in loco - cobertura dos festivais
Jards, de Eryk Rocha (Brasil, 2012)
por Juliano Gomes

O som e o sentido

Jards é o primeiro nome do artista que o filme retrata, Jards Macalé, e também do disco cuja feitura o filme testemunha à sua maneira. Desde já, temos aqui a união destes elementos que dizem respeito diretamente aos propósitos do filme: primeiro, um olhar próximo, sem necessidade de sobrenome (isto é, íntimo, aproximado), de um artista na realização de seu ofício; e segundo, seu ofício mesmo, o nascimento da música, o corpo transformando-se em som através do contato com os instrumentos e da voz (no filme, principalmente desta última), criando esta obra que leva o mesmo nome do documentário que narra sua criação.

Não se pode dizer que falta clareza ao filme em seus objetivos: mostrar Jards Macalé neste momento, necessariamente misterioso, da performance musical, e dar-lhe sentido - daí o título que une estas três pontas (artista, disco, filme). Apesar deste posicionamento aberto, direto, a estratégia de aproximação do filme é a de associar números musicais que acompanham a gravação das canções em toda a extensão destas obras (não por acaso, o público na sessão de cinema batia palmas ao final de cada uma) com trechos onde a imagem do corpo de Jards se tornam seu próprio tema. Um exemplo bem claro disto são os planos aproximados dos olhos de Macalé, nos quais a luz pisca insistentemente, que marcam o início e o final do filme. Todo este núcleo associativo que se liga ao material do estúdio de gravação aponta para uma tematização da própria percepção, mais especificamente do olhar.

A primeira pergunta que nos colocamos é: como isso se relaciona com a música de Jards e sua performance, seu ato que a constrói? As imagens do protagonista em outros espaços e tempos parecem estar sempre ligadas a um processo de opacidade. Dificilmente conseguimos enxergar com clareza o que acontece (na piscina, no carro, nas caminhadas, no super8), e, se isto ocorre em alguns momentos, a imagem em seguida rumará novamente em direção à abstração, às formas não figurativas. Se em Transeunte esta tensão entre um mundo caótico das formas e uma organização destas forças já se desenhava com clareza na fotografia em preto e branco e teleobjetiva, em Jards este embate se torna tema. O protagonismo da música, de alguma maneira, fornece bases seguras para uma exploração desse mundo das formas visuais puras, dessas sensações sem nome e sem contorno, que se materializam principalmente na figura do mar, também em preto e branco, com velocidade alterada.

E alteração é uma das palavras-chave das operações de Jards, o filme. Principalmente, uma idéia de modificação da maneira de como se vê as coisas. Nas canções, a câmera se cola ao rosto do cantor, não só distorcendo-o, mas isolando-o de todo o corpo, de toda idéia de totalidade e de relação direta entre as partes. Na descrição do ambiente do estúdio e nestes materiais “externos” prevalece uma busca de um estranhamento que parece querer negar a visão do todo, ou de uma relação concreta entre as partes, por meio de planos fechados, alterações no foco, na cor, ou intervenções afins. Assim, o que se tematiza é a própria interpretação do filme, para daí, nos relacionarmos com o que suas imagens mostram. Estabelece-se, com isso, um modelo ensaístico, onde o olhar, a performance, o ato de narrar divide as atenções com o narrado, flanando entre idéias, formando retratos híbridos de suas matérias (no caso de haver uma). Mas, para o sucesso desta construção, é necessário que esta teia de relações, em seu trajeto necessariamente sinuoso, consiga afinal dar a ver uma série de sentidos que só podem se manifestar por esta via indireta, por associações. A força do ensaio nasce da maneira como ele consegue tornar sua performance (como texto, canção, ou filme) em experiência plena, em alteração do estado perceptivo de quem vê, lê ou ouve.

Uma abordagem indireta de fato parece a estratégia perfeita para mostrar em ato a arte de Jards Macalé. De alguma maneira sua arte sempre se mostrou desta maneira. Se por um lado é difícil para que uma canção seja ouvida “indiretamente”, a música de Jards conjuga com extrema habilidade uma rara mistura de opacidade e evidência. Podemos trocar este último par de substantivos por transgressão e tradição. Ícone de uma geração de cantores que nasce na televisão, cujas canções já nascem ligadas a um corpo e, principalmente, a uma performance, Jards há décadas nos apresenta, ao mesmo tempo, uma recusa de uma identidade, um rótulo, uma turma sequer, e uma extrema atitude de reverência a uma tradição. Não se trata de maneira nenhuma do gênio, ou antena da raça, nascente de matéria divina pura. Macalé é uma artista da inflexão. Este é seu trunfo, mas também a razão de sua inadaptação a cânones. Mas como deixar esta marca visível num filme?

Jards escolhe o caminho de destacar estas estratégias de intervenção explícita. E como o filme se divide em núcleos bem distintos, o musical e não musical, há então uma aposta numa relação de aproximação de sentido entre eles, um como materialização do outro. A imagem da canção em ato é como a síntese de um mundo de formas puras e visões parciais, que se organiza neste gesto do artista e se torna experiência real. Entretanto, no contato entre estas performances, a do olhar do filme sobre a da música de Macalé, algo parece se perder ou mesmo se anular. A performatividade visual do filme, seja nas suas aproximações ou associações, parece querer dar um sentido transcendente, fora da imagem, abstrato, que não parece ter relação direta com a arte do protagonista. Pois Jards Macalé não é um artista que quer destruir e reconstruir o mundo, como na abordagem típica moderna, mas sim alterá-lo em sua própria matéria. E a dimensão da alteração, falando de música, se dá no tempo. Trata-se de um manipulador do tempo, e está é sua principal reinvenção e marca. Isso, porém, parece que o filme lhe dá muito pouco, na medida em que quase não temos cenas propriamente ditas. A lógica aqui é a do espetáculo, da organização por números que se sucedem quase que arbitrariamente, apostando num sentido que vai nascer pela justaposição, pelo encadear destas partes. Um sentido abstrato. E o empirismo de Macalé, sua opção pela concretude das imagens poéticas, se dilui no mar afinal, perde contorno e força em contato com estas visões líquidas, intermitentes, que o filme apresenta entre as canções.

Este repertório imagético remete também a uma idéia contraditória que já foi abordada aqui em um texto sobre HU. De alguma maneira, um repertório de operações de negação de uma tradição se ergueu como tradição mesma, configurando uma espécie de abrigo moral para muitos filmes. É difícil não pensar num certo repertório consolidado de cinema de vanguarda diante de algumas imagens de Jards. Não que isso seja um problema em si, mas acaba que elas dizem muito pouco sobre o artista e o disco, mesmo vindo de seu acervo pessoal. Deixam à sombra, por exemplo, justamente a abordagem clássica do disco em relação às canções, com arranjos limpos e equilibrados, para canções que já têm em si essa marca da desmesura, do excesso, do pathos. De alguma maneira, Jards fala mais de si mesmo do quê de seu personagem. Sua câmera epidérmica narra justamente esta impossibilidade de atravessar (operação moderna por excelência), de chegar até o núcleo, até este caos que o artista tem em si como reserva e material de criação. Mas este fracasso é somente do filme e é esta sua fragilidade mais latente, justamente este afastamento do próprio centro que os planos próximos não cessam de mostrar. Se Jards é um filme muito claro em seus propósitos, em relação a si mesmo, por outro lado, sua relação com Jards parece ainda tímida ou incipiente, na medida em que precisa recorrer a uma série de imagens evocativas para dar sentido ao que já tem em si mesmo, causando, enfim, muito ruído e pouco sentido.

Outubro de 2012

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