Viver e morrer no cinema
por Cléber Eduardo, Eduardo Valente e Leonardo Mecchi

Em um debate realizado durante a mostra Vivendo e Morrendo em São Paulo, um espectador pediu a palavra e perguntou por que muitos dos filmes nacionais exibidos na mostra não passavam no multiplex mais próximo de sua casa – destacando que já havia feito reivindicação neste sentido, pelo telefone, com o gerente do complexo. Para poder assistir a lançamentos de filmes “nacionais”, afirmou ainda, ele tem de sair da Zona Leste de São Paulo, onde mora, e ir até a região da Paulista/Augusta - onde, para além do tempo gasto no deslocamento até o cinema, paga um ingresso “ainda mais caro”.

A fala deste espectador, que diz respeito a sua experiência pessoal de maneira tão exclusiva, fez com que ele concluísse o seguinte: o problema da falta de público para o filme brasileiro não é de falta de salas, mas, além do preço alto do ingresso (alto para quem paga, mesmo que não seja para quem cobra), um fator expressivo é a ausência da oferta de títulos em determinadas regiões. Na mesa do debate, Cláudio Yosida, roteirista de De Passagem e Os 12 Trabalhos (ambos dirigidos por Ricardo Elias), confirmou a motivação do espectador: as salas afastadas dos Jardins não exibiram os dois filmes, apesar de ambos se passarem parcialmente na periferia.

Estamos nos referindo a um caso em São Paulo, mas não precisamos ter a imaginação de M. Night Shyamalan para adaptarmos a situação a outras cidades. Apenas alguns dias antes, uma pesquisa encomendada ao DataFolha pelo Sindicato das Empresas Distribuidoras tornou público números do mercado brasileiro e traços de comportamento dos pesquisados (empregados como síntese do consumidor brasileiro). Nenhuma pesquisa pode ser encarada como “a” referência, mas como “uma” referência, que ajuda a entender um certo campo, sem ser a explicação desse campo. Uma das informações mais importantes é a estimativa do número atual de freqüentadores de cinema no Brasil: 16,8 milhões de pessoas. Mesmo se somarmos os 3,7 milhões de espectadores potenciais detectados pela pesquisa – aqueles que não vão ao cinema por uma série de fatores (preço dos ingressos, ausência de salas), mas gostariam de ir – temos a assustadora realidade de que o cinema faz parte, potencial ou efetivamente, da vida de apenas 11% da população brasileira.

Na pesquisa qualitativa que foi divulgada simultaneamente, a situação fica mais clara, com o preço do ingresso figurando como unanimidade entre as principais restrições para uma freqüência maior ao cinema. Talvez isso explique porque uma mostra de entrada gratuita como a Vivendo e Morrendo em São Paulo, realizada em uma sala ao lado do metrô, atraiu sistematicamente mais de cinqüenta pessoas por sessão para filmes realizados entre os anos 60 e 2000 (muitos deles disponíveis em DVD ou recém lançados no circuito comercial). Experiência idêntica tivemos na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro, quando, em março último, lá realizamos a mostra Eu é um Outro, exibindo (também gratuitamente) mais de 30 documentários a uma platéia de espectadores de todos os perfis.

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Vários lados de um contexto complexo estão em pauta nesse mês em outras mostras de cinema, não por conta do perfil de suas freqüências, mas por conta de suas propostas conceituais, que refletem modos de pensar o cinema atualmente. Se nos filmes de Vivendo e Morrendo em São Paulo predomina a crise e as situações limítrofes em espaços bem delimitados, a mostra Cinema Global, Cinema Mundial (realizada na UFRJ) propôs em sua programação a superação dos espaços condicionadores de identidades dramáticas, aperitivo para o Seminário Internacional Do Atlântico ao Pacífico, com uma programação de mesas redondas sobre os efeitos das mudanças geoeconômicas nas trocas culturais entre as nações. Em uma outra mostra, Sutilezas Cotidianas (Itaú Cultural de Rio e Belo Horizonte, também em setembro), a rarefação dos fatos dramáticos das ficções e documentários, associada à noção de cotidianidade, é a tônica dos filmes programados.

O vínculo a uma cidade real como espaço diegético e a dramaturgia da experiência-limite. O espaço diegético e a identidade nacional do cinema, desvinculados de noções delimitadas de espaço (cidades, países). O cotidiano como noção de rarefação dramática, de apreensão ou registro de gestos, comportamentos, de momentos na vida de alguém filmados pela câmera. Conexão ao espaço e dramaturgia. O significado de um pertencimento a um lugar. Rarefação do espaço e da organização dramática. O não-pertencimento e o sentido em opacidade. Em recente seminário interno da Cinética, essas questões todas, ainda que com outras palavras, foram tratadas por nossa redação. Sinal de que o cinema, como o mundo e a vida, pode ser muita coisa, ao mesmo tempo, e que sua circulação pode ser muita coisa, ao mesmo tempo, e o fundamental é defender a possibilidade do drama limite e da rarefação dramática, assim como pensar o circuito comercial, pautado pela movimentação do caixa, sem deixar de pensar sobre a necessidade de outros circuitos, pautados pela noção de circulação e acesso, e não apenas de mercado.

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Finalmente, cabe notar com alegria que neste mês cumprimos a promessa de começar a retomar a vida na nossa Inter-Seção, com uma conversa com o cineasta Marcelo Gomes. Será a primeira de várias novas iniciativas na área – que, no entanto, agora precisam brevemente ceder lugar à sempre exaustiva cobertura dos grandes eventos de cinema do ano, o Festival do Rio e a Mostra de SP (que neste ano tiveram a honra de serem antecedidos por uma retrospectiva completa de Alain Resnais – que, claro será também destaque da revista nas próximas semanas).

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