Os Desafinados, de Walter Lima Jr. (Brasil, 2008)
por Fabio Diaz Camarneiro

Nostalgia em tom maior

A primeira parte de Os Desafinados lembra uma música antiga pinçada de uma compilação: ao mesmo tempo familiar e destituída de um contexto histórico, transforma-se assim em objeto de nostalgia. O ano é 1958, momento do surgimento da bossa nova, tempo de euforia: a industrialização caminhava a passos largos no Brasil; tínhamos um estilo musical reconhecido internacionalmente; uma nova capital, marco da arquitetura modernista; a conquista da Copa do Mundo de futebol acabava de ser conquistada pela primeira vez; o debate cinematográfico (e o número de filmes interessantes) crescia. Parecia ser o momento do Brasil, da mesma forma como para Quim, personagem de Rodrigo Santoro, que ouve constantemente o mote: “esse é o seu momento”.

Quase ironicamente, o filme de Walter Lima Jr. encena grande parte desse “momento” num cenário bem distante do Brasil: os membros da banda Os Desafinados estão indo para Nova York tentar o sucesso internacional. Porém, as imagens de entusiasmo e esperança dos personagens parecem datadas: estamos no terreno da comédia juvenil, na qual os personagens, contaminados pela euforia que assolava todo o Brasil, parecem imunes a todo e qualquer problema. Um exemplo dessa “ingenuidade” é quando os rapazes tocam em ritmo de bossa nova em meio a uma apresentação de jazz no Village Vanguard. Em parte inverossímil, em parte constrangedora, a cena estaria ali para representar o Brasil conquistando os EUA? Porém, parece ter sido exatamente o contrário.

Em meio ao Central Park, surge o romance entre Quim e a cantora Glória (Cláudia Abreu), ao som de “Copacabana” (famosa na voz de Dick Farney). Sintomático um cantor chamado Farnésio Dutra e Silva adotar o americanizado “Dick Farney” para fazer sucesso no Brasil. Sintomático os personagens de Os Desafinados precisarem estar nos EUA para se reconhecerem brasileiros. Sintomático também Walter Lima rodar essa cena em Nova York (ao invés de construir uma Nova York de estúdio, made in Brazil, que seria uma atitude mais “crítica” apesar de menos “realista”), para retratar um momento de esperança no país. A partir dessa cena, a música deixa de ser o mote do filme e cede espaço para qüiproquós amorosos. Tudo dentro do tom ingênuo da comédia juvenil, talvez uma tentativa de emular alguns dos temas recorrentes da bossa nova: o amor, o barquinho, o violão... Glória é uma espécie de representação dessa utopia brasileira da bossa nova: uma mulher sedutora, de beleza natural, mas também elegante, culta, que não deixa nada a dever frente aos gringos. O retrato de certa classe média do país no final dos anos 50.

Um outro retrato, um pouco mais rico, está nos próprios desafinados: um filho da elite, um negro, dois amigos da classe média (e um cineasta a reboque). Todos descobrindo uma forma de conviver e, às vezes literalmente, tocar a mesma música na tentativa de criar um projeto comum. Um projeto que não demora a naufragar. Com seus qüiproquós amorosos (Davi amava Glória que amava Quim que amava Luiza...), Os Desafinados quase naufraga junto.

Num segundo movimento do filme, os rapazes voltam para o Brasil. O “grande momento” acabou, e o país vive os reflexos do golpe militar de 1964. Aqui, o filme cresce. Os temas se tornam menos juvenis: aparentemente, o projeto da bossa nova de convivência (todos juntos, tocando a mesma música) não é mais suficiente. É preciso sobreviver em um país com sérios problemas sociais e políticos e, de quebra, driblar a censura. Walter Lima Jr. encena o que foi o Cinema Novo no projeto de cinema de Dico (Selton Mello). Esse filme dentro do filme, realizado aparentemente sem critério algum e com poucos recursos, revela-se depositário de grande força criativa (no bloco de notas, Leonardo Mecchi já disse que as imagens desse filme dentro do filme são mais poderosas que todas as demais de Os Desafinados). Não há mais lugar para a utopia da bossa nova representada por Glória, então ganha espaço Luiza (Alessandra Negrini), a mulher real, de classe média, mãe e dona de casa. O fato de Quim ficar dividido entre as duas consegue representar, a partir dos problemas amorosos do personagem, os problemas do período, a tensão entre a utopia que não deu certo e a realidade cada vez mais dura. Quim vai conhecer, um pouco acidentalmente, o destino daqueles que tentaram resolver a dialética entre essas duas forças.

Walter Lima Jr. faz um filme-painel, um mural histórico dos últimos 50 anos do país, da utopia à desilusão. Daí surgem as fraquezas e a força de seu filme. Mas, ao final desse meio século retratado, a que chegamos? O tempo da narrativa é o presente, o ano de 2008, quando a morte de Glória serve como mote para que os personagens se reaproximem. Os Desafinados é um grande flashback, a partir do projeto de um programa de TV. Mas que “presente” é esse? Que 2008 Walter Lima nos mostra? O filme não responde a essa questão. Resta um vácuo, como um aparelho de som repetindo a mesma música: os sonhos utópicos foram abortados pelo golpe; todo um projeto de país naufraga... Em Os Desafinados, o tempo presente é uma espécie de vácuo, em que nada se cria e tudo se relembra. Não por acaso, a cena final traz um retorno de algo que se perdeu no passado. O grande desejo do filme de Walter Lima parece ser que o tempo voltasse atrás. Nesse cenário contemporâneo, os personagens ainda tentam desenhar um painel do país, mas agora tanto menos interessante quanto mais “harmônico” (ou forçosamente harmônico, afinal de contas): em 2008, não existem brigas ou diferenças entre Os desafinados. Como se hoje a utopia fosse outra: se ninguém reclamar de nada, problemas não existem. Eis a utopia que resta ao “país do carnaval”: a música popular como esperança de que o país encontre uma “identidade” de certa forma incontornável.

Os Desafinados se configura como um filme-nostalgia menos por exaltar o passado do que por esvaziar o presente. Se o passado parece tão interessante e criativo, o que se cria hoje em dia? Os Desafinados esboça uma resposta não em seu enredo, mas em sua forma: uma linguagem extremamente tradicional, talvez mais próxima do especial de TV do veterano Dico e distante do cinema do estreante Dico. A oposição entre Glória e Luiza representa Os Desafinados como um todo: a oposição entre uma utopia agora definitivamente morta e uma realidade que escapa aos olhos (não vemos Luiza em nenhum momento do presente da narrativa).

Mas talvez a oposição mais interessante seja entre Quim e Dico: o músico e o cineasta. Uma das melhores cenas é a gravação da trilha sonora do filme de estréia de Dico. Ele queria uma música tradicional, clássica, e acaba recebendo, emocionado, percussão e dissonâncias, música moderna para um filme moderno em um país na cauda da modernidade. O debate poderia ir ainda mais longe. A música popular brasileira sempre foi mais pródiga em retratar o país do que nosso cinema. Talvez porque, tradicionalmente, na música popular haja uma tradição de buscar as “possibilidades” de um país, enquanto outra tradição, agora no cinema (Sganzerla e afins) trata da “impossibilidade” desse mesmo país. Além disso, a indústria fonográfica nunca sofreu os trancos e barrancos da indústria cinematográfica. Somos o “país do samba”, não o país do Cinema Novo.

Enveredar pelos pontos de contato (e de tensão) entre o cinema e a música popular poderia ser um dos interesses de Os Desafinados se o filme quisesse ir além do tom de nostalgia que marca a efeméride dos 50 anos da bossa nova. Daria samba. Mas Walter Lima prefere repetir velhas melodias, em arranjos conhecidos.

Setembro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta