diário da redação
Da ética da imagem edição
de Eduardo Valente É possível
refletir frente à tragédia? A julgar pelas avalanches que nos soterram
na grande mídia, a resposta precisaria ser um sonoro NÃO. Mas, ainda
que chocados como todos pela perda de tantas vidas humanas, nosso dever mínimo
é o de tentar achar algum sentido que seja nas imagens que se produzem
na cobertura de eventos como a queda do avião da TAM. Mesmo que estes sentidos
encontrados sejam dos mais sinistros. *
* * Leonardo Mecchi, 19/07/2007, 15:36 Lembro-me
de dois casos recentes onde se discutiu a ética da imagem, principalmente diante
da morte. Primeiro o Valente discutindo as cenas de suicídio
em The Bridge, que esteve por aqui durante
a Mostra. Depois, no caso do massacre de Virginia
Tech, discutiu-se muito a atitude das TVs que divulgaram o press kit
enviado pelo garoto que perpetrou o massacre. Agora, com
o desastre da TAM aqui em Congonhas, e como não podia deixar de ser nesta era
da comoditização do audiovisual, dezenas de vídeos sobre o acidente já se
espalharam pela internet – das imagens do pouso e do clarão da explosão feitas
pelas câmeras da Infraero aos registros do prédio em chamas feitos por celular
de testemunhas que estavam no local na hora do acidente. Diante
disso tudo, e do vampirismo que tem dominado toda a cobertura do desastre (tinha
acabado de chegar em casa quando ele aconteceu e acompanhei a programação
de várias TVs – era algo deplorável e revoltante a encenação circense e irresponsável
que se criou em torno do caso), é bastante interessante e louvável a atitude
da TV Cultura, a primeira emissora a chegar no local do acidente, que captou
imagens de pessoas se jogando do prédio em chamas mas que se recusa a divulgá-las,
por princípios éticos. Uma questão que raramente é trazida
a público em situações como esta... * * * Luiz
Soares Júnior, 19/07/2007, 16:54 PM Hoje, tava curioso
a respeito disso e dei uma olhada na Sonia Abrão. Estavam, como de hábito, mostrando
um dos velórios, com música de parada fúnebre e comentário em off do repórter
com voz impostada. De repente, aquilo me pareceu absolutamente irreal, como se
fosse uma encenação de quinta: era como se as pessoas que tavam no enterro fossem
canastrões contratados de última hora, o defunto no caixão era um boneco, as pessoas
deviam estar dando risadinha atrás... ou seja: aquela encenação em cima da imagem
(editada, edulcorada, musicada) tinha alterado completamente o status da realidade.
E numa situação extrema como essa, ontologicamente fundamental pra qualquer um,
a coisa era mais chocante ainda. Agora sei porque os judeus interditam
toda e qualquer representação, imagem mesmo. Inclusive de pronunciar por inteiro
o nome de Deus (a palavra já é imagem). Essa desconfiança em relação ao representar,
em relação ao falseamento do ser pelo homem, essa ruína da experiência, da deslegitimação
do real pela imagem, é uma coisa que me leva a pensar em que espécie de estrago
o consumo das crianças pelas visões distorcidas que as novelas, por exemplo, passam
da realidade pode estar causando. Isso talvez só a próxima geração possa responder
pra gente, mas é assustador. Porque a imagem cristaliza o desejo. A palavra
já é um passo além, já racionaliza, clarifica, mas a imagem é foda: é primeira,
é o olho do cu do Inconsciente; lidar com isso mobiliza um monte de questões políticas,
ontológicas, o escambau.
* * * Eduardo Valente,
20/07/2007, 8:59 Neste episódio, confesso estar pouco
atento às imagens (por sentir que essas eu já conheço de eventos anteriores, e
prefiro não ter os engulhos de sempre), e mais assustado com a cara de pau da
mídia em geral e a sua falta de auto crítica. Pois, se realmente
a pista de Congonhas tivesse sido aberta antes da hora, muito mais que uma prova
do descaso oficial com o setor aéreo (que existe de maneira inconteste – tal e
qual tantos outros descasos do poder público que não recebem tanto espaço de papel,
já que “pobre não compra jornal”), é uma prova do efeito da chantagem político-emocional
que a mídia fez sobre o tema do "apagão aéreo" (ou do "caos aéreo",
como queiram). De repente atrasos de vôo pareciam ser a coisa mais horrível que
pode acontecer (lembro de como foi ironizado o preseidente da Infraero quando
disse que "parece piada, mas infelizmente não é: o vôo mais seguro é aquele
que está no chão"). Certamente se esta pista tiver
sido aberta antes da hora em condições não ideais, isso tem muito a ver com
esta necessidade de "responder aos jornais", na sua sanha de pegar imagens
de pessoas atrasadas, dormindo em bancos de aeroporto. Antes, o descaso e o desmando
era quando supostamente se fechava a pista por "qualquer bobagem" (lembro
de ter lido: “ontem uma chuva, hoje um passarinho...”), agora o descaso é que
abriram a pista antes da hora. Mas, a grande mídia sempre
ganha: agora tem imagens mais midiáticas ainda. É um assustador e enorme animal
retroalimentar, sem capacidade (vontade) de auto-reflexão. Incrível
mesmo. * * * Leonardo Mecchi, 20/07/2007,
9:24 Sem dúvida nenhuma, Duda. E
o pior é a contagem dos corpos. Parece alguma disputa para se quebrar recordes.
Todo dia a manchete é quantos novos corpos encontraram. Parece até contagem do
quadro de medalhas do Pan, um verdadeiro episódio dantesco que a imprensa está
protagonizando. Se o quarto poder foi criado para fiscalizar
os outros 3, já está mais do que na hora de se criar um quinto, pq nessa sanha
pelo espetáculo (envolta no discurso da "liberdade de imprensa") os
limites já foram deixados pra trás há muito tempo... * *
* Francis Vogner dos Reis, 20/07/2007, 10:38 As
imagens são abjetas, sabemos. O interessante portanto é compreendermos elas como
joguete de uma situação mais ampla e que tem me deixado atônito. O que tem
me impressionado mais é a mídia (não só eletrônica) louquinha por retaliação.
Usa-se a tragédia (que ainda não se sabe o motivo) pra atingir os alvos visados. Marcelo
Rezende ficava repetindo que alguém precisa ser preso; Sônia Abrão esperneava
a culpa das "autoridades" e dizia que alguém deve pagar pelas 200 vidas;
Datena berrava pedindo justiça; Carlos Nascimento, com sua risadinha de canto
de boca, ligava o acidente ao apagão aéreo. Falta de ranhuras
na pista molhada, falha no sistema de freagem, imperícia do piloto são algumas
das possíveis causas – além do que, qualquer tragédia pode ser simplesmente obra
do acaso, do azar. Mas não importa: a atitude, absolutamente irracional, de que
alguém precisa (de qualquer maneira) ser responsabilizado é talvez o que de mais
assustador se vê na mídia hoje. Na Folha, Eliane Catanhede parece não
saber mais o que escrever e tudo responsabiliza o governo federal – a cada dia,
a cada fato. Creio que se alguém morrer em um acidente de carro em Carapícuíba, ela
vai acusar descaso do governo federal. O espírito de turba
de linchamento é o que existe de mais temerário hoje no país, a mídia não é crítica
a isso porque ela é um orgão oficial do "movimento". A indignação com
o descaso político é legítima, mas a irresponsabilidade pública não nasceu ontem
e nem há cinco anos atrás, e essa indignação supostamente "cidadã"
é hoje o maior canal de um furor fascista, descontrolado de tonalidades absolutamente
irracionais. O linchamento é uma cultura antiga, mas está na moda e
é democrática, serve pra qualquer um: de menores criminosos, passando
pelo presidente Lula, chegando à excitação de ver Paris Hilton chorando dentro
de um carro de polícia... Ao mesmo tempo que a mídia crítica,
tem a perversão voyeur: imagens do acidente usadas a torto e a direito
(com música e narração), jornal como púlpito dos porta vozes (auto-denominados)
da indignação coletiva, imagens do M. A. Garcia fazendo gesto "obsceno".
Além é claro, do que vimos nos últimos tempos: Cicarelli, João Hélio, Clodovil,
Paris Hilton – essa última coitada, não bastou milhões de pessoas vê-la sendo
penetrada por um pênis, vemos depois presa, chorando e muita gente (programas
de fofocas) com uma opinião a dar do tipo "a patricinha merece cadeia, mesmo porque
ela não é melhor que ninguém". Já não é mais circo eletrônico:
é ante-câmara de torturas eletrônicas, equivalente a enforcamento em praça pública. *
* * Eduardo Valente, 20/07/2007, 11:17 Francis 2 observações
rápidas: - Sobre Paris Hilton: convenhamos, ela saiu-se brilhantemente
ao final. No circo de mídia montado fora da cadeia em sua saída, desfilou como
se estivesse numa passarela (nada mais adequado), rumo aos braços da mãe bilionária
que a esperava num carro. O que começa imagem, precisa terminar imagem. Taí uma
que sabe/soube jogar com isso. - Sobre o furor da turba em
busca de culpados em momentos de tragédia: está longe de ser fenômeno recente
da mídia onipresente – para ficar em um exemplo, sobre isso escreveu Tchekov em
fins do século XIX, no conto em que baseei meu curta O Monstro.
A
mim o que impressiona é a força quase sobrenatural desta mídia de hoje pra
governar de fato (hoje um Governo, qualquer Governo, é refém da combinação mídia/mercado
financeiro), sem direito a contrapontos (se "o mercado está nervoso",
ele deve ter razão pra isso, portanto façamos ele se acalmar com o que for que
ele pedir; se a mídia grita "caos", tomemos como fato). E
nisso, juro, continuo me chocando a cada vez (por mais óbvio, aparentemente, que
seja) a falta de auto-crítica, da possibilidade mínima da mídia tratar do seu
próprio papel em algum evento, qualquer que seja. Lembro sempre do diagnóstico
do fracasso da seleção na Copa de 2006 por seus jogadores “terem se transformado
em figuras acima da realidade": culpava-se os jogadores por isso, e nem por
um segundo refletindo sobre quem os tornou assim. *
* * Renata Gomes, 20/07/2007, 12:20 De
minha parte, estou também chocada com a extensão da reação natural, misto de consternação
e excitação coletivas, por parte do “público”. As dezenas de comunidades no Orkut
“para” ou “sobre” o acidente são uma coisa bizarra (e olha que eu fui ver na mesma
noite da tragédia; agora, talvez já tenham quadruplicado. Ou não, vai ver que
já “gastou”.). Numa delas, uma mesma usuária, no que parecia ser um “serviço de
utilidade pública”, colocou links para os perfis de “todas” as vítimas (o título
do post era “Orkut: eles tinham”). Não resisti à curiosidade e fui olhar uns dois
(que, até onde eu sei, podiam ser de pessoas quaisquer): média de 10 a 15 scraps
*por minuto* do que pareciam ser completos desconhecidos. O que mais me surpreende
é que são mensagens ‘sinceras’, essas que os desconhecidos deixam nos Orkuts das
possíveis vítimas. A maior parte de “força para a família” e tal, outras de revolta,
mas fica a honesta impressão de que eles realmente crêem naquilo ali... E me fica
a dúvida se, em algum nível, lhes passa pela cabeça algum tipo de “invasão de
privacidade”. Ou, mais ainda, como é a recepção “das famílias”, se aquilo ali
é um alento, se chegam a lembrar que os filhos tinham um Orkut ou sei lá o quê.
Confesso que toda essa parte Internet 2.0 me deixa muito curiosa... A
“sacada” da mídia online de criar seus fotologs e blogs para os depoimentos e
imagens das “testemunhas” foi outra coisa que me chocou. Tive vontade de fazer
uma performance subversiva de criar relatos e imagens conflitantes, só para sacudir
a “comoção midiatizada”.
Mas aí, sabe, também fico achando que toda essa
movimentação também não é tão nova. Quando lembro dos dias a fio de repercussão
boca-a-boca que as tragédias tinham na Fortaleza da década de 80... Fico me perguntando
se os detalhes verbais daquela época eram menos absurdos do que a tempestade de
imagens de hoje. Óbvio, não é uma questão possível de comparação — e, platonismos
à parte, me parece que, sim, a palavra traz consigo, pela própria natureza, um
mínimo de abstração que favorece o senso crítico... Eu fico pensando
se o 9/11 tivesse acontecido numa época mais YouTube, mais celular-com-câmera,
mais fotolog... * * * Luiz Soares
Júnior, 20/07/2007, 15:47 A verdade é que essa
política (anti-política) da histérica deflagração de culpados, de causas-mor,
de uma origem que dê siginificado e razão a tudo, mesmo em casos que podem ter
sido ocasionados pelo acaso mesmo, é uma tática tipicamente fascista, e no tom
em que isso vem sendo proclamado confirma aquela velha máxima jesuítica: voz alta,
argumento fraco.
Infelizmente, esse tipo de jornalismo reativo, fascistóide,
que se utiliza das pulsões e da fragilidade emocional de população pra mais baixa
manipulação dá muita mídia nessa hora pela capacidade que tem de catalizar a emoção
e convertê-la em algo ativo, ilusoriamente ativo, mas em verdade ideologia pura
e sabe-se mais que diabos.
editoria@revistacinetica.com.br
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