sem levar a discussão para o campo estético e conceitual. Aí é que a coisa complica, pois não dá pé arrumar uma muleta extra-filme pra justificá-los. É preciso falar de arte, talvez de ciência. Ambos não se parecem muito com outros filmes recentes, não dá para enquadrá-los em discursos geracionais, localizá-los no fluxo das tendências do cinema contemporâneo. É preciso ir a eles e o conceituário acessório que a crítica e boa parte do jornalismo atuais usam talvez não tenha grande serventia. Não dá pé começar a discussão dizendo que um lembra Godard e que o outro é um filme pessoal-experimental. Isso é ignorar a singularidade deles num cenário em que tudo transpira e se declara "novidade", quando na verdade são administração de códigos e estilos. Com Santos Dumont pré-cineasta? e Os Residentes é preciso afinar a sensibilidade que também é uma afinação da inteligência.

Contemporâneos e extemporâneos II

Sabemos que os cautelosos não fizeram história. Welles, Fuller, Pasolini e Bazin, Jairo Ferreira, Moullet não faziam seus trabalhos segundo qualquer norma corrente, qualquer padrão de qualidade formal ou qualquer tipo de ponderamento nas suas afirmações, sendo tachados em suas respectivas épocas de reacionários, fascistas, charlatões, inconseqüentes, irresponsáveis, ingênuos, proselitistas... A afirmação de um ponto de vista, de um tipo de cinema e de uma visão sobre o cinema, foi o motor da história do cinema. Pode-se questionar os "pequenos dogmas" de Bresson como norma geral ou adaptável, mas nunca em seus filmes. Pode-se questionar a falta de "método e disciplina" no livro de Jairo Ferreira, mas aí ignora-se o gesto fundamental de seu estilo e pensamento. Todos eles erraram aqui e ali e isso é fundamental. A delícia e a potência do sacrilégio só existem com o erro.

Dizer que o cinema "deve" ou o cinema "precisa" se tornou hoje, segundo o senso comum "bem pensante", uma atitude deplorável. Por outro lado são bem vindos o relato do processo, a abertura ao imponderável, o efeito do real como valor na ficção e em um aspecto exterior, o método de realização como valor preponderante e etc. É bem vindo tudo que é menos propositivo e mais aberto, onde algo "se manifesta". Temos ai O Céu sobre os Ombros, Pacific e Avenida Brasília Formosa (foto): são filmes abertos, que não se ancoram ao mimetismo da mise en scène tradicional e passam a impressão de espontaneidade (sendo ela assumidamente forjada ou não).

Talvez o que pareça demodé em Os Residentes e Santos Dumont é o fato de ambos se questionarem sobre "o que pode ou o que não pode o cinema", interpelarem sobre cinema/ciência e cinema/arte. Aparentemente, assunto velho. Tanto pior para quem achar isso. Dizer o que o cinema pode ou não pode não é declarar como todos os filmes precisam ser, mas se confrontar com o desejo e o limite do cinema. O que há nesses filmes é uma presença agressiva e traumática de uma herança moderna, seja no rastro do tempo passado no específico cinematográfico (Santos Dumont), seja nas ruínas de uma sociedade que aboliu a aventura estético-ideológica (Os Residentes).

Carlos Adriano em debate na Mostra de Tiradentes (foto cedida pela Universo Produção) disse, por exemplo, que o problema do cinema é que ele se voltou demais aos predicados narrativos de Griffith e abandonou outras possibilidades interessantes de seus primórdios, como as experiências de Étienne-Jules Marey. Ele demonstra um incômodo com o cinema como um veículo de organização do mundo por meio da narrativa. Não dá para concordar, francamente, porque isso invalida a tradição que tomou corpo nesses cem anos e gerou coisas fantásticas. Mas é justamente nessa aparente sandice de atentar, na medida do possível, contra os rumos da História e do tempo, que reside a força vital de seu filme. O diretor disse que descobriu que "o cinema pode quase tudo, mas não TUDO". A afirmação é a coisa mais bela numa época em que se declara que "todos os caminhos do cinema são válidos", que se faz elogio fake da "potência" e que se entoa elegias às flores de plástico. E o melhor: esse sentimento de cinema expresso por Carlos Adriano está latente em Santos Dumont Pré-Cineasta?.

Já a discussão empreendida por Tiago Mata Machado questiona a obsessão pelo real e pelo naturalismo do cinema brasileiro enquanto, por outro lado, investe em um cinema no qual cabem todas as artes e que se proclama assim: impuro. Sabemos que a demanda de Tiago e a sua parcial recusa por uma certa concepção do real já estão lá em Bazin, não como recusa e aceitação da parte do crítico francês, mas como constatação (e valor) em filmes específicos. Os Residentes (foto) dá forma e responde aos anseios de seu diretor. É um filme construído que demonstra uma auto-consciência acentuada de seu regime estético. Não há espaço para a modulação do real como energia orgânica de fabulação (como faz Sergio Borges em O Céu sobre os Ombros) que testa os limites de controle e descontrole de seu diretor. No filme de Mata Machado os enunciados são claros, os princípios são diretos (ainda que, na reclamação de alguns, esteja imerso em obscuridade), conhece-se seus "lados" e seu avesso, sua afirmação e sua negação. Não é um filme aberto, é um filme de proposições.

Num aspecto mais amplo, Os Residentes e Santos Dumont – pré-cineasta? divergem fundamentalmente (como resultado) de alguns de seus contemporâneos em suas relações com o mundo, pois não agenciam a realidade, mas procuram transfigurá-la. Santos Dumont não é só o documentário, mas é o documentário e o feérico; Os Residentes não é só imagens em fluxo, mas é também a mise en scène. São filmes de peso (existencial), não de flutuação.

Questão de resistência I: crônica de uma perda


O filme de Carlos Adriano experimenta uma profunda angústia com o presente, seja o presente histórico, seja a própria definição que a celeridade do tempo dá ao presente. As imagens de Santos Dumont feitas em 1901 com um mutoscópio servem de ponto de partida para o diretor pensar o tempo e sobre como o cinema inaugurou uma nova e perturbadora relação do mundo com a História. Este é um trabalho de pesquisador, de interesse pelas imagens do passado, pelo processo de criação dessas imagens, pela lógica de apreensão dessas imagens por um olho-memória mecânico, pelo rastro que elas deixaram nos objetos, pela preservação dessas mesmas imagens.

Tara de um arquivista obsessivo? Não. É uma questão de resistência e isso é uma coisa muito séria, tanto que foi esse mesmo espírito que, nos anos 90 (os terríveis anos do falacioso "fim da história"), levou o cinema a ser provocado e confrontado por um dos trabalhos de maior estatura do século passado: Histoire(s) du Cinema, de Jean-Luc Godard. É a resistência que mantém viva a noção de História nesse mundo pós-ideológico. É uma das únicas possibilidades políticas. Não por acaso, Rogério Sganzerla via no Brasil essa maldição da impossibilidade da política (e da arte e do amor), pois este foi o país que simbolicamente "jogou os filmes de Orson Welles ao mar", país do desperdício, que despreza a memória, odeia o passado - e por isso mesmo não conhece seu presente.

Por mais que Santos Dumont Pré-Cineasta? seja considerado, sob determinada lógica, uma peça de "arte" e de "pesquisa", o diretor parece mais acreditar no cinema como instrumento (máquina) de investigação filosófica do que um objeto tradicional de arte. Sua referência é a primeira vanguarda do cinema (a dos pioneiros), em que os filmes não tinham a consciência de arte, de objeto estético. Por mais que a nossa compreensão do filme (tanto dos espectadores, quanto do próprio diretor) seja mediada pelo conceito de que o cinema é uma arte, há uma evidente tentativa de exorcizar os lugares comuns da arte e investigar os rastros da vida a partir do aparato tecnológico. Seria a ciência tentando apreender o que a objetividade do olho humano não consegue, aprisionando o tempo, para estudá-lo e dissecá-lo.

Por mais que esse texto possa fazer parecer, Santos Dumont Pré-Cineasta? não é um filme frio, calculado e, é importante dizer (em se tratando de cinema brasileiro): também não é chato. Em um texto na Cinética, Eduardo Valente disse ser este um "filme de amor". É, de fato. Mas como Godard em Elogio ao Amor, é sobre as condições da existência desse amor. O amor como um caso de memória e resistência: "a imagem, a única coisa capaz de negar o nada... mas também é o olhar do nada sobre nós". Por isso a obsessão com a presença das imagens que ficaram, por isso o amor sem medida pelo que restou do passado, pois (mais uma vez Godard) "o passado é a imagem que temos dele".

As imagens de Bernardo Vorborow, companheiro de Carlos Adriano falecido há alguns meses, são prosaicas e espantosas ao mesmo tempo. Ele tenta tirar uma foto de Carlos Adriano que o filma. Ele não se entende com a máquina fotográfica. Não consegue bater a foto. Essa imagem se repete. Aparentemente, a cada aparição no filme dessa briga de Vorborow com a máquina, a imagem é diferente porque a duração parece ser sempre distinta da anterior. Essas repetições da imagem de Bernardo Vorborow, assim como a sequência do seu reflexo no elevador da Torre Eiffel, são de uma melancólica e ofuscante beleza por mais de um motivo. O que chama especialmente a atenção na sequência do elevador - como operação - é que Carlos Adriano desacelera a imagem. Parece tentar conter a rapidez do tempo. Mas, por mais que o cinema, diferente da vida, consiga manipular o tempo, a duração deste tempo ainda dita sua condição de suprema finitude. As imagens acabam, a duração é limitada e, mesmo que se possa repetir a presença de Vorborow e desacelerar a imagem, o filme vai de encontro ao fim. Ao vazio. Exatamente como a vida. "O cinema pode quase tudo, não tudo".

Questão de resistência II: crônica de um fracasso


Parte da imprensa, da crítica e dos blogueiros não conseguiram transcender e entender as referências que Tiago Mata Machado plasmou em Os Residentes (situacionismo, Guy Debórd, Godard, neoismo, artes plásticas contemporâneas) e não raro, leu-se (e ouviu-se) aqui e ali que o diretor e a equipe eram ambíguos quanto ao relato do processo de realização do filme - como se, em si, esses processos trouxessem alguma verdade e explicação para aquilo que parecia tão obscuro. O instrumental e o processo de Mata Machado se transformaram em possibilidade, para estes, de conferir sentido àquilo que estava implicado no filme. Bem, claro, não é de se estranhar esse tipo de mal estar dos "guardiões da cultura". Guardiões não pensam, mas "guardam", precisam de normas e manual de instrução.

Os ResidentesOs Residentes é um filme sobre arte e estética que busca se relacionar frontal e organicamente com isso, mas ao mesmo tempo desvela o limite dos conceitos de arte e estética. Diferente do filme de Carlos Adriano, que se volta à vanguarda dos pioneiros em que "arte" não era uma questão, Os Residentes lida já com a memória da segunda (dos anos 20) e da terceira vanguarda (os anos 60/70), respectivamente, com o cinema atravessado conscientemente por outras modalidades de arte e que já pôde reconhecer uma "História do cinema". Ou seja: o filme de Tiago Mata Machado conta com uma consciência artística que teria ímpeto de intervenção na vida, no cotidiano e na sociedade, não para instaurar uma nova ordem, mas para destruí-la.

Os Residentes é o luto dessas vanguardas, mas ao mesmo tempo a relativização desse luto. Ele ri do luto. Não há mais espaço ou solenidade para chorar esse luto, pois o tipo de lamentação decadente do fracasso da reinvenção da sociedade (em sua destruição criativa) trai essencialmente esse projeto moderno de reinvenção permanente. Por isso, a intervenção da personagem mais misteriosa do filme (a artista que passa boa parte do tempo amarrada e vendada no banheiro) no discurso de um personagem - uma espécie de mecenas do grupo - sobre Robespierre é justamente um choque de agressividade sarcástica, porém verdadeira, com ojeriza a "discursos codificadores e doutrinadores". Ela "caga" no "sermão" ("chupa a minha boceta", "enfia esse projeto no cú") que esse personagem dá ao grupo de artistas-guerrilheiros, ridiculariza o exerciciozinho de poder de Andru (o tal mecenas) e o constrangimento geral do grupo. Contra o discurso - que denota um tipo de poder -, o gesto. Se todo discurso tem promessas de reconciliação futura, o gesto em si é urgente e desestabilizador. Os Residentes é um filme cheio dessas rachaduras nos discursos a partir de um gesto (puro, duro, direto) que problematiza o que estamos vendo, coloca em perspectiva, estabelece uma crise.

Os ResidentesO fato é que, em Os Residentes, existe a consciência desse mundo forjado por regimes estéticos, de transformação da vida num experimento estético. Tudo é representação de algo que "foi". É um universo interditado pelos modelos do passado. É um mundo de construção, não de ontologia, por isso é possível inverter papéis e reconfigurá-los, recriar espaços. A crise de um casal é material de experimento estético, não do filme especificamente, mas da própria relação afetiva. O homem corta seu bigode e a mulher integra um bigode ao seu visual, um bigode feito com seus pelos púbicos. O ethos dos personagens é, literalmente, construído com intervenção de cores, tijolo e cimento. Os "conteúdos" do filme só existem nesse forjamento plástico (abstrato ou não) das relações e situações.*

A agressividade do filme de Tiago Mata Machado é irônica, pois sabe que esse gênero de provocação já está bastante codificado, assimilado e integrado hoje em dia. Assim, seu filme é reflexão ativa sobre as ruínas que herdamos do século XX; é, em alguma medida, uma meditação das vanguardas como modo de mudar a vida. A arte aqui é ainda a via para se colocar em crise os projetos, de construir sentidos, desconstruir, reconstruir e no esgotamento de qualquer elemento de autenticidade, destruir.

Os ResidentesNão só n'Os Residentes, mas também no filme anterior do diretor - O Quadrado de Joana - o mundo atual é uma representação da modernidade do século XX, onde tudo se repete como farsa: o trabalho, as relações, os coletivos. A uma altura de O Quadrado de Joana, o personagem dizia: "hoje todos são atores, não há mais trabalhadores". A matéria com que os personagens e os filmes de Tiago trabalham são esses "destroços ideológicos". A partir desses destroços, já não é mais possível um certo tipo de ação (como em Rossellini e Fuller), mas a sua representação, seja nas barricadas imaginárias dos personagens que jogam pedras e bombas invisíveis, seja no próprio conceito de um coletivo criativo. Em Os Residentes o mundo não é mais mediado por ações concretas e efetivas, mas por suas representações. O filme não faz disso uma pregação, mas reconhece como traço e sintoma.

Há muito ainda a se dizer sobre esses filmes e certamente o tempo nos trará mais coisas sobre eles, pois eles continuam vivos e ativos na memória e a cada revisão eles trazem elementos novos. Será necessário voltar a eles outras vezes. Ambos têm uma inquietação que lida com os destroços da modernidade, e possivelmente é nesses destroços que se encontra o que restou de nossa História. É, no reconhecimento desses destroços que está o movimento da História e do tempo.

*Este crítico trabalhou justamente esses e outros aspectos mais específicos de Os Residentes em uma troca de e-mails com o diretor Tiago Mata Machado, diálogo a ser publicado em breve em um outro veículo.

Junho de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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