cartas dos leitores
Carlos Magno em debate
Curiosamente, logo depois de termos anunciado
em novembro um desejo de aproximação com a pesquisa
acadêmica sobre cinema, quebrando um pouco as barreiras
estanques que separam os mundos da crítica e da academia,
um artigo publicado em Cinética deu vazão a um debate
por email entre leitor, colaborador e redator, que tem bastante
a ver com estes limites e sua fragilidade. (EV)
* * *
Cezar,
Gostaria de parabenizá-lo pelo texto
sobre o Magno. A provocação já havia sido lançada à Cinética,
e acho que todos nós, num certo sentido, andávamos aguardando
ao menos um esboço de produção crítica acerca destes e outros
vídeos.
Gostaria apenas de fazer um comentário sobre o
texto, motivado pelas questões que você mesmo coloca. Lembro-me
que há alguns anos atrás, André Brasil andava com uma espécie
de portfólio de vídeos mineiros embaixo dos braços, que víamos
com freqüência e que incluía, entre outras coisas, o Imprescindíveis
(ou era Todo Punk... bom, não sei mais). Lembro-me também
que nesta época a questão dos "ensaios" começava a
nos intrigar, e André tinha uma especial predileção pelo conceito
ao falar dos filmes do Magno. Em parte, acho que isto se devia,
pelo menos era como eu o percebia, por esta intrínseca relação
entre o privado e o público, mediada pelo discurso político (aqui,
como uma ponte em ruínas, entre um passado exterior e um presente
profundamente interior).
Sua idéia de poética do arquivo é muito esclarecedora
neste sentido, e traz à tona o jogo
entre o discurso utópico/revolucionário e seu próprio esvaziamento,
ou melhor, sua transformação. Acho que a idéia do ensaio fica
ainda mais latente aqui, pois trata-se de um rearranjo de crenças,
discursos e imagens que dão forma a uma escrita muito particular
e, ainda assim, inacabada. E é apenas uma linha, como vc bem diz,
que atravessa estes agenciamentos, que os conecta de forma frágil
e que faz com que, talvez por isso, preservem uma certa individualidade
– o que permite novas conexões.
Cada filme parece propor outras linhas, rever
aquelas que vieram antes ou virão depois, mesmo que recorra a
agenciamentos e estratégias semelhantes. Apesar da fluidez destas
imagens, contudo, alguns conflitos são evidentes e, na minha opinião,
até certo ponto dialéticos – os polêmicos discursos de Bruno,
a relação religião/violência, revolução/inocência, violência/inocência,
ou os próprios deboches metalingüísticos de Kalaschnikov.
Talvez seja uma forma redutora de colocar estas imagens que, não
há dúvida, ganham novos contornos quando inseridas no contexto
dos filmes. Na minha opinião, contudo, estas pequenas ilhas dialéticas
– a expressão é tenebrosa - tornam os filmes de Magno de certa
forma acessíveis (sem qualquer teor pejorativo!), na medida em
que colocam em questão um conflito reconhecível por parte do espectador,
mas imediatamente fugidio, quando ele próprio é colocado em questão
pelas imagens que o sucedem ou antecederam.
Igreja Revolucionária talvez seja o auge
deste conflito – dialético ou não, pouco importa – pois o transporta
para a dimensão de uma individualidade plenamente coletiva. O
mal-estar anunciado em Anticristo, que efetivamente "antecipa"
certas passagens da Igreja, agora diz respeito a todos
– incomodados, envergonhados ou revoltados com dispositivo proposto.
Mas isso é outra estória e talvez tema para um outro artigo...
parabéns novamente pelo texto, grande abraço,
João Dumans
* * *
Ei João,
Obrigado pelas tuas palavras e pela atenção com o texto. Estou
super curioso para ver o Igreja Revolucionária.
Acho que tens razão quando lembras da questão do ensaio. A dificuldade
que se coloca para uma texto crítico é pensar quais são estas
forças constituintes de um ensaio fílmico, como os trabalhos de
Magno.
Sobre o caráter dialético eu guardo dúvidas. Entretanto, passei
essa semana por um texto do Didi-Huberman que talvez nos ajude
a pensar a possibilidade de esses encontros de imagens, essa "poética
do arquivo" guardar um caráter dialético:
"Em caso algum se trata de substituir a tirania de uma tese
por uma antítese. Trata-se somente de dialetizar: pensar a tese
com a antítese, a arquitetura com suas falhas, a regra com a transgressão,
o discurso com o lapso, a função com a disfunção, o tecido com
o rasgo..." Bom, né?
Abraços
Cezar
* * *
Oi Cezar,
Confesso que a questão do conflito dialético em Magno para mim
também é bastante duvidosa. Ainda mais se levarmos em conta que
falo aqui do ensaio, e que em um bom número de textos sobre o
tema há uma tendência em se rejeitar a construção dialética para
pensar formas mais "livres" de associação e reflexão
(vide Adorno ou Silvina Rodrigues). Numa monografia recente orientada
pelo André sobre o tema, seguimos esta mesma direção, com uma
filiação em Serres para estabelecer algumas linhas do conceito
de ensaio.
O que quero dizer é que pra mim também é um esforço
pensar essa possibilidade de conflitos dialéticos nos filmes do
Magno. Talvez o faça para repensar o próprio conceito de
"dialética" na imagem, associada - por que não? - aos
"fluxos e linhas de força" tão propícios ao pensamento
que se debruça sobre o vídeo. Não penso necessariamente no caráter
dialético da poética do arquivo "em si" - acho que isso
não faria mesmo tanto sentido. Mas na dialética precária e frágil
de alguns momentos, de alguns enquadramentos, de algumas falas,
de alguns encontros. Sem que o resultado seja uma Idéia. Sem que
a tese signifique clareza propositiva ou a síntese verdade.
A frase de Didi-Huberman é realmente muito boa.
Qual o livro?
abraços,
João.
* * *
Olá João,
O livro é o Devant l'lmage. Estamos começando a enfrentá-lo
agora.
Uma das coisas que vou colocar com André e as outras pessoas que
estão lendo o livro comigo é justamente porque pensar em termos
dialéticos se o conceito precisa ser deslocado? Como na frase
que te mandei. Porque não pensar em temos de agenciamentos, por
exemplo?
abraços
Cezar
* * *
Oi Cezar,
É uma boa pergunta. Não posso responder pelo Huberman, obviamente,
que parece querer rever um conceito que, querendo ou não, é caro
à filosofia. Pra mim, tem a ver com a forma com que até então
eu vinha pensando os agenciamentos na estrutura, por exemplo,
dos ensaios.
Revendo algumas coisas que eu havia escrito sobre o tema, tenho
a impressão de ter ignorado a dimensão do "conflito"
entre certos agenciamentos em prol de noções como continuidade
e descontinuidade. O processo de encadeamento de idéias, a noção
de campo de forças ou de relações de vizinhança ainda me parecem
os mais adequados ao tema. A forma como os coloquei, contudo,
embora levasse em conta a possibilidade do "erro", da
"gagueira", da "contradição", parecia ignorar
a dimensão do choque entre certas proposições. Não se trata de
ressuscitar a dialética para falar de um processo eminentemente
anti-dialético. Mas de recolocar, ao menos pra mim, a possibilidade
do conflito (que, obviamente, também pode ser pensada a partir
dos agenciamentos).
Me pergunto por exemplo o que está por traz de
uma das estratégias de Kalashnicov, que é sobrepor a uma
imagem claramente descontínua as frases que regem um suposto cinema
da continuidade. Mais que um encadeamento, ou uma passagem, parece
haver um confronto
claramente proposto, que na minha opinião tem bastante a ver com
a frase do Huberman. Mas isso também pode ser pensado a partir
dos agenciamentos, é verdade.
Anexo a discussão para o André, espero q vc não
se importe.
abraços,
João.
* * *
João e Cezar
continuo achando a noção de agenciamento boa, produtiva. mas,
tenho dúvida se o agenciamento – a noção e seu "modo"
de operar – não tem sido quase imediatamente capturado, se não
é mesmo o modo de operar do capitalismo hoje. por isso, talvez,
o huberman retome a dialética.
mas pra ele, me parece, se trata de uma definição
muito específica, pouco hegeliana e marxista do termo. já não
se trata de uma síntese que surgiria da oposição entre tese e
antítese, mas de "pensar a tese com a antítese, a arquitetura
com suas falhas, a regra com a transgressão, o discurso com o
lapso, a função com a disfunção, o tecido com o rasgo..."
– uma dialética rachada, então.
acho também que, muitas vezes (esse não é o caso do Magno), o
agenciamento pode levar a um "vale-tudismo", a um certo
vazio de sentido, a uma articulação fácil (não conflituosa) entre
as imagens e entre imagens e texto. gosto, por isso, da noção
de "frase-imagem", do Rancière, em Destin des Images
(quando tiver um tempinho, joão, escaneio e mando pra vc, pq é
importante ler isso). Um modo de articulação que não se perde
nas formas consensuais e que também, por outro lado, não se rende
ao irrepresentável da catástrofe ou ao colapso de sentido.
bem, espero que meu email não tenha se colapsado.
seguimos,
abraço nos amigos,
André
* * *
João,
Acho que o André tem toda razão.
O Huberman tá atrás do discenso, como o Rancière, e aí a dialética
volta.
Acho que agenciamento tem o problema também que o André falou,
mas, o fato de ser o mesmo modo de o capitalismo operar não elimina
sua validade, pelo contrário, coloca-o no centro da discussão.
Abraços, meus caros
Cezar
editoria@revistacinetica.com.br
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