ensaios - especial retrospectiva 2007
Masculino, Feminino por
Lila Foster Por
mais difícil que seja corroborar com a idéia de que existe uma diferença essencial
entre homens e mulheres, saltam aos olhos certos filmes de 2007 que podem ser
facilmente definidos como “filme de homem” e “filme de mulher”. Antes de pensarmos
em termos de oposições ou exclusões, o que tais definições carregam no seu cerne
é a maneira como homens e mulheres se identificam de forma distinta com personagens
e, principalmente, com formas de representação e posicionamentos do olhar. Filmes
como Anjos Exterminadores (Jean-Claude Brisseau), Antes só do que mal
casado (Irmãos Farelly), Lady Chatterley (Pascale Ferran, foto acima)
e Deite comigo (Clément Virgo) estabelecem visões da sexualidade que ora
se enquadram dentro dos limites de uma ordem que mantém o masculino heterossexual
e urbano como ponto de vista privilegiado e outras formas que ultrapassam esse
limite ao desestabilizar a maneira de perceber e representar as relações sexuais
e amorosas.
Talvez soe como velha ladainha reconhecer
que o cinema é predominantemente produzido por homens, tendo como conseqüência
uma cultura da imagem na qual a mulher é muito mais portadora do que produtora
de significado. Essa é uma das idéias que guia o trabalho da teórica de cinema
feminista Laura Mulvey no texto “Prazer visual e cinema narrativo” (1),
de 1973; e na sua “atualização” em Reflexões sobre “Prazer visual e cinema
narrativo” inspiradas por Duelo ao sol, de King Vidor (1946) (2), publicado nos Estados
Unidos em 1989. Mesmo tendo o cinema clássico hollywoodiano como foco de
suas análises, o trabalho da crítica desenvolve conceitos calcados na psicanálise
para nos ajudar a entender como tais diferenças tomam forma numa cultura masculinizada.
Laura Mulvey desenvolve algumas questões importantes, mas interessa aqui, sobretudo,
suas abordagens sobre o papel ativo/passivo da imagem da mulher no cinema e as
diferenças entre voyeurismo e identificação. O conceito-base
da psicanálise que define a masculinidade como atividade e a feminilidade como
um caminho rumo à passividade indica que a mulher oscila entre um posição
ora ativa, ora passiva, configurando uma relação com o simbólico muito mais instável
se considerarmos a clareza da posição masculina. Já as duas formas de prazer propiciadas
pelo cinema acentuam essa configuração de “mulher como imagem e homem como dono
do olhar”. A escopofilia faz das pessoas o centro de um olhar curioso e controlador
(voyeurismo). Já seu aspecto narcisista, ou seja, a identificação com a imagem
vista, uma das bases do cinema clássico, leva a mulher a viver uma identificação
transexual, tendo como estímulo a posição masculina no erotismo e no heroísmo,
mas não sem deslocamento nessa relação. “Num mundo governado
por um desequilíbrio sexual, o prazer do olhar foi dividido entre ativo/masculino
e passivo/feminino. O olhar masculino determinante projeta sua fantasia na figura
feminina, estilizada de acordo com essa fantasia. Em seu papel tradicional exibicionista,
as mulheres são simultaneamente olhadas e exibidas, tendo sua aparência codificada
no sentido de emitir um impacto erótico e visual de forma que se possa dizer que
se conota a sua condição de ‘para- ser-olhada’ (Laura Mulvey) Colocando
quatro filmes em uma gradação entre mais masculinos e mais femininos, Anjos
Exterminadores é o que assume a posição masculina de forma mais radical. Um
diretor de cinema decide fazer um filme sobre o desejo feminino. Neste processo
de entendimento, existe a fase na qual a descoberta se dá pela escuta. Durante
testes de elenco, situação esta vexatória pela forma um tanto ridícula com que
as mulheres são representadas, todas se sentem extremamente confortáveis e até
desesperadas em confessar suas travas e artimanhas sexuais. O prazer de se exibir,
de ser objeto de atenção, no entanto, não realiza o prazer do diretor em entender
e “captar” as entranhas da sexualidade feminina. Não é na superficialidade que
ele deseja transitar e, quando François encontra três mulheres dispostas a encarar
o jogo que ele propõe, o filme assume uma dimensão assombrosa, principalmente
na maneira com que o cinema, dentro e fora do próprio filme está totalmente mergulhado
no prazer do voyeurismo e na carnalidade. Cabe a observação de que o filme é uma
resposta ao longo processo de acusação por assédio sexual sofrido pelo diretor
por atrizes do seu filme anterior, Coisas Secretas. Duas mulheres, os anjos
exterminadores, figuras do ressentimento e do assombro, funcionam como uma instância
superior de aviso que algo ali não pode dar certo. Sempre
com a intensidade desta mistura entre experiência real e experiência filmada,
as cenas de sexo condensam o limite entre encenação e a entrega real das atrizes,
lançando o diretor François (alter-ego de Brisseau) diretamente para dentro da
fogueira. E essa impossibilidade de separação será o dilema a ser vivido como
tragédia pelos personagens e como deslocamento para as mulheres dentro e fora
do filme. As atrizes não conseguem dar conta da negação do diretor em se envolver
eroticamente sem a mediação do olhar-câmera. O prazer de François é acima de tudo
o prazer de filmar e a radicalidade de tal posição gerará a frustração e loucura
nas mulheres envolvidas, pois ele será incapaz de entender a complexidade das
demandas emocionais e projeções feitas por elas. É na forma de objeto para o seu
projeto artístico que ele deseja mantê-las, transformando o desejo de compreensão
do desejo feminino numa missão perdida. Agressivas e enlouquecidas,
as atrizes do filme dentro do filme não são nada mais do que um sinal invertido
e estranho de passividade e dependência, pois é o personagem do diretor quem dita
as regras e, como demonstração de enorme força e coragem, está disposto a pagar
por isso. Nenhum corpo, incluindo o espectador, sairá ileso. Numa
chave totalmente distinta, Antes só do que mal casado trará o corpo feminino
como espaço de desidealização do amor e subsequente aprendizado diante de um primeiro
engano. Eddie, interpretado por Ben Stiller, é um solteirão que não consegue emplacar
um casamento por não assumir a posição de garanhão exemplificada pelo pai ou do
homem realista representado pelo seu melhor amigo que aceita o casamento como
um fardo inevitável. Deslocado, ele é convencido a se casar com Laila, uma linda
mulher que conhece num encontro fortuito. A visão dessa mulher alta, bonita, simpática,
deslumbrante e por isso irrecusável o encanta – mas a visão da sua mãe gorda é
um presságio do que está por vir. Durante a lua de mel,
Laila é a imagem de um pesadelo: mentirosa, escatológica e incoveniente. Não é
sem muito humor que Eddie se arrepende e se desencanta completamente. Essa brusca
transformação é assumida na forma com que Laila é filmada e posta em cena. Tudo
é mais direto sem o verniz do olhar apaixonado. Mas a realidade não tarda a ganhar
novo encanto quando ele avista Miranda na praia, correndo e brincando com seus
sobrinhos, a formar o espectro da sua mulher ideal. Essa cena exemplifica perfeitamente
a fantasia que envolve o desejo desesperado de encontrar um amor, de preferência,
no primeiro olhar. Certo de que encontrou a mulher ideal com uma família ideal,
uma enorme confusão, também hilária, acaba lançando Miranda nos braços do seu
noivo careta. O que importa nesse caso é que as mulheres
acabam absorvendo contornos bem exagerados – a mulher pesadelo, a mulher ideal
e a mulher que serve como envolvimento mais leve – e isso não é necessariamente
um demérito. O filme é muito mais sobre o caminho de um homem que vai da impotência
para a potência, e como as fantasias e expectativas projetadas nas mulheres fazem
parte desse caminho. As mulheres sempre fisicamente ideais são depositárias dos
mais variados sentidos e significados. Como
face oposta dessa moeda, Deite comigo expõe o percurso de uma mulher claramente
liberada e ativa sexualmente rumo a uma aceitação do amor. Leyla vai a festas
sozinha, dança sem pudores e não teme ser agressiva durantes suas transas fortuitas.
Mas, antes de ser a imagem da força, ela é a imagem de um deslocamento. As falas
em off dão indícios da crise de uma mulher que se apodera do seu desejo
sem que isso necessariamente seja sinônimo de calma ou estabilidade. Aos nossos
olhos, ela soa desesperadamente ativa em busca de atenção. Uma cena condensa essa
oscilação de posições quando, durante uma transa de Leyla com um jovem totalmente
besta com a força com que ela o devora, David a observa de um carro e o prazer
dela está muito mais no fato de ser olhada do que na transa em si. A cumplicidade
nessa troca de olhares se repete quando os dois se encontram novamente e numa
perseguição muda vão até a casa dele e transam. As
cenas de sexo são o que o filme traz de melhor, por captarem o torpor, a respiração,
o cansaço, mas, acima de tudo, por darem direito de existência ao corpo masculino
e ao olhar feminino. Os corpos estão ali por inteiro, o pênis, a bunda, o sexo
oral, tanto quanto os peitos, a cintura e as posições típicas mostradas no cinema.
É dali que vai surgir o esboço de uma relação emocionalmente mais completa e Leyla,
ameaçada na sua atividade, foge de um envolvimento mais profundo. O sexo é a forma
que ela encontra para se tornar potente e dominadora. Parece ser difícil se ver
fora desta posição. Aqui, o sexo é vivido como deslocamento, como uma espécie
de afirmação misturada com desalento. No extremo da escala,
está Lady Chatterley, dirigido por Pascale Ferran, o filme mais feminino
e liberto, que vive o sexo na inteireza, como a mais bonita troca que pode existir
entre um homem e uma mulher. O sexo é sim o centro de tudo, mas o corpo é visto
com a sua capacidade de realizar desejos não só imediatos, mas também o desejo
de ter alguém que signifique completude. O olhar de Constance fixa as costas nuas
de Parkin e é a curiosidade com o tesão desperto que aparece no rosto singelo
e expressivo da atriz Marina Hands. A vontade de se descobrir no corpo do outro
é o que guia em direção ao encontro do seu futuro amante. O
primeiro esboço de prazer, ainda estranho, abre a vontade de novas sensações e,
guiados pela curiosidade, os dois amantes vão aos poucos se descobrindo. O sexo
é primeiro mecânico, como se o homem não tivesse outro instinto a não ser se apoderar
do corpo de Constance como se fosse a primeira e última vez. Mas o que toma conta
da cena, das ações de tudo, é a beleza das relações que começam, o encantamento
inicial dos amantes. Ao invés de jogo, troca; ao invés de neurose, libertação.
O corpo masculino aqui também tem existência, e é o ponto de vista de Constance.
É a sua subjetiva que investiga os contornos, o pênis murcho do seu amante, as
suas mãos que acariciam a sua nuca, como se ela quisesse se apoderar de cada pedacinho
do corpo de Parkin. Ativa na direção e no ponto de vista assumindo, o feminino
guia as ações e principalmente o que se filma. As palavras
de Luiz Soares Júnior em seu texto
de nossa retrospectiva 2007 (falando sobre Mary), definem perfeitamente
a noção de feminino que toma conta do filme: “Feminino é um horizonte de sentido diretamente implicado na
construção de toda imagem: contemplação, reflexão, afecção. Contraposto ao masculino,
refúgio da ação e da afirmação da força, o feminino é um princípio maleável, líquido,
poroso por excelência. Olhar coalescente, que intui a unidade inerente a todos
os seres e coisas, dotados do poder e do dom de afetar e ser afetados.” E
são essas as imagens que ficam como o melhor de 2007: Constance e Parkin dançando
na chuva ou os seus corpos nus com flores, como se a inocência fosse possível
somente porque existe a entrega, o desejo de construir algo junto sem negações
ou sobreposições, só duas pessoas ativas no caminho de uma sexualidade prazerosa
e saudável. E esse sentimento é capaz de afetar homens e mulheres, sem a primazia
de uma posição sobre a outra mesmo que o filme seja extremamente feminino, um
filme de mulher. Para a mulher que assiste, fica o alivio
de uma identificação mais estabilizada, ao contrário de filmes como Anjos Exterminadores,
Antes só do que mal casado e Deite Comigo. Não por acaso, Anjos Exterminadores
foi elencado entre os filmes vergonhosos e Antes só do que mal casado foi
“premiado” por conter um dos piores personagens masculinos pela Women
Film Critic Circle Awards, uma associação norte-americana composta por 40
críticas e pesquisadoras de cinema. Corroborando ou não com a votação (Lady
Chatterley não aparece em nenhuma categoria) tal premiação exemplifica o desconforto
e, principalmente, o incômodo da primazia do olhar masculino para uma espectadora.
Mais dois exemplos de 2007 comprovam que não raramente essa
mesma diferença culmina em violência como a curra praticada contra Auxiliadora
e Bela na Zona da Mata pernambucana em Baixio das Bestas ou a estréia de
Garçonete, primeiro longa-metragem da atriz Adrienne Shelly morta em 2006
por um homem que, num dia ruim, se irritou com as suas reclamações e a agrediu
até a morte. Ao fim e ao cabo, a diferença quando observada de mais perto continua
aí, gritante.
Março de 2008 (1) in
Xavier, Ismail (org.). A experiência do cinema, ed.Graal. (2) in Ramos, Fernão
Pessoa (org.). Teoria contemporânea do cinema, ed.Senac. editoria@revistacinetica.com.br
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