ensaios
Da inconsciência à
vigília psicodélica
Notas sobre a produção
em Super-8 de Edgard Navarro
por Pedro Henrique Ferreira
Em
torno da ambiguidade dos termos que caracteriza a obra de Edgard
Navarro, encontramos uma função condizente, um sentido
palpável à criação em bitola Super
8 do diretor na década de 1970 - uma trilogia que o autor
mesmo definiu como a “trilogia freudiana” (e na qual,
com efeito, a recepção crítica identificou
influências da faceta onírica e surreal de Buñuel,
Fellini e Pasolini): a expressão de desejos íntimos
que somente as imagens são capazes de expurgar. As três
obras fazem remissão às três primeiras fases
do desenvolvimento da libido segundo o esquema freudiano.
Alice no País das Mil Novilhas é a fase
oral, simbolizada pelo ato inaugural de se comer um cogumelo,
um gesto recorrente na filmografia de Navarro. Rei do Cagaço
é a fase anal - bastante autoexplicativa. E Exposed
é a fase fálica, referente à perda da mãe,
encarnada na canção de Teixeirinha e simbolizada
na imagem do pênis associada à de um canhão
de guerra. São estes os pontos de partida para expurgar
um conjunto de imagens e situações que dão
forma a esta verdade íntima do indivíduo, formada
de uma mistura de sonhos, recalques e memórias. O heroísmo
de sua gênese está na capacidade que estas imagens
teriam de expiar por demonstração todas as culpas,
recalques e hipocrisias de uma sociedade.
A estratégia artística é
uma disjunção radical da imagem e do som (o áudio
narra a fábula, e a imagem, os desejos ligados a ela: ouvimos
um diálogo e vemos o pai do cineasta dando cambalhotas).
Também disjunção das imagens entre si, em
sua organização espaço-temporal, dando-lhes
todo o seu caráter de um surrealismo simbólico que
nos recorda os mecanismos de Cão Andaluz. Daí
o tom multifacetado, esquizoide e místico, que beira a
loucura e o psicodélico. Deparamo-nos com um conjunto de
desejos inconscientes que não necessitam de um correlativo
real; desconexos entre si, mas que constituem o fluxo mental onírico
quando a castração está suspensa e a hipocrisia
calada, num estado que é o de mais profundo sono, mas,
ao mesmo tempo, de mais profunda lucidez. Uma existência
magnífica que tem a ver com o um estado de transe, que
suspende as leis da gravidade para aplicar somente as leis da
mente. O exercício desta trilogia em 8mm é trazê-las
à tona, transformá-las em registros, revelando uma
faceta da humanidade que a sociedade trancafiou e deixou exasperada,
num estado de latência.
A
agressividade destas imagens não gera tão somente
um efeito político de contracultura ou transgressão,
nem visam ser instrumento social revolucionário. Como observamos
na fábula Lin e Katazan (que, com efeito, inicia
com a seguinte frase: “haviam aqueles que não participavam
do movimento") ou na retratística O Papel das
Flores, as descobertas e investigações sobre
o próprio psique não estão à serviço
de uma demagogia que iria desnudar as contradições
da sociedade. Elas estão à serviço de um
propósito mais místico: transformar as formas de
percepção que um homem tem da realidade, evocando-a
num plano tão pessoal que chega a ser antissocial, solitário,
e que naturalmente se afasta da lógica mais rasteira sob
a qual vivemos, tanto quanto de uma catalisação
das forças sociais. Esta experiência psicodélica
de liberação dos traumas mais confusos da existência
é o que o cinema procura estimular na mente do indivíduo.
E somente em sua mente. Pois a percepção, por si
só, não pode transformar, criar ou recriar o mundo
ou a sociedade. Pode mudar somente a si mesma.
Vemos
as imagens e temas que estiveram presentes nestes primeiros curtas-metragens
reverberarem como um embrião de todo o resto de sua carreira:
os cogumelos, as vacas, os pastos vazios, as fezes, os palavrões,
as notas embaladas de Pink Floyd ou Milton Nascimento. Repetem-se,
como se o autor sempre estivesse a retornar aos Super 8. É
como se os filmes posteriores fossem a cada vez uma síntese
deste milagre inicial. O autobiográfico Eu me Lembro,
uma espécie de “retrato do artista quando jovem”
no qual o autor expõe um pouco de sua formação
cultural, termina justamente no momento exato em que Alice
no País das Mil Novilhas começaria: num campo
vazio onde teve experiências alucinógenas com cogumelos
que germinam nas fezes das vacas. Por um lado, esta experiência
epifânica lhe aliviou da culpa e da pressão sobre
o seu subconsciente, por outro, lhe revelou uma nova forma, algo
mística e psicodélica, de se enxergar a realidade.
Uma realidade misteriosa e onírica tomada como matéria-prima,
e que sua obra sempre tentou transmitir.
Também
é curioso notar como o cinema de Edgard Navarro, que herdou
as paródias verbais da tradição baiana e
tropicalista e sempre foi acostumado a lidar com joguetes de palavras
e perversões de sentidos já culturalmente definidos,
radicaliza sempre a recorrência de ambiguidade dos sentidos
possíveis em cada termo, tornando-a um procedimento artístico.
Os exemplos são ilimitados: vão de títulos
irreverentes como o de Alice no País das Mil Novilhas
até as frases que surgem no interior de suas obras, como
a cartela escrita “Cultura” que começa filmada
somente pelas duas letras iniciais e é logo seguida pela
imagem de um ânus defecando, criando uma espécie
de manifesto por associação. Como também
notado por Juliano Gomes em seu texto
dedicado ao filme nesta mesma pauta, o média SuperOutro
é outro título que engloba várias possibilidades
- entre elas, está a noção psicanalítica
de um “outro”, do inconsciente oposto à razão
consciente, daquilo que está na natureza do homem, mas
somente de forma reprimida. Já notamos a relação
na dramaturgia da sequência de abertura, quando um lunático
que não dorme flagra o segurança de um prédio
dormindo em serviço. O lema que o super-herói vocifera
contra o mundo (“Acorda humanidade!”) remete a este
algo que fica desperto à noite, perambulando pelas ruas
durante o sono da razão - ideia não por acaso que
é repetida em seu recente segundo longa-metragem, O
Homem que Não Dormia.
Maio de 2012
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