in loco - cobertura dos festivais
Laura, de Fellipe Barbosa (Brasil,
2011)
por
Pedro Henrique Ferreira
Por
perto
É curiosa a extravagância
com que Laura, uma imigrante argentino-brasileira que frequenta
a alta sociedade nova iorquina, habita o mundo: nos remete a um
glamour ao mesmo tempo em que nos remete a uma decadência,
a uma vida de festas da mais fina elegância tanto quanto
a quartos empilhados de sucatas, à plena integração
de uma figura com o seu redor tanto quanto à sua imensa
solidão. O que há de absolutamente excepcional no
caráter de Laura é este jogo entre a imagem de si
mesmo que ela arquiteta (a de uma espécie de diva), e a
fragilidade que há nesta montagem - uma fragilidade a qual,
politicamente, a mulher opta por esconder. É uma figura
“às bordas da modernidade” (nas
palavras de Fabio Andrade), justamente por ter plena consciência
de sua representação, da performance que deve exercer,
do que pôr à mostra, mas também do que ocultar,
dos limites da privacidade que deve impor ao olhar do mundo para
que esta imagem sagrada permaneça incólume.
Mas até deste esconderijo surgem
fissuras, e é por elas que o documentarista Fellipe Barbosa
opera nesta sua versão longa de Laura (o texto
linkado acima analisava seu formato em média metragem).
O diretor dá a volta, registra estas fissuras e tenta penetrá-las,
expandir os buracos nos muros que Laura ergueu para desvendar
o que ela esconde: os mistérios de sua condição
econômica, o seu passado, sua relação com
um ex-namorado, a prostituta brasileira que é sua vizinha
- dentre muitas outras coisas que a personagem, esculpindo sua
persona, teria posto às sombras. Num impulso laicizante,
Fellipe Barbosa registra não tão somente a mitologia
que ela constrói, mas também suas fraquezas e fragilidades,
o que há de nobre, belo e sonhador na aspirante à
elite de Nova Iorque, mas igualmente o que há de pérfido
ou triste. Trata-se, portanto, de uma busca pela verdade plena
de Laura, disposta a romper com sua privacidade e pô-la
nú frente ao aparato.
Mas
também trata-se também – é de se supor,
e justamente nesta busca – de forçar esta persona
a se submeter a certos parâmetros que o documentarista mesmo
coloca – o que fica claro nos momentos que ele lhe faz pedidos
que são desde inofensivos (por exemplo, aguardar a câmera
para andar) até ultrajantes (no momento que Laura encontra
as amigas na boate). Laura
seria um mero documentário ingênuo e metalinguístico
sobre um contraponto entre posturas e relações ambivalentes,
não fosse a resistência em contrair-se que o documentarista
encontra na figura extraordinária de Laura. Ao sentir-se
invadida, perde a confiança no diretor – diz a ele,
sem pudor, que ele acha que conhece quem é Laura, mas que,
no fundo, não faz a menor idéia. Por fim, sente-se
humilhada ao ponto de cortar relações com o diretor
e pôr água abaixo a própria existência
do documentário.
Forçosamente, o diretor, que a esta altura já é
parte integral do filme, passa por uma crise de consciência
ao ver que não há como extrair de Laura algo que
não aquela diva esplendorosa e anacrônica que ela
insiste em representar sem, num viés contrário,
admoestá-la com suas próprias expectativas. Não
sabemos exatamente os motivos que a levam a assumir tal figura,
ou mesmo se ela acredita profundamente nesta exuberância
nostálgica. Mas ficam claros os limites de acesso a uma
pessoa ou personalidade tão insistente em sua tesura, e
que conhece já mais do que bem o que é atuar ou
propagar uma imagem de si mesmo. Este arrazoamento contínuo
entre as expectativas que o diretor tem para com ela e as idéias
que ela tem de si mesma cria múltiplas camadas que se plurificam
e nos afastam desta “Laura” original e incogniscível.
Mas ainda que esta “Laura” seja esquecida e deixada
para trás, mesmo este esquecimento ainda é importante,
pois dá o tom de perda e tristeza, de desistência
forçada/busca interrompida do documentarista, que é
onde Laura encontra sua graça. A missão
falida de desvendar Laura é tragicamente substituída
por uma admiração ou por um encanto por ela, por
uma vontade de ainda e sempre mantêr-se próximo.
É talvez onde se encontra, de fato, a modernidade do documentário:
não tão somente nestas múltiplas camadas,
mas, principalmente, nesta crise de consciência. Na nostalgia
de uma busca interrompida após ter ido tão longe
e tão fundo, para agora só querer estar perto.
Novembro de 2011
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