diário da redação
A periferia no centro das atenções: Antônia e Vidas Opostas
edição de Eduardo Valente

Se não fosse por mais nada, pelo simples fato de marcar o terceiro longa de uma das mais promissoras cineastas do jovem cinema brasileiro (Tata Amaral), que não terminava um longa desde 1998, estávamos todos ansiosos por Antônia, o filme. Mais ansiosos ainda ficamos ao saber que o projeto daria origem a uma série para a TV Globo, tanto pelo que isso significa de atenção ao cinema brasileiro quanto pela visibilidade que este trabalho independente receberia. Quando da estréia do filme nos recentes festivais, os redatores (não só de Cinética) se dividiram entre uma admiração forte e uma expectativa pela completude do projeto na TV. Claro que, assim que Antônia (a série, começasse a ser exibida, começariam novos debates. A única coisa com que não contávamos aí seria o atropelo da nossa atenção com a estréia de uma nova novela na rede Record (Vidas Opostas), a partir da qual a discussão sobre Antônia tomou novos rumos, sobre esta aparente "descoberta" do periférico pelas grandes redes de televisão.

* * *

De Eduardo Valente, 22/11/2006, 16:18
Vocês viram este comentário do Calil no No Mínimo? Fiquei curioso, mesmo não podendo assistir... tínhamos mesmo que conseguir nosso especialista em (ver) TV:

A estréia de "Vidas opostas", nova novela da Record, impressionou pela ambição. O primeiro capítulo, exibido ontem na faixa das 22h, teve uma hora e 15 minutos de duração, sem intervalos comerciais. Misturou cartões-postais de Portugal e Rio de Janeiro com imagens pretensamente realistas de favelas cariocas (que emulavam o estilo de "Cidade de Deus"). Apresentou no elenco vários ex-globais (Lavínia Vlasak, Marcelo Serrado, Tássia Camargo, Nicola Siri, Heitor Martinez etc.) e algumas revelações do filme de Fernando Meirelles (Leandro Firmino, Phelipe Haagensen).
Mas houve algo mais impressionante que o esforço de produção: o desejo de fazer um painel crítico do Brasil atual. Na trama, há um delegado corrupto (Serrado) que se associa a traficantes de drogas; em uma guerra de facções, um policial mata um inocente, que se esparrama sobre a bandeira do Brasil. Trata-se de um clichê visual, mas forte para uma novela.
Escrita por Marcilio Moraes e dirigida por Alexandre Avancini, a novela teve problemas sérios em seu primeiro capítulo: diálogos banais, personagens estereotipados, atuações caricaturais. Ainda assim, a ousadia dos temas foi louvável. Se a dramaturgia conseguir alcançar em algum momento o nível da produção, a emissora pode ter seu maior sucesso na tentativa de arranhar o domínio da Globo no universo das telenovelas.


Lila Foster, 22/11/2006, 19:05
Eu assisti!! Fiquei muito impressionada inclusive, mais ou menos as mesmas impressões do Calil. aqui em São Paulo tem outdoor para tudo  quanto é lado, campanha da DPZ, publicitário é foda...
Assisti por coincidência (gripe...) mas esta estréia ficou na minha cabeça, já estava com vontade de assistir. acho que a Record por ter menos "compromissos" pode arriscar mais e nào tem aquela necessidade moralizante da Rede Globo que, sinceramente, uma lição de moral por capítulo não tem quem aguente. Porque às vezes não está só na dramaturgia essa moralização--os bandidos sempre morrem queimados no final--mas no conjunto: vinheta durante o comercial falando que a Globo é a cara do Brasil, Jornal Nacional que nos primeiros dois blocos só fala em desgraça (o pior é a cara da Bernardes-Bonner, aquela feiçào imparcial, porém dolorosa...insuportável...prefiro os outros canastrões estilo cauby peixoto do que estes com cara de "denúncia social"), depois fala da garra do time de vôlei e sobre as costureiras do interior da Paraíba que conseguiram montar uma cooperativa para mostrar que apesar de tudo nós somos um país de guerreiros.
Aí vem a novela das oito...igualzinha...Bandidos e guerreiros sob o olhar da Globo. Não que eu ache que a Record possa se distanciar muito disto, mas é diferente, só pelo fato de saber que não é a Globo, é outra coisa, bem parecida mas não vem com aquele pacote completo bem chato.

Eduardo Valente, 22/11/2006, 19:51
Lila
Como eu disse, não vi a novela em si, então não posso falar dela, mas o que andava me impressionando era justamente o contrário (fiz até nota no nosso bloco sobre isso uma vez): ao invés de uma alternativa, me parecia que a Record estava apostando cada vez mais em clonar (às vezes literalmente) a programação da Globo, como se contasse que talvez um dia o espectador nem percebesse que estava assistindo outra rede, e acabasse ficando na Record.

Não acho sem interesse de guerrilha esta postura, assim como concordo que mesmo com esta clonagem há pontos interessantes a diferenciar (porque clonar sem ser "a monopolista" em si é necessariamente algo diferente), mas sempre achei que apontá-la como "opção" não era bem realista.

Lila, 22/11/2006, 20:09
Não acho que ela seja alternativa, de forma alguma. Mas, que é diferente é, porque a Globo é muito violenta na sua auto-promoção, na capacidade que ela tem de falar de si em todos os programas (auto-referência em tudo) e de sempre reforçar o seu caráter unificante da nossa "nacionalidade", a sua missão moral encarnada na figura do William Bonner. É cópia descarada mas de alguma forma abala um poder estabelecido e quase encarnado se levarmos em consideração este "pacote completo" que é a programação da Rede Globo.

Ricardo Calil, 22/11/2006, 21:22
oi caros,
realmente, seria bem bacana que alguém pudesse escrever sobre tv de forma mais sistemática e aprofundada na Cinética. Há várias coisas interessantes (não necessariamente boas) acontecendo: Antônia, essa novela da Record, a paródia a novelas do hermes & renato).
eu comecei a ver mais tv por obrigação e luto diariamente com meu esnobismo. mas será que dá para falar de audiovisual no brasil sem passar pela tv?
abração a todos
ricardo

Felipe Bragança, 23/11/2006, 09:22
Vi a novela ontem. O texto é melhor que a maioria das novelas da Globo. A direção ficou entre o estiloso-bobão e a graça de tentar filmar as coisas com alguma criatividade. Pelo menos, JURO, tive a sensação de ver uma novela com alguém tentando pensar que a câmera tb fala... Mesmo soando excessivo e pouco eficaz, as vezes, a direção do rapaz lá e a edição mostraram ao menos o desejo consciente de achar uma "mão de direção" (dentro dos limites narrativos impostos pelo formato, claro) e não uma linguagem genérica de folhetim. 

Curioso pq na Globo, as novelas que têm feito isso (tentar achar estética especifica através do tom da dramaturgia) sempre trabalham com um sentido meio clipado-hype de "finalização esperta". Aqui não, vc via que o cara tinha filmado umas coisas de um jeito curioso e o invencionismo da edição ficava mais no bom e velho recorta-e-cola e menos em firulas videográficas. Vou tentar ver hoje de novo. Não é um programão, mas eu fiquei curioso. Pena que novela dura meses... : )

Mas, e o Antonia, hein? Teve uma cena emocionante pacas (elas se despedindo da amiga que voltava para a cadeia), mas o resto parecia trailer-do-trailer-do-trailer. Alias sensação que sinto desde que estava vendo o filme no Palacio: "Quando esse filme começa? Parece que vai ser bom quando for prá valer." 6a feira eu vejo de novo. Ainda com boa expectativa.

Ilana Feldman, 23/11/2006, 23:09
Eu não vi o filme da Tata, mas concordo em absoluto com o Felipe sobre a estética trailer e "língua pra fora" da série Antônia: esse clichê do excesso de cortes dentro da mesma seqüência, sem nenhum sentido narrativo ou dramático, já está se tornando insuportável. Basta que os personagens sejam "de periferia" para que se construa uma sensação de "urgência" estética, sensação de que todos têm de correr para não perder o bonde, incluindo aí o cineasta. Perder qual bonde? Do capitalismo, da guerra de audiência, do controle da atenção espectatorial? Na primeira seqüência, por exemplo, quando elas aparecem "na laje" cantando, a câmera fixa treme. E assim vai em várias situações - que não demandam este tipo de código narrativo. Procedimento, junto com a picotagem, que elimina qualquer possibilidade de instalação do espectador no espaço e, portanto, de apreensão de uma experiência com alguma espessura. Mas, como nem todo náufrago submerge, cheguei a chorar na cena da despedida de que fala o Felipe, com Adoniran sendo cantado pelas moças, ótimas, na porta da prisão, sexta à noite – e na Globo.

Eduardo, 24/11/2006, 00:12
Sem ter visto a estréia, pelo visto tudo que eu não gostei no filme ficou na série... Isso de cara de trailer e o problema dessa câmera "estamos testemunhando a verdade" eu tratei no meu texto inclusive... Amanhã vejo pela primeira vez na TV.

Ilana, 24/11/2006, 18:38
oi, valente,
Vi seu texto sobre Antônia agora. Interessantes as questões colocadas. Acho, inclusive, que vc ou quem for escrever sobre série pode aprofundar a discussão sobre essa "câmera epilética" que, como disse, parece testemunhar a verdade; uma verdade sempre urgente e emergencial. Interessante que este tipo de código, além de vincular-se ao ideal de captura de uma autenticidade-de-periferia, está sempre à serviço da produção de uma instabilidade, seja ela emocional, sobretudo, econômica e/ou social. É bem curioso esse procedimento e, de certo modo, de um determinismo social nocivo, como se só os habitantes de periferias e favelas vivessem na emergência do susto, do descontrole emocional, do medo e da tragédia.

Eduardo, 25/11/2006, 09:08
Vi ontem o segundo episódio e, mais do que a questão da câmera, me chamou mesmo atenção a outra coisa que eu tinha apontado no filme, e o Felipe disse que chamou a atenção dele no primeiro episódio: o aspecto que aquilo tudo continua parecendo ter de um grande piloto ou um trailer de um universo no qual ainda não sabemos exatamente como instaurar uma ficção. Minha sensação continua de que é tudo muito epitelial, como se bastasse à série o aspecto de sua importância sociológica (a periferia como espaço, o negro como protagonista, a mulher como foco), e deixássemos pra trás os personagens. Me parece, nesse sentido, que a série é um passo atrás em relação ao Cidade dos Homens (embora sobre este eu escreva de orelhada, pois pouco vi), e especialmente um derivado da lógica Regina Casé-Central da Periferia. Talvez, e só talvez (de novo, eu pouco assisto), A Diarista seja mais completo como ambiente ficcional do "outro".

O segundo aspecto que me parece ter é o de tomada do espaço concessionário da Globo para o jovem cinema brasileiro, que precisa negociar com este espaço e com um espectador que geralmente ele não precisa considerar nos seus filmes - e ainda não sabe bem como cortejar.

Eu diria que qualquer escrita realmente reveladora sobre a série teria que partir de uma genealogia recente mínima que inclui, por um lado Cidade dos Homens e a série do Carandiru; por outro A Turma do Gueto lá do Netinho; por outro a própria Diarista; por outro ainda o Central da Periferia; e finalmente esta novela nova da Record. só assim Antônia pode ser realmente posicionada em alguma micro-história. Eu, infelizmente, só conheço todos os acima em pedacinhos ou em leituras secundárias sobre eles.

Cléber Eduardo, 25/11/2006, 11:25
Acho que um e outro, Antônia e Cidade dos Homens, valem-se de um mesmo expediente, Antonia mais que Cidade dos Homens: a legitimidade pelo simples fato de estarem lá, nos lugares do outro, com narradores que "não são mediadores para as elites". Estando lá, a câmera, em vez de observar o outro, de observar o espaço do outro, tira o olho, arregala, desvia, tenta por o olho em outros lugares, em outros ângulos, mas continua a mudar o olhar, como se não quisesse ver, como se quisesse apenas o "movimento", esse sentido e idéia de que todos estão fazendo a correria da vida, filmes e série inclusive (porque isso vale para todos).

Os filmes e as séries assim traduzem em sua linguagem a urgência com que eles se legitimam (vemos o ali e o agora), expõem uma superfície que reflete um olhar invasor, que precisa filmar rápido e sair logo, porque ali não é seu lugar - e é essa a correria do filme, a de um cinema que tenta se expressar como um cinema que tem de captar suas imagens muito rapidamente. No entanto, a ausência de mediadores com as elites é falsa, porque os protagonistas, em muitos desses filmes e da série, estão vacinados em alguma medida contra seus ambientes, são mais próximos de nós do que "deles", são aptos a sair de seus espaços sociais ou de pelo menos lucrar com o fato de pertencerem a eles (o fotógrafo em CDD, as cantoras de Antônia). Acho que podemos e devemos avançar em conjunto nessa discussão. E Querô, do Carlos Cortez, alinha-se a essa tendência, ou a essa formatação, embora, por outro lado, existe uma busca conformada por uma maneira de se filmar determinados espaços (físicos e sociais).

Ilana, 25/11/2006, 10:50
Sobre a câmera, ontem só peguei o final do episódio, e me pareceu que ela estava bem mais "contida" do que no primeiro capítulo. Impressão minha?

Sobre a possibilidade de uma micro-história das tematizações da periferia na TV, tenho dúvidas se é mesmo pertinente misturar objetos pautados pelas diversas demandas de um realismo cuja matriz é o cinema com outros mais próximos da paródia e comédia dos humorísticos televisivos - como é o caso da Diarista (não vi Turma do Gueto). Não que as aproximações não possam ser feitas, mas não sei se elas funcionam, porque a chave é outra. Dúvidas. Se bem que, poderia ser muito interessante sim... O problema é encontrar alguém que tenha acompanhado todos esses programas.

PS: Quanto à Diarista, gostei muito dos episódios que vi. Partiam do estereótipo (e da interpretação estereotipada) para subverterem esse mesmo estereótipo. O que não deixa de criar outro, o da doméstica-esperta, de uma esperteza autêntica, intuitiva e genuína, algo meio "macunaímico". Mas é difícil tecer qualquer comentário mais profundo sem ter acompanhado a série ao longo prazo.

Cléber Eduardo, 25/11/2006, 12:17
Me pergunto se toda imagem não tem alto potencial de estereótipo, seja para confirmar os existentes, seja para ir contra eles (e criando outros), sempre que trabalha com imagens-síntese.

Eduardo Valente, 25/11/2006, 12:41
Potencial, tem, mas não acho que os gere necessariamente, e aí a questão na ficção me parece ser a de atacar o conceito de personagem/individualidade (algo a ser atingido via roteiro + trabalho com atores).

Acho o Suely um bom exemplo: pode-se tomar a personagem como um "estereótipo" (ou, como vc mencionou um contra-estereótipo)? Acho que até se pode, mas da forma como o filme se constrói, tão obcecado pelo universo direto do entorno da personagem, e mais ainda, do que se passa dentro dela, isso vai sendo esvaziado, e o estereótipo, se há, só surge através de Hermila, antes de tudo. É o que falta em Antônia pra mim: se rascunham personagens ali, mas eles são mais definidos por suas situações do que qualquer outra diferenciação/individualização real (a mãe solteira, a jovem que enfrenta o marido, etc) e se trabalha na repetição em cima destes mesmos temas.

Que se note como a questão do ator é poderosa: a Leilah Moreno é tão boa (com trocadilho) que a personagem dela ganha vida própria pelo seu simples olhar. Já as outras 3 me parecem quase estanques, sem cativar no espectador nada mais que a "simpatia de classe/gênero".de fato eu até agora não sei quem são aquelas mulheres/personagens.

Acho ainda que o filme/série têm enfrentado um problema que é o protagonismo quádruplo. na tentativa de envolver todas as 4 em sua trama sempre com o mesmo enfoque, há esforços e forçações sendo feitas que, sinceramente, não se justificam dramaticamente.


Felipe, 25/11/2006, 18:45
Eu vi esses programas todos... hehehe

Posso escrever. Mas para escrever melhor partindo da série, queria poder ver pelo menos 3 (a metade da serie) dos episódios...


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