in loco
Diário de Santa Maria da Feira
por Leonardo Mecchi
Eu já havia sido avisado
por aqueles que freqüentaram Santa Maria da Feira antes: trata-se
realmente de um festival sui generis, um festival eminentemente
cinéfilo (algo mais raro do que pode parecer). Nada de discussões
sobre políticas governamentais, nenhuma busca de financiamento
ou co-produções, nem mesmo debates entre realizadores. Em Santa
Maria da Feira, a única coisa que importa são os filmes: filmes
a serem descobertos, filmes a serem revistos, filmes a se discutir
na mesa do bar. Em função de suas características peculiares (um
festival sediado numa cidade pequena, que prima pela informalidade
e que convida uma dúzia de cineastas brasileiros – novos e consagrados
– a conviverem juntos durante oito dias, vendo e discutindo os
filmes uns dos outros), Santa Maria da Feira permite uma integração
e aproximação raras entre esses cineastas, numa troca de experiências
e visões sobre o cinema que só tende a render belos frutos e parcerias
futuras.
Em relação à programação, como já
tinha comentado, a competição de longas metragens não trouxe
grandes novidades para os brasileiros. Com exceção de Transe,
de Teresa Villaverde, que representou Portugal na Quinzena dos
Realizadores do último Festival de Cannes, os demais filmes em
competição já haviam sido exibidos aqui no Brasil e foram foco
de análises pelos membros da Cinética: Proibido Proibir,
Crime
Delicado, A
Concepção, Incuráveis,
Wood&Stock e O Céu de Suely. Em
função disso, meu foco transferiu-se para a competição de curtas
metragens, e essa decisão rendeu gratas surpresas.
De uma maneira geral, a seleção
de curtas brasileiros foi homogeneamente superior à produção portuguesa
que, se apresentou grandes obras (como Rapace e Perímetro),
na média se mostrou bastante irregular. É curioso notar também
certas características e estilos que diferenciam essas cinematografias.
As obras portuguesas tendem a ter uma mise-en-scéne bastante
rígida, de enquadramentos fixos e fotografia seca, criando um
clima pesado, lento e melancólico, como que a corroborar um certo
clichê sobre o espírito português. Já os filmes brasileiros, em
especial dos jovens realizadores, buscam atingir, com resultados
variáveis, uma espontaneidade e frescor na linguagem, mesmo no
trato de temas mais densos, que deixam claras as diferenças de
olhar em relação aos realizadores lusitanos.
Abaixo o leitor poderá conferir análises e comentários
curtos sobre cada um dos curtas-metragens em competição. Como
muitas vezes a curadoria de Américo Santos (idealizador e organizador
do festival) permite uma aproximação e diálogo entre os filmes
programados para uma mesma noite, foi mantida a ordem cronológica
de exibição. Em anexo, ainda poderá ser encontrada a lista
completa dos premiados desta 10a edição do Festival
de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira.
Dia 04/12:
Aranhas Tropicais,
de André Francioli (Brasil, 2006, 19 min) - Neste seu novo filme,
Francioli (de O Mundo Segundo Sílvio Luiz e Veja e Ouça
– Maria Baderna no Brasil) assume desde o início a influência
de Sganzerla e Ivan Cardoso em seu cinema. Aranhas Tropicais
trabalha a visão crítica e desiludida do diretor sobre o mundo
(e o Brasil em particular) através de uma estética deliberadamente
fake e um humor escrachado e irônico (“Quando a gente não
pode fazer nada, a gente avacalha”, já dizia O Bandido da Luz
Vermelha).
Com sua narrativa frágil, quase inexistente, o
filme é baseado em seu trabalho de montagem e som. Entretanto,
quando abre mão da esculhambação geral para tecer, através de
seus personagens-clichês (Homem-Aranha, clones-mirins de Michael
Jackson, Estátua da Liberdade, garota da MTV, cowboy etc), um
ataque pontual ao alvo eleito – a colonização intelectual, cultural
e científica imposta pelos EUA –, o filme perde sua força por
se reduzir a uma crítica vazia e generalista, onde se aponta os
males do mundo como se de posse de uma lucidez exclusiva, sem
com isso se revelar nada de novo ou apontar novos e possíveis
caminhos. Como nos lembrou a retrospectiva de Edgard Navarro exibida
durante o festival, o humor só é revolucionário quando seu primeiro
alvo é ele próprio.
Manual Para Atropelar Cachorro,
de Rafael Primo (Brasil, 2006, 18 min) - Já comentado na revista
por Marcus Mello em sua cobertura
de Gramado (de onde o filme saiu levando três prêmios, incluindo
melhor curta pela crítica e júri popular), o filme também trabalha
na chave do humor as neuroses e vicissitudes do mundo urbano e
contemporâneo. Para além do visual pop (de cores fortes,
narrativa fragmentada, montagem ágil e trilha sonora envolvente),
o que chama a atenção no filme, entretanto, é a força da linguagem
visual de Rafael Primo, num domínio aparentemente instintivo desse
universo audiovisual que lembra o cinema de Tarantino.
Os posicionamentos inusitados – porém
precisos – da câmera, a atenção aos planos-detalhe, o uso de diferentes
formatos de captação em sintonia com a estética e narrativa do
filme (e não como um simples exibicionismo técnico), seu ritmo
preciso e as brincadeiras com clichês do cinema tornam Manual
um filme extremamente interessante e, por que não dizer, divertido.
A única coisa que enfraquece a obra, sem com isso comprometer
seu resultado final, é a forma como a estrutura em que a narração
em off foi construída impõe ao filme um certo estilo claramente
derivado de Jorge Furtado e seu jogo com o espectador, que acaba
por tirar em parte o frescor e originalidade da obra. Um diretor
que, se não ficar preso a uma fórmula que rapidamente se esgota
(a do filme “moderno” e ágil), merece ser acompanhado de perto.
Rapace,
de João Nicolau (Portugal, 2006, 25 min, assista a trechos do
filme aqui)
- Um dos dois representantes portugueses na Quinzena dos Realizadores
do último Festival de Cannes (o outro é o longa Transe,
também exibido no festival), Rapace é um filme de mise-en-scène
e trabalho com o espaço do quadro impressionantes. É também um
filme que trabalha com humor, irônico e afiado, a tal melancolia
blasé da pós-modernidade. De João César Monteiro, de quem
João Nicolau foi assistente de montagem, Rapace herdou
a precisão da mise-en-scène e a ironia fina; do primeiro
Godard, a anarquia do olhar e do som.
Com
uma narrativa livre e criativa, João Nicolau constrói um retrato
de uma certa juventude portuguesa que, devidamente formada e bem
criada, encontra-se repentinamente sem horizontes e motivações.
Diferente da grande maioria da produção portuguesa recente, que
reserva um olhar duro, amargurado e melancólico para essa juventude,
Rapace opta pelo humor inusitado e absurdo de quem não
vê a contemporaneidade como um mal irremediável, mas que tenta
romper essa inércia para seguir um novo caminho, referindo-se
sim ao passado (Monteiro, neste caso), mas sem com isso abrir
mão de uma linguagem própria e nova. Com uma obra de porte nesta
sua estréia na direção, João Nicolau se coloca desde já como uma
das grandes expectativas do novo cinema português.
Dia 05/12
Perímetro, de Miguel Seabra Lopes (Portugal,
2006, 24 min) - Perímetro também se impõe desde o início
por sua mise-en-scène – extremamente
rígida, pesada e formal. A câmera sempre fixa – enquadrando ora
espaços vazios decadentes, ora o protagonista inerte e moribundo
(quase nunca frontalmente, aproximando-se dele pelas costas ou
num perfil fora de foco) –, o som ambiente realçado, a fotografia
seca e sem filtros, tudo contribui para a sensação de incômodo
causada no espectador.
Entretanto, mais do que uma
provocação gratuita (comum a certos filmes brasileiros ávidos
por chocar o “espectador de classe média”), tais opções se mostram
indispensáveis na (re)criação do sentimento de deslocamento do
personagem diante do mundo e de seu próprio corpo, potencializado
pela ausência de qualquer possibilidade de comunicação (seja com
seu filho – talvez já morto? – ou com o pai à beira da morte).
Um filme sem concessões que, ainda assim, deixa alguma saída para
seu personagem, mesmo que dúbia. O que parecia ser a preparação
para um suicídio, mostra-se na realidade uma última e extrema
tentativa de deixar o peso de seu passado e de um certo determinismo
hereditário para trás para poder quase que se sublimar no mar.
Uma explosão que quebra a imobilidade e liberta – o personagem,
a câmera e o espectador. Um filme difícil, em seu extremo rigor
e precisão.
Parte de Mim, de Margarida Leitão (Portugal,
2006, 14 min) - Parte de Mim é mais um filme que, como
a maioria das produções portuguesas, possui um tom solene, pesado,
amargurado. Assim
como Perímetro, o filme de Leitão também trata da incomunicabilidade
entre as pessoas, do peso imobilizador das decisões e da imprevisibilidade
do futuro. Aqui, entretanto, a gravidade da encenação não se basta.
Temos entre os protagonistas (e, conseqüentemente, entre a diretora
e o espectador) um jogo de verdades e mentiras, ocultações e revelações
que, ao se revelar, acaba por esvaziar o filme e expor aquela
estrutura como um frágil castelo de cartas. A melancolia humana
é algo muito mais etéreo e difícil de retratar do que a direção
de Leitão parece supor.
Cântico das Criaturas, de Miguel Gomes (Portugal,
2006, 24 min) - Um verdadeiro pout-pourri de estilos e
estéticas, Cântico das Criaturas é uma obra, no mínimo,
estranha. Inspirado na oração homônima de São Francisco de Assis,
o filme começa com imagens documentais em Super-8 de um trovador
cantando a oração pelas ruas de Assis, na Itália, focando a oposição
entre o caráter histórico da cidade e os turistas que invadem
suas ruas. Em
determinado momento, o curta muda completamente de registro, passando
abruptamente para uma encenação teatral, propositadamente artificial
e artesanal, de uma passagem da vida de São Francisco de Assis
e de sua relação com Santa Clara. Por fim, o filme rompe, repentinamente
uma vez mais, com sua linguagem, passando agora para cenas documentais
da natureza – por vezes retratando momentos belos e delicados
dos animais e em outros momentos registrando a violência da vida
selvagem –, com a oração de São Francisco de Assis sempre presente,
em off, na voz de crianças.
Pouco fica deste filme para
além do estranhamento dessa sobreposição de linguagens e registros,
uma vez que elas não parecem encontrar um fundamento, uma razão
de ser dentro da proposta do filme, para além desse choque estético
e estéril. O que vale destacar, isso sim, é o quanto esta obra
se diferencia dentro do cenário da produção contemporânea portuguesa.
Não por sua estrutura ou linguagem, mas por ser um filme de louvor
à vida, à sua alegria e beleza, em contraposição a uma produção
marcadamente pesada, melancólica e sombria.
Dia 06/12
De Glauber Para Jirges, de André Ristum (Brasil,
2005, 18 min) - Em suas imagens em Super-8, que ora aparecem com
cores saturadas, ora aproximam-se do registro abstrato, De
Glauber Para Jirges é uma homenagem do diretor André Ristum
à amizade entre Glauber Rocha e seu pai, Jirges Ristum. É também
um filme sobre a memória, por vezes carinhosa e afetiva – como
as imagens que remetem à melancolia de vídeos-caseiros –, por
outras conturbada e fragmentada – como a montagem de Eryk Rocha.
Um filme que, se nem sempre alcança o tom poético proposto (em
muito, justamente pelo excesso de intervenções nas imagens), ainda
assim deixa transbordar essa melancolia afetiva existente na relação
entre Glauber e Jirges (ou ao menos na memória que resta dela,
o que nem sempre é a mesma coisa) e na do diretor com seu falecido
pai.
Ao Fundo do Túnel, de João Pupo (Portugal, 2006,
16 min) - Assim como De Glauber Para Jirges, Ao Fundo
do Túnel também é um filme sobre a memória, a melancolia e
a saudade. Filme-painel que se foca em Antônio, um velho senhor
prestes a realizar uma cirurgia para recuperar a visão (e poder
assim voltar a enxergar a foto de Ana, sua falecida amada), e
as pessoas que gravitam ao seu redor: o filho (diretor de teatro
que está a montar uma peça justamente sobre o encontro de seus
pais), a nora (que passa o dia a cuidar dele) e uma atriz que,
ao final, descobrimos que interpretará Ana na peça escrita por
seu filho (ou, aos olhos de Antônio, a encarnará).
Apesar de construído com
precisão, ainda que de maneira simples e evitando o risco a qualquer
custo, Ao Fundo do Túnel não consegue criar com o espectador
a empatia necessária para conseguir nele a emoção que busca. Isso
ocorre principalmente por depender muito de uma estrutura frágil
que desaguará em um final que, se permite ao protagonista uma
esperança possível, o faz às custas de uma previsibilidade para
o espectador que resulta piegas.
Maria Ana Maria Mariana,
de Paulo Halm (Brasil, 2006, 23 min) - Maria Ana Maria Mariana
parte de uma estrutura semelhante ao longa Casa de Areia,
que abriu o Festival de Santa Maria da Feira: presas a um ambiente
específico (lá os Lençóis Maranhenses, aqui um velho sobrado),
acompanhamos três gerações de mulheres que vivem a solidão, a
melancolia e o isolamento. Assim como no longa de Andrucha, aqui
também temos uma mesma atriz se revezando nos diversos papéis
exigidos pela passagem do tempo – mas, por mais que alguns possuam
sérias ressalvas a Casa de Areia, o filme de Andrucha se
resolve muito melhor do que novo curta de Paulo Halm.
Não se trata aqui de comparar
filmes com propostas estéticas e orçamentos completamente díspares,
mas sim do cuidado e planejamento da produção dentro do que cada
filme se propõe. Halm parece querer impor ao filme uma poética
e leveza que o simbolismo excessivo, as atuações tatibitates e
o didatismo com o qual constrói a narrativa acabam por inviabilizar.
Nesse sentido, Maria Ana Maria Mariana é um filme que quase
nasce morto, asfixiado pela mão pesada do diretor, mais preocupado
com os sentimentos que queria transmitir do que com o modo como
fazê-lo.
História
Trágica com Final Feliz, de Regina Pessoa (Portugal, 2005, 8 min, assista
a trechos do filme aqui)
- Depois da seqüência de três curtas que olhavam para o passado
de uma maneira saudosista e melancólica, onde
o presente parece ser apenas um fardo a se carregar enquanto se
lamenta a passagem do tempo, História Trágica com Final Feliz
surgiu como um bálsamo na programação deste terceiro dia (e seu
título como um irônico presságio). A animação de Regina Pessoa
carrega em seu traço singelo uma poesia e beleza ímpares, que
fazem desta simples fábula sobre diferenças, identidade, tolerância
e amadurecimento uma experiência encantadora, uma profissão de
fé na possibilidade de se transcender o cotidiano sem que, para
isso, se precise negar a própria identidade. História Trágica
deixa claro que a leveza e a poesia são características que nascem
naturalmente quase se acredita na história que se está contando,
e não algo que pode ser imposto a fórceps em um filme.
Dia 07/12
Jonas e
a Baleia, de Felipe Bragança (Brasil,
2006, 19 min) - Os enquadramentos precisos, a construção rígida
da mise-en-scène, a direção racionalista dos atores, a
utilização minuciosa da música. Em Jonas e a Baleia, tudo
exala o inegável controle de Felipe Bragança sobre aquele universo
e sua narrativa. Bragança parece querer deixar claro para o espectador
que aqueles personagens projetados na tela não são seres com vida
e vontades próprias, e sim figuras dramáticas a serviço de uma
proposta estética. É assim que, por exemplo, o silêncio surge
para aqueles personagens como opção (imposição?) narrativa do
diretor, e não como uma questão própria a eles, algo que fica
claro na cena do jantar em família.
O mesmo ocorre na relação
do diretor com o público: ciente das expectativas e das emoções
que pode suscitar com sua narrativa, Bragança opta conscientemente
por negá-las ao espectador – como ao optar por concluir o filme
com uma cena de animação e não com a cena anterior, uma experiência
metafísica/sensorial construída através de um plano fixo de um
pé de jaca que remetia ao cinema de Apichatpong. O
diretor assume também uma posição de refutação direta a uma
certa onda naturalista do cinema contemporâneo recente. Embora
faça parte do projeto estético do diretor, esse controle extremo
sobre a narrativa, seus personagens e, indiretamente, o espectador,
corre o risco de sufocar a obra, por negar-lhe uma existência
própria e viva. Talvez antecipando essa encruzilhada, Bragança
parece tentar injetar um pouco de ar no filme, seja através das
suítes para violoncelo de Bach ou do background psicologizante
criado para os personagens (que acaba por aproximá-los estranhamente do
melodrama).
É nessa indefinição entre
a racionalidade de um projeto estético rígido (e frio) e a tentativa
emocional (e talvez até inconsciente) de uma aproximação mais
humana dos personagens que Jonas e a Baleia tenta encontrar
seu frágil equilíbrio. Uma contradição que, ao mesmo tempo em
que torna interessante acompanhar o desenvolvimento da carreira
deste diretor (que, não é preciso reafirmar, também edita a Cinética),
parece clamar por uma resolução, sob risco de encurralar e esgotar
sua proposta.
Joyce,
de Caroline Leone (Brasil, 2006, 14 min) - Ao contrário de Jonas,
em Joyce o interesse da diretora recai, prioritária e carinhosamente,
sobre suas personagens. Focando em duas irmãs da periferia paulistana,
Leone cola a câmera na mais velha e a acompanha em uma noite pela
cidade, interessada especialmente no misto de sexualização precoce
e inocência infantil que convivem conflituosamente num mesmo corpo
de menina.
Ao contrapor essa inocência
supostamente intrínseca das crianças a um ambiente externo opressor
e corruptor (a TV, os bares e as ruas da cidade à noite), a diretora
se aproxima perigosamente do clichê estereotipificante e moralizador
da periferia, mas consegue escapar dessa armadilha pela aposta
numa narrativa de poucas falas, balizada na atuação precisa das
duas meninas e no olhar extremamente carinhoso que Leone reserva
a suas personagens. Na cena final, com a menina a pentear o cabelo
com a cidade enquadrada ao fundo em sua janela, a diretora parece
apontar para a possibilidade de uma integração harmoniosa entre
esses dois personagens principais de seu filme – a garota e a
cidade.
Beijo de Sal,
de Fellipe Gamarano Barbosa (Brasil, 2006, 18 min) - Primo próximo
de Lucrecia Martel, Beijo de Sal assume sua filiação a
esse cinema naturalista, de personagens, um cinema quase documental
na sua busca por uma verdade, uma fagulha vital no seio daquele
universo retratado. Neste seu segundo curta-metragem, Barbosa
mantém o olhar apurado que já demonstrava em sua estréia (La
Muerte es Pequeña, encenado com apenas dois atores em uma
locação claustrofóbica), expandindo-o para uma produção mais elaborada,
com fotografia bem cuidada, diversas locações e múltiplos personagens
(ainda que focando prioritariamente na relação entre dois deles).
E
é dessa relação sempre conflituosa e multifacetada entre os personagens,
e deles com seus sentimentos, que vem a força do cinema de Barbosa.
Por mais que o protagonista Rogério aja de maneira no mínimo repreensível
ao longo do filme, o diretor não permite que ele caia em uma caricatura
unidimensional, reservando-lhe ao menos duas cenas (uma de reflexão
isolada em seu quarto e outra de deslocamento e desconforto entre
os amigos no sarau) onde, sem nenhuma palavra, matiza-lhe a personalidade
e dá-lhe uma maior profundidade e complexidade, ações fundamentais
em um cinema de personagens.
Se Beijo de Sal é
uma clara evolução em relação ao curta de estréia do diretor (por
confiar mais em suas imagens e personagens, prendendo-se menos
a uma estrutura visível de roteiro e diálogos), ainda repete algumas
características que acabam por enfraquecer o resultado final,
como a insistência em sublinhar excessivamente alguns traços da
personalidade de seus personagens (como a atitude agressiva da
garota em La Muerte ou a imaturidade bonachona e sexista
de Rogério em Beijo de Sal) ou explicitar motivações de
seus personagens que ficariam melhores se deixadas ao espectador
(como o mal entendido que leva a garota a deixar Paulo no final
de Beijo de Sal ou o voice-over que domina os dois
últimos atos de La Muerte es Pequeña). Tratam-se,
entretanto, de pequenas ressalvas que não tiram o mérito de um
diretor cujo cuidado no trato com a câmera e com os personagens
se revela bastante promissor.
Realce,
de João Carrilho (Portugal, 2006, 13 min) - Se alguns filmes conseguem
sair do particular para atingir o universal, outros se tornam
uma incógnita completamente indecifrável para aqueles que não
compartilham de parâmetros de avaliação comuns. Esse parece ser
o caso desta comédia de erros portuguesa. Fosse ela exibida no
Brasil, o filme seria rapidamente rechaçado como uma obra de visual
desleixado, personagens caricatos e um humor parvo baseado na
repetição de pequenos (e aparentemente despropositados) diálogos
e situações que, a nós brasileiros, remetem a algo próximo a um
Zorra Total. Entretanto, como toda comédia busca uma relação
menos racional e mais instintiva com seu público – e não posso
senão assumir, em função das risadas causadas em parte do público
na projeção do filme, que tal reação foi atingida na parcela portuguesa
da platéia – fica a questão em aberto: terá Realce um apelo
imperceptível que escapa ao espectador brasileiro, seja por diferenças
culturais ou por dificuldades de compreensão impostas pelo acento
lusitano, ou será o público português tão suscetível a um humor
simplista e simplório quanto o espectador do programa semanal
da Globo?
Dia 08/12
Alguma Coisa Assim,
de Esmir Filho (Brasil, 2006, 15 min, assista a trechos do filme
aqui)
- Se há algo que chama a atenção desde o início em Alguma Coisa
Assim é o fato do filme voltar sua câmera a um universo praticamente
invisível no cinema brasileiro recente: os adolescentes de classe
média. Nada de favela, pobreza ou do tão proclamado “Brasil profundo”.
O que temos aqui são dois jovens, curtindo a noite de uma grande
cidade e envolvidos com dilemas clássicos dessa idade, como a
descoberta da sexualidade ou o fato de se gostar de alguém que
não lhe corresponde. Não deixa de haver nisso uma certa dose de
coragem, ao não se filiar a um acordo implícito e silencioso que
parece definir quais seriam os temas “dignos” a serem retratados
pelo cinema. O resultado final é um filme que busca (e muitas
vezes consegue) recriar o espírito dessa geração nascida no final
dos anos 80. Não à toa seus melhores momentos são aqueles onde
há uma profusão de sons e signos visuais bombardeando os personagens
(como nas cenas na danceteria) ou onde as cenas exigem ritmo e
movimento (como o passeio no carrinho de supermercado).
Quando
a câmera se aquieta, entretanto, e a cena precisa se sustentar
apenas nos dois personagens e seus diálogos, o filme perde claramente
sua força, em grande parte por não conseguir tornar crível os
dilemas daqueles jovens através de diálogos que, ao buscarem uma
profundidade quase filosófica, resvalam no artificialismo. Apesar
desses “pontos cegos” em seu filme, que demonstram a necessidade
de um maior amadurecimento de sua linguagem, Esmir Filho demonstra
aqui possuir uma sensibilidade rara entre nossos diretores para
retratar essa juventude que já nasceu entre videoclipes, Internet
e celulares – e o sucesso de Tapa na Pantera, co-dirigido
por ele, demonstra que essa mesma juventude se interessa pelo
que ele tem a mostrar.
A Vida ao Lado,
de Gustavo Galvão (Brasil, 2006, 12 min) - Como bem observou
Cleber Eduardo quando da exibição deste curta no Festival de Brasília,
é claro o diálogo de A Vida ao Lado com um certo cinema
asiático, de encontros fortuitos, isolamento crônico e comunicação
impossível, diagnosticados em personagens urbanos e contemporâneos
através de enquadramentos elaborados e seletivos. É curioso nesse
sentido comparar uma característica comum a este filme e Jonas
e a Baleia, de Felipe Bragança: a ausência de diálogos. Se
no filme de Bragança esse silêncio é imposto aos personagens como
projeto estético do filme, aqui ele surge organicamente daquele
ambiente, como sintoma a ser observado e retratado.
Apesar da inegável
qualidade técnica e artística do filme (algo que fica claro na
construção precisa da excelente cena do metrô), fica no espectador
um certo estranhamento por seu caráter impessoal. Ao invés de
partir do particular para atingir o universal, Galvão parece ter
feito o caminho inverso, reclamando para si a filiação a uma certa
corrente do cinema mundial contemporâneo, sem contudo lhe imprimir
uma marca própria. Fica a sensação de um filme genérico, resultado
de um molde pré-fabricado que poderia ter sido preenchido por
qualquer outro com o mesmo domínio técnico.
Vermelho Rubro do Céu da Boca, de Sofia Federico (Brasil, 2006, 18 min) - Neste seu segundo curta metragem,
Sofia Federico aposta no realismo fantástico para contar a história
de uma garota que se apaixona por um suposto pretendente que estaria
lhe enviando rosas rio abaixo. Com
boas atuações (de Flávia Marco Antônio e Paulo César Pereio),
há momentos em que essa aposta funciona e o filme atinge um ar
lírico e poético, como na cena em que, para não se perder na busca
por seu amado, a garota se amarra a um fio de tricô que, a medida
em que ela se afasta da casa, desfaz o vestido pendurado em sua
janela. Na maior parte do tempo, entretanto, o filme não consegue
se desvencilhar de um tom solene e pesado, em parte devido à busca
por uma beleza “excessiva” na fotografia, que acaba por sabotar
as intenções da diretora.
Noite de
Sexta, Manhã de Sábado, de Kleber Mendonça Filho (Brasil, 2006, 15 min) - Kleber Mendonça já
comprovou em seus filmes anteriores (em especial Eletrodoméstica)
seu domínio da linguagem cinematográfica. Com Noite de Sexta,
Manhã de Sábado, entretanto, o diretor vai um passo além e,
onde antes predominava a técnica, introduz uma nova variável que
torna seu cinema ainda mais forte: o sentimento. Abandonando o
controle cartesiano da mise-en-scéne presente em seus curtas
anteriores e buscando um contato mais direto com o emocional (seu
e do espectador), Kleber Mendonça arrisca-se e, com isso, permite
que seu filme respire de uma maneira mais livre e viva, projetando-se
para uma existência própria para além da tela e através da experiência
do espectador e de sua relação emotiva com o filme.
Não que a técnica não esteja presente – ela se
faz notar claramente, em especial no trabalho de som do filme
(uma característica fundamental do cinema do diretor) –, mas aqui
ela possui um papel coadjuvante, ainda que essencial. O que está
em evidência em Noite de Sexta é a relação entre aqueles
dois personagens, seus sentimentos, suas dores. “Nunca fale de
amor em lugares públicos”, nos diz um dos personagens, e ao contrariar
tal filosofia, o filme corria dois sérios riscos: tornar-se algo
piegas ou um simples objeto para saciar o voyeurismo do espectador.
Mas justamente por seu domínio sobre a linguagem, Kleber Mendonça
soube evitar essas armadilhas, primeiro ao manter a simplicidade
do registro, dando uma importância muitas vezes maior ao silêncio
do que aos diálogos, e depois ao respeitar a privacidade daqueles
personagens, negando ao espectador – ora pela montagem, ora através
do som ambiente – o acesso a seus momentos mais íntimos. O cinema
de Kleber Mendonça parece estar se encaminhando a um novo patamar.
* * *
No âmbito geral do sucesso do festival, fica apenas uma observação:
como os diretores brasileiros permanecem na cidade ao longo de
todo o festival, mas os portugueses comparecem apenas nos dias
em que seus filmes são exibidos, a integração entre os realizadores
desses dois países, que poderia ser o grande trunfo e diferencial
desse festival, acaba não ocorrendo em todo seu potencial. Seria
interessante talvez organizar pequenos eventos ou debates que
permitissem essa troca de idéias e experiências entre os dois
países, mesmo que comprometendo em parte o caráter informal do
qual tanto se orgulha o festival, pois caso contrário corre-se
o risco do evento se tornar uma espécie de colônia de férias para
diretores brasileiros.
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