olho no olho
Construindo um olhar de cinema (e mundo):
Marco Dutra e Juliana Rojas

Embora nem tenham chegado aos 30 anos, pode-se dizer que Marco Dutra e Juliana Rojas são veteranos de Cannes: o segundo filme finalizado em película que dirigem em conjunto, Um Ramo (ao lado), também é seu segundo filme selecionado para o festival francês. Ele será exibido na Semana da Crítica, enquanto o anterior, seu filme de formatura na ECA-USP (O Lençol Branco) havia sido selecionado para a Cinéfondation, competição voltada para filmes de escola, em 2005. Mais do que este fato, notável em si, o que impressiona na curta carreira dos dois ex-colegas de turma na faculdade é a identidade que podemos identificar no seu trabalho ainda tão recente (além dos dois curtas, Marco dirigiu mais um, e ambos dirigiram alguns trabalhos em vídeos). Sobre esta identidade comum, Cléber Eduardo escreveu uma análise, enquanto aqui deixamos que os próprios realizadores falassem sobre seus trabalhos, suas influências e seus projetos para o futuro.

Cinética: Vendo o trabalho de vocês em conjunto, fica claro que existe um certo universo que está sendo perseguido, procurado. Há algumas obsessões com determinadas situações que são recorrentes em suas derivações/variações em cada um dos trabalhos. Essas características que estão nesses trabalhos – o grau de estranhamento, o insólito, uma certa obsessão com a questão do desaparecimento das vidas, da degradação do corpo – eram anteriores a vocês começarem a trabalhar nos filmes ou isso foi surgindo trabalho a trabalho? Foi do encontro dos interesses de cada um que essas características surgiram ou, se vocês estivessem trabalhando cada um individualmente, estariam fazendo trabalhos diferentes?

Marco: Acho que foi amplificado um pouco pelo nosso encontro porque pensando cronologicamente, o roteiro de Concerto Número 3 é anterior à faculdade, mas ele só foi desenvolvido com o prêmio que ele ganhou depois de O Lençol Branco – mas o tema, essa coisa do câncer e da mulher, já estava lá. A gente tem uma piada interna que nossos assuntos são sempre morte relacionado às mulheres, no Notívago, no Lençol. Não sei exatamente quando a gente percebeu o que estava acontecendo.

Cinética: Mas no exercício da Juliana não existe a figura da mulher, existe uma figura masculina. Apesar disso, embora não haja exatamente a situação da morte, existe a questão do desaparecimento, que não é de um ser humano, mas de um espaço, que começa com o indivíduo e se torna de uma comunidade no final. De uma certa maneira se conecta ao desaparecimento que já está no Concerto (acima), a promessa do desaparecimento, o decreto do desaparecimento. Logo, me parece que a questão da mulher, pelo menos no trabalho de vocês, começa com você fortemente. Porque no dela me parece a instalação de um estranhamento, de um universo do estranhamento, do inusitado.

Marco: Mas o Notívago é a primeira coisa, é anterior a tudo.

Juliana: Essas questões são anteriores à faculdade, é uma coisa de formação pessoal. Acho que nem tanto só na coisa do terror, mas eu acho que a gente tem interesses que, quando a gente se encontrou, convergiram e criaram uma coisa específica. Por exemplo, o interesse pelo terror. O Marco sempre gostou de ler Stephen King, sempre gostou de ver filmes de terror e eu também, quando era criança, gostava muito de ler Edgar Alan Poe, gostava de escrever histórias de terror, coisas assim. E tem outros elementos que eu acho que tornam rico o tipo de coisas que a gente faz, que são outros tipos de influência, como o desenho animado, que nós dois gostamos muito. Influência de musical. Eu acho que a gente tem uma formação que é uma coisa que mistura influência de programas de TV, de filmes clássicos, de filmes de terror, que acabou se misturando e gerando um tipo de busca de um filme específico. A gente sempre brinca um pouco com isso nos filmes. Por exemplo num filme como Espera, que é um filme que trata sobre a morte, mas tem um pouco de ironia também. Eu fiz a edição de som do Espera, então a gente meio que trabalhou isso junto. No som do filme, se você prestar atenção, o que está tocando é A Formiguinha e a Neve, que é uma historinha infantil, um disquinho infantil que fala de uma formiguinha que fica presa na neve, fica pedindo a Deus pra derreter a neve, libertar ela, e no final ela morre. É uma história meio macabra. Então eu acho que o que torna nossas coisas interessantes é essa junção entre o que é terror, o que é mórbido, e uma coisa que é mais pro infantil e que a gente misturando acaba tornando perversa.

Marco: Não é uma coisa totalmente consciente e planejada. Ao longo do processo de finalização do Lençol Branco, aquela coisa de usar a televisão como composição do universo, para comentar e resignificar as ações, como na cena em que ela pega o filho morto, foi uma coisa que a gente foi experimentando, não é uma coisa totalmente planejada. Na verdade, a gente nem tinha certeza sobre que filme a gente ia botar passando na televisão até a filmagem. Por exemplo, o filme que comenta a ação dela. A gente não tinha clareza de que filme iria usar. A gente escolheu o filme, depois quando foi filmar escolheu o trecho e depois quando a gente foi editar o som, a gente mudou a edição de som do filme. O som na realidade foi editado de modo que as falas comentassem a ação dela. Isso cria uma coisa que a gente foi tentando investir. Hoje a gente tem alguma clareza do que significa o Lençol Branco, mas a Juliana fala uma coisa que é legal, que você entende um pouco sobre o que é o filme no processo. A gente tem poucas discussões de significados na pré-produção. No Um Ramo também.

Juliana: Não tem essa coisa do que cada símbolo é. É uma coisa meio intuitiva.

Cinética: Então vocês não se conheciam antes...

Juliana: Não, nos conhecemos no primeiro ano da faculdade. Nosso primeiro trabalho era um exercício que chamava “três planos, nove planos”, onde você tinha que contar uma história com três planos e depois a mesma história com nove planos e aí já era um filme meio de terror, onde fizemos nós dois e mais um outro aluno.

Cinética: Mas é curioso, pois vocês falam bastante de cinema de terror e tem uma turma fazendo cinema de terror no Brasil hoje, só que o de vocês vai mais para um terror muito mais psicológico, interiorizado.

Juliana: Acho que nosso grande encontro foi isso, foi que a gente não quer fazer uma coisa para se encaixar num gênero. A gente não quer fazer um filme de terror. A gente quer fazer um filme que tenha elementos de terror, mas que ao mesmo tempo você mistura drama, mistura coisas de comédia, a gente tenta misturar um pouco isso. O Lençol mesmo tinha cenas, que a gente acabou cortando, onde a gente tentava buscar um certo humor. A gente busca ironia nas coisas.

Cinética: E a questão da mulher no cinema de vocês?

Juliana: Na verdade acho que a questão da mulher a gente achou meio acidentalmente e acabou virando uma pesquisa. Não sei, acho que é natural depois que você faz um certo trabalho e vê que te interessa, você quer desenvolver isso.

Marco: Nesse sentido, Lençol é um pouco o desenvolvimento de Notívago.

Juliana: O Notívago aconteceu porque a gente estava no segundo ano, um ano teórico, sem produção prática, o que a gente achava muito ruim pro curso. Nós sabíamos que no terceiro ano teríamos que filmar um exercício em 16mm e a gente se sentia muito inseguro em dirigir em película. Então surgiu esse concurso de uma revista de cinema, onde você tinha que fazer um vídeo e concorria a uma câmera. Eu tinha ganho uma câmera 8mm e a gente resolveu fazer um vídeo. Pensamos numa idéia que fosse a mais simples possível, pra gente conseguir filmar logo e editar.

Cinética: Vocês queriam ganhar confiança para um exercício que vocês sabiam que viria em película depois...

Juliana: A gente queria exercitar, exercitar fazer um filme maior, porque até então a gente tinha feito coisas muito curtas.

Marco: Você entra na faculdade com um impulso de produzir muito grande. Na nossa época a gente editava esses exercícios na ilha linear, não havia computadores ainda na ECA em 1999. Então era tudo um pouco frustrante, um pouco difícil. Mas foi quando a gente começou a trabalhar juntos.

Juliana: A gente queria trabalhar a decupagem, ter controle de clima, fazer uma coisa de suspense e trabalhar questões estéticas que a gente tinha vontade e que a locação proporcionava. E ficou um resultado interessante. Virou uma coisa que a gente tinha vontade de trabalhar, até por ter uma série de filmes que a gente gostava também como referência, coisas como O Bebê de Rosemary, Uma Mulher Diferente, que é um filme do Robert Altman.

Marco: Nesse período a gente estava muito envolvido com esses filmes. Foi o mesmo período em que a gente viu A Hora do Lobo e foi nesse período que o Haneke estava lançando A Professora de Piano, que foi um filme que pra gente foi muito importante naquele momento.

Juliana: São filmes que têm personagens femininas que têm alguma perturbação, só que o espectador não tem acesso diretamente ao que é, e trabalham num universo doméstico.

Cinética: Então essas referências são todas conscientes de vocês no processo de desenvolvimento do projeto?

Marco: Independentemente de quanto as coisas se afastam ou se aproximam das referências, a gente sempre levanta essas referências. Era uma época em que a gente claramente discutia esses filmes, O Bebê de Rosemary, Uma Mulher Diferente, A Hora do Lobo e A Professora de Piano.  Mas isso não quer dizer que sejam as únicas coisas. Tinha muitas outras coisas acontecendo. Foi nesse período que eu comecei a ficar obcecado pelo Shyamalan, por exemplo, que estava lançando Sinais.

Juliana: E o Shyamalan trabalha muito isso, sempre tem um núcleo familiar, surge uma questão extraordinária, e no fim o filme não é só sobre a questão extraordinária, mas também sobre a família.

Marco: E tem uma coisa, que eu acho que A Dama na Água tem isso mais evidente, que é essa coisa de misturar gêneros conscientemente. São filmes meio indefinidos em termo de gêneros. Ao lidar com questões fantásticas ele se aproveita de diversas coisas. Acho que a gente pode discutir A Hora do Lobo e isso tudo, mas tem coisas que a gente não discute mas que estão presentes na nossa cabeça, que são outras coisas que a gente gosta, que a gente viu, e que estão lá fermentando.

Cinética: E como vocês trabalham juntos?

Juliana: Eu e o Marco somos um pouco diferentes. Em algumas coisas eu sou mais careta, mais clássica. Com o procedimento de trabalho, coisas assim. Eu sou mais preocupada em desenvolver uma disciplina de trabalho para conseguir lidar com meu processo criativo. Criativamente eu sou caótica, eu tenho idéias absurdas e com as quais é difícil me organizar. Às vezes eu tenho muitas idéias e eu sofro com isso, porque eu não consigo dar vazão a essas idéias, então o jeito que eu consigo encontrar pra processar isso é buscar aprender o básico. Essa sempre foi minha busca no curso, procurar fazer as coisas de um jeito mais clássico pra conseguir criar uma disciplina de trabalho e dar vazão a essa criatividade.

Cinética: Isso acaba levando a uma certa seletividade da opção de onde está a câmera na resolução dos espaços de vocês. Vocês não colocam a câmera em vários lugares dentro de uma mesma seqüência. No Um Ramo, por exemplo, vocês evitam em determinados diálogos dar o contraplano, então tem uma seletividade de onde pôr a câmera, que já nasce desses exercícios. O que chama muito a atenção em um exercício como Espera (acima), por exemplo, é que de três minutos que vocês tinham, dois vocês usaram em um plano só, e dentro desse plano fizeram toda uma mise-en-scène de acontecimentos: a morte, o efeito da morte e o retorno pra vida banal e cotidiana após aquele momento.

Marco: Quando a gente foi pensar os roteiros, que eram desenvolvidos em aula, eu fiquei pensando o que eu queria fazer como exercício, o que eu queria exercitar, e na época uma coisa que me interessava era fazer um plano-seqüência. É um exercício de direção, o que me instiga dirigir...

Cinética: Mas o que impressiona nesse plano-seqüência é que, em geral, num plano-seqüência que se constitui como tal, a operação do plano-seqüência é utilizada de uma maneira construtivista. Ou seja, para que nós percebamos que existe ali um plano-seqüência. Nesse exercício, é preciso voltar o plano inteirinho para ter certeza de que é era um plano-seqüência, porque ele em si não chama a atenção. Chama a atenção o que aconteceu dentro dele.

Marco: Eu posso falar como foi o processo disso. Tudo partiu de uma situação banal, eu estava no ônibus e alguém dormiu em cima de alguém e essa pessoa se assustou e eu pensei “isso é uma coisa interessante, vamos dramatizá-la, colocá-la num hospital”. Havia dois planos que eram referências que eu utilizei. Tinha o plano do Corpo Fechado no hospital, no início do filme, que tem um cara morrendo em primeiro plano e o Bruce Willis no fundo, e um plano de Vivendo no Limite, do Scorsese, que é o plano que o Nicolas Cage mata o pai, que é um plano longo também. Então tinha esses dois momentos de referência. Eu achei que podia ter uma situação dramática pesada dentro do plano-seqüência, como uma pessoa morrendo em cena, porque seria um desafio para lidar com uma situação dramática extrema dentro de um plano que tivesse que lidar com tudo que estava ao redor, com o espaço. Foi pensado como isso, como um exercício de direção. Então a idéia era essa, toda a ação extrema teria que ser num plano-seqüência, senão não teria esse efeito de exercício que eu queria ter. Essa foi a proposta.

Cinética: Uma coisa que ouvindo vocês falarem em relação aos filmes é difícil de concordar totalmente, embora seja compreensível pela formação de vocês e pelas referências, é se o universo de vocês tem exatamente a ver com o terror. Talvez de uma maneira um pouco mais próxima no Um Ramo, onde haveria o sobrenatural, mas mesmo assim esse sobrenatural do Um Ramo parece absolutamente normalizado até de uma maneira um pouco científica dentro do filme, porque existe um certo parecer do saber que não tem a palavra definitiva sobre aquilo mas que é levada em conta. Porque no terror o sobrenatural é dado como sobrenatural, e isso não está nos filmes de vocês. Há, na verdade, uma preocupação em manipular a percepção do espectador, e aí muito mais do que um cinema de terror realmente, vocês estariam próximos de três cineastas que são visíveis mais claramente no cinema de vocês: no Um Ramo, Cronenberg, pela própria maneira de lidar com o corpo, com uma certa crueldade na exposição de algumas imagens; Haneke, numa certa forma de se relacionar com o espaço e de como essa relação com o espaço produz uma tensão, com esses espaços tornando-se um pouco sinistros; e, se tem um cineasta que está muito presente nesse universo, é o Polanski, pois toda a questão que dá uma certa unidade a tudo que vocês estão fazendo, à exceção talvez do Concerto, é menos uma questão sobrenatural, de certos mistérios, e muito mais uma questão de crise de percepção dos personagens para com o mundo onde eles vivem. Vocês instauram uma situação absurda e inusitada dentro de um certo padrão de cotidiano, de maneira que temos um absurdo que se torna naturalizado, de modo que os personagens têm que mudar o olhar para o mundo em que eles estão vivendo. O forte está justamente em não ir para esse código do terror, em tornar isso muito mais próximo da possibilidade dessa experiência acontecer.

Juliana: Eu concordo com esse parecer. O que a gente diz de influência de terror, na verdade, acho que se reflete mais na busca da construção de um clima, de construir os ambientes e essa tensão. Mas eu acho que o contraponto que a gente busca, e que faz parte dessas outras influências que a gente tem, é a de trazer esse extraordinário para o mais ordinário possível. Então a gente pega uma situação que é extraordinária, que é uma mulher que nascem plantas dela, uma mãe que tem o cadáver do filho na sala, e tratar isso da maneira mais naturalista possível. Acho que nos nossos filmes, o que chama a atenção e que faz funcionar bem como clima seria uma secura com a qual a gente trata isso. Por exemplo, a gente não usa trilha sonora e mesmo o som a gente busca trazer pro ordinário.

Marco: A Juliana costuma dizer que se a gente trata uma trama anormal de um jeito anormal, o resultado vira normal. A gente tenta explorar as possibilidades de choque entre o tratamento naturalista e uma coisa fantástica...

Juliana: Até pra potencializar a capacidade de identificação do espectador. Se você pega, como no Um Ramo, uma mulher que tem coisas brotando do corpo dela, mas a insere dentro de um contexto familiar e mostra ela se relacionando com a família, e mesmo não deixando ela reagir demais a isso... Isso mexe com o espectador, porque ao mesmo tempo em que há uma identificação, há um estranhamento.

Cinética: Há também uma relação de aproximação com os personagens e com a subjetividade deles, que interfere na construção do universo que está sendo retratado – porque muito da loucura desse universo vem da loucura dos personagens, da percepção do personagem. Há essa aproximação, mas ao mesmo tempo esses personagens são enigmáticos o suficiente para que o espectador nunca os decodifique de fato.

Juliana: Exatamente, há cumplicidade mas não há compreensão.

Marco: Isso é conseqüência um pouco de nossas escolhas, porque a gente não consegue dentro de nosso conceito de respeito para com as personagens, a gente não consegue fazer a câmera passar da pele delas. A gente teria que usar artifícios de interiorização que não nos interessam. Não nos interessa invadir esse espaço que seria a chave para desvendar essa subjetividade.

Cinética: Outra coisa que se observa na passagem do Lençol (ao lado) para o Ramo é que no primeiro há uma construção de clima muito forte, através da atmosfera, do som, o tempo de determinados planos, as próprias situações que ali estão sendo colocadas. Já no Um Ramo, tudo se dá através das evidências, tudo se dá através da imagem, da experiência. Há uma recusa de construção de clima e um investimento total em cada experiência, em cada imagem ali filmada, pois é onde vocês abrem mão de um trabalho de som que há nos outros filmes, um trabalho de som manipulador, e partem para uma secura bressoniana. Você tem aquele extraordinário, mas nenhuma construção desse extraordinário dentro da linguagem.

Juliana: Eu sempre penso no Ramo como um inverso do Lençol. Porque boa parte da força do Lençol está no trabalho de escuridão e claridade, e Um Ramo é um filme que a gente trabalha totalmente no claro. Foi um desafio pra gente trabalhar esse outro aspecto, tentar fazer um filme em que houvesse clima também, que houvesse uma continuação do trabalho do Lençol, mas que a gente não usasse essa coisa do escuro, não usasse isso para construir o clima.

Cinética: De certo modo, Um Ramo (ao lado) já parte de certo universo que vem sendo construído e já vai buscar esse universo, ao passo que no Lençol você tem um universo absolutamente banal onde vocês instalam esse estranhamento lá dentro. No Ramo não, você já parte do estranhamento, que já está dado de cara. E agora? Pois claramente vocês têm nesses poucos trabalhos a elaboração da construção de um certo universo, de um certo projeto. Há um receio da parte de vocês de isso se tornar uma fórmula para vocês mesmos? Pois vocês foram duas vezes pra Cannes, então vocês sabem que aquele festival tem uma certa demanda de projetos estéticos e vocês atendem a essa demanda. Até onde isso não passa a ser um fantasma pra frente, do tipo “eu tenho um projeto que já está reconhecido, existe uma demanda por ele e eu preciso suprí-la”?

Marco: Eu acho que a gente está sendo muito honesto com nossas próprias demandas internas.

Juliana: Essa coisa de tentar manter uma certa expectativa estética parece ser um caminho para a infelicidade e para a mediocridade. Porque mesmo a gente tendo tão pouca experiência, a gente reconhece que tem coisas pra gente que é fácil fazer, como criar um clima. A gente já tem as ferramentas para criar um clima.

Marco: Durante as filmagens de Um Ramo a Juliana veio uma hora com uma cara muito triste pra mim e disse “eu achei que a gente estava fazendo um filme original”. Porque estávamos fazendo um plano que era igual ao do Lençol, trocando uma faca por uma navalha. E depois começamos a detectar vários outros momentos, várias rimas com o Lençol. Deu um desespero uma hora. Porque tudo bem que a gente tem um tema como mulheres e morte, mas será que a gente vai fazer o mesmo filme sempre?

Cinética: E vocês já pensam em fazer um longa juntos?

Marco: A gente tem discutido uma idéia da Juliana, mas adianto que é uma idéia que não tem nada a ver com o que a gente já fez até agora.

Juliana: Mesmo essa coisa da parceira é uma coisa complicada, que acabou se instaurando mas não é uma coisa que a gente pensou pra vida. Embora antes da parceria exista a amizade profunda do grupo, não pensamos nessa parceria pra vida, mas é uma coisa que acaba acontecendo porque você vai continuando a trabalhar junto.

Marco: Porque você vê que é uma coisa interessante artisticamente pra você criar em conjunto.

Juliana: Quando a gente fez o Lençol a gente estava no meio da faculdade, eu tinha 19 anos, mas suas influências mudam, sua visão de mundo muda. Tanto que vocês devem estranhar eu falar que eu gosto muito de Straub & Huillet, porque não tem nada a ver com o que fazemos. Mas é fato que a gente foi por um caminho que a gente tem gostado mais de Brecht do que coisas mais melodramáticas. A gente passou por um caminho de amadurecimento que te leva a refletir também como projeto de carreira. O que você quer fazer da sua carreira cinematográfica, pra onde você quer direcioná-la. Eu particularmente acho importante continuar fazendo filmes no Brasil, em português, que retratem a cidade, que é uma coisa pouco representada no cinema brasileiro – a cidade. Então eu acho interessante ter filmes assim, que se passam no cotidiano do seu país, pra ter o registro da língua, do comportamento. Eu me preocupo também com a questão social, ter um cinema que discuta um pouco a questão social. Mesmo se a gente não verticalizar nisso, ter alguma coisa lá. Então pra mim tem sido como que uma pesquisa sobre como abordar esses temas. Esse projeto é um pouco isso, um longa que tem alguma coisa do universo da família, mas que também trata de relações de trabalho, o que é uma proposta absolutamente diferente do que são os curtas.

Marco: A idéia do longa é basicamente sobre como três personagens lidam com uma mudança radical nas relações de trabalho entre eles. Eu lembro quando o Karim Aïnouz falou uma vez que não consegue fazer um filme ignorando que existe um abismo social no Brasil. Eu imagino que pra ele isso quer dizer uma coisa muito diferente do que quer dizer pra nós. Quando a gente discute nossas idéias a gente sempre passa por isso, pela questão de como representar questões de classes. E eu acho que nessa idéia do longa isso talvez seja pela primeira vez o centro. A gente está tocando numa questão que a gente discute no processo dos curtas porque, por exemplo, era fundamental na discussão de Lençol Branco que aquilo fosse uma casa de extrema periferia de São Paulo. Apesar de isso não estar colocado no filme como dado factual, para nós isso era parte da discussão.

Cinética: É curioso pois em seus curtas chama a atenção justamente a não-necessidade de um diálogo com um cinema que vem sendo produzido hoje no Brasil, no sentido de que vocês atendiam, como vocês mesmos falaram, uma demanda de vocês de um universo, de retratarem o corpo, a mulher, a morte, e não necessariamente vinculado a esse cinema que invariavelmente passa por uma questão social. E então, quando vocês falam de seu projeto de longa, vocês têm essa vinculação. É como se com o curta vocês tivessem uma liberdade de retratar um universo particular, mas com o longa tivessem que responder a certas demandas externas.

Marco: Eu não me identifico com o que é feito hoje. São filmes que na realidade ignoram o abismo social. A questão não é a demanda porque nós somos uma classe média culpada ou coisa assim. Tem a ver com o fato de que eu acho que a representação é falsa num nível desonesto. Toda ela. E isso me incomoda bastante e é uma coisa que eu quero lutar contra quando eu for criar, porque na verdade são armadilhas.

Cinética: O que você quer dizer com essa representação?

Marco: Eu acho que as pessoas supõem que estão atendendo a essa demanda, de um cinema que cuide de questões que precisam de cuidado de fato, que é a questão do cuidado que o país precisa ter com suas pessoas, com a vida delas, com a igualdade, mas na verdade elas cuidam de outras demandas, que são céticas, que são de um tipo mais de se enquadrar em algum tipo de código de recepção. Porque existe uma idéia de que a simples representação da pobreza resolve o problema. A estrutura social, os mecanismos, são complexos demais, então não é tentar propor nada ou solucionar nada, mas é discutir, colocar essa estrutura em crise um pouco. É você durante o filme ter alguma sensação de crise diante das coisas e não você ser derrubado por uma sensação estética e pela experiência daquele tipo de cinema que bebe em várias fontes internacionais e que por si só, e por tratar de uma questão brasileira, não nego, basta como justificativa para sua existência.

Juliana: Me incomodam duas coisas: essa tendência a querer retratar a pobreza e acabar sendo um retrato de pobreza que tem hoje um olhar humanista, condescendente, despolitizado, e acho que é um problema também a ausência de um retrato da classe média, que quando é retratada é um clichê. Isso me incomoda bastante, porque o cinema é feito pela classe média e é consumido pela classe média. Eu acho que falta um pouco de reflexão sobre essa classe ou mesmo de colocar em conflito as classes e ao invés de falar de problemas, falar de diferenças de classe. E quando se retrata a pobreza, não se olha pras causas dessa pobreza.

Cinética: Vocês estavam falando a pouco sobre a importância de Brecht no trabalho de vocês. Falem um pouco sobre isso.

Marco: A gente se envolveu ao longo desses anos, desde o início da faculdade na verdade, com a Companhia do Latão. Eles começaram o trabalho deles há 10 anos em cima das teorias do Brecht. Mais na teoria do que nas peças, no início, e eu acho que pra gente isso foi uma coisa um pouco transformadora, tomar contato com eles e com Brecht.

Juliana: Foi no ano de 2000, que foi um ano importante pra gente, quando teve a greve na faculdade e nós nos envolvemos politicamente com isso. Foi um ano em que a gente se politizou um pouco, aguçou essa visão, e tomou contato com o trabalho do Brecht. Isso mudou um pouco a forma como a gente vê as coisas.

Cinética: Mas como é essa convivência entre essa descoberta e abertura para o Brecht e o cinema que vocês tem feito até agora, que é bastante calcado na manipulação e na subjetividade, no sujeito, e como isso vai para esse projeto de longa, onde vocês vão lidar com questões mais exteriores, não só do sujeito?

Juliana: É tudo uma questão de como chegar a esse registro pro cinema, porque o cinema é construção, ele é ilusão, e é diferente de uma experiência teatral, onde você tem consciência de que está vendo uma representação. E o cinema não, ele está o tempo todo negando que é uma representação.

Cinética: Não é à toa que você estava citando Straub, que radicaliza isso.

Juliana: Exatamente. Por isso que eu tenho buscado pesquisar essas pessoas, pra tentar achar o ponto. Porque eu acho também que não é o registro do Straub, porque senão você não chega ao público. É tentar chegar num registro que não seja a ilusão total, que reflita e tenha distanciamento, mas que também não seja uma coisa estranha, que pegue pelo estranhamento.

Marco: Claro que os tempos mudam, mas eu acho que a obra do Brecht tem total inserção hoje. Eu acho A Dama na Água um filme tão esquisito que eu consigo aplicar conceitos brechtinianos a ele, por mais que ele seja o cúmulo do ilusionismo. Eu acho que justamente por ele ser o cúmulo e por lidar de maneira estranha com aqueles objetos, ele coloca a coisa em crise. E colocar a coisa em crise é o epicentro de Brecht. Instaurar algum tipo de crise na forma, de dar um nó. Acho que a grande questão do Brecht é a inquietação, mais do que os conceitos clássicos a que estamos acostumados. Como desestabilizar, e eu acho um filme como A Dama na Água um filme extremamente desestabilizador, no jeito como trata os objetos, no jeito como relaciona gêneros.

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