pariscópio
Outono
por Leonardo Sette
Após 45 dias no Brasil, volto para Paris no
início de novembro, apenas para ser atropelado por uma intensa programação
de filmes – atípica, mesmo para cá. Já havia sido moído no aeroporto
do Rio, numa sombria véspera de feriado em que os controladores
de vôo contaram ao país que não eram felizes. Chegando, espremi
a energia que restava para, na mesma noite, ver a última apresentação
de Happy Days, de Beckett, encenada por Frederick Wiseman,
na Comédie Française. Conto isso porque Wiseman foi o personagem
do mês – além da peça em cartaz, uma retrospectiva com todos os
seus 36 filmes começava simultaneamente na Cinemateca Francesa e
no Centre Pompidou, e o septuagenário documentarista de Massachusetts
tornou-se assunto incontornável para quem se interessa por cinema
e estava em Paris em novembro.
Encontrei
Cezar Migliorin e André Brasil já nos primeiros dias, numa sessão
de Basic Training (1971 - foto ao lado), e antes de sentar
com eles num café fui abordado no banheiro da Cinemateca por um
desconhecido que me perguntou à queima-roupa se eu tinha gostado
do filme. Respondi numa só sílaba e ele, insatisfeito, continuou
seguindo-me pela escada, lançando análises. "Kubrick certamente
viu esse filme, você não acha ?". "Talvez...".
É que Paris tem uns cinéfilos que dariam um grande filme de Wiseman
e, normalmente, é melhor evitá-los. Surgiu então a idéia de cada
um escrever um texto – André colaborando com Cinética pela primeira
vez – e que esses textos não precisariam apresentar o trabalho
de Wiseman ao leitor. Assumimos que se trata de um cineasta razoavelmente
visto: levamos em conta o fato de ele ter estado recentemente
no Brasil - ter ido ao Roda-Viva, ter tido seus filmes exibidos
em algumas cidades... Os três textos entram no ar semana que vem.
Mas, houve de fato coisas demais para se ver aqui
em novembro: foi um consenso, ouvi esse comentário da boca de
pesquisadores aplicados, rostos presentes em todas as sessões
na Cinemateca ou no Centre Pompidou. Claro, o comentário vinha
sempre acompanhado de outro e de um cansado sorriso: "Não
devemos reclamar...". Ao mesmo tempo, acontecia então o seguinte:
1) celebração dos 70 anos da Cinemateca Francesa
= retrospectiva integral F. W. Murnau (13 filmes) + Exposição e mostra Expressionismo alemão
e influências (36 filmes + conferências e debates);
2) Retrospectiva Integral Norman Mclaren, Centre
Pompidou;
3) Mostra Mikio Naruse, Maison de la Culture du
Japon;
4) Festival Paris-Berlin (filmes experimentais
contemporâneos, com destaque para uma sessão em que Michael Snow
falou de sua obra e apresentou seu mais recente filme; e outra
em que Pedro Costa exibiu seu documentário sobre o trabalho de
Jean-Marie Straub e Danielle Huillet – filme sobre o qual escreveu
Felipe Bragança -, conversando com o público);
5) Mostra Rudolph Valentino, no Musée d'Orsay
(chance para ver, por exemplo, Os 4 Cavaleiros do Apocalipse
(1921), de Rex Ingram).
6) Os habituais mini-ciclos e sessões de clássicos
avulsos em inúmeras salas e, claro, as estréias (entre as quais
Coeurs (2006), de Alain Resnais, prêmio de melhor direção
no último festival de Veneza).
O que é incrível é que o acontecimento mais surpreendente
e interessante não tenha surgido em nenhum desses lugares, e que
Paris ainda tenha cineastas a descobrir. O Louvre convidou nesse
outono a escritora americana Toni Morrison (prêmio Nobel em 93,
membro do júri em Cannes 2005) para programar uma série de eventos
no museu. Entre diversas exposições, Morrison presenteou a cidade
com uma retrospectiva integral (mais uma...) da obra de um certo
Charles Burnett, mais conhecido por ser o único negro a dirigir
um dos documentários da série sobre blues produzida por Scorsese
do que por sua obra admiravelmente original e contundente. O debate com Morrison e Burnett lotou o belo auditório
do Louvre e foi particularmente tenso: falou-se pouco de cinema
e muito sobre os negros nos Estados Unidos, tema fundamental na
obra de ambos.
Se
Toni Morrison – ao menos naquela noite – era uma senhora muito
mal-encarada e feia, Burnett estava nitidamente feliz e comovido
por ter seus filmes expostos numa vitrine tão elegante; mostrou-se
infinitamente mais simpático e cordial, aceitando tranquilamente
que a conversa fosse governada pela aura de Nobel que envolve
a escritora. O debate ficou nervoso num momento em que um jovem
francês, negro, perguntou se haveria alguma relação entre o movimento
negro americano dos anos 60 e as revoltas da periferia parisiense,
em novembro do ano passado. Uma bizarra mediadora e parte do público
tentaram ridicularizar a pergunta, enquanto Burnett e Toni Morrison
encolhiam os ombros, dizendo não se sentirem informados o suficiente
para opinar. Há uma grande tensão racial nessa cidade, e isso
às vezes assusta.
Pessoalmente, esse bombardeio de projeções interessantes
resultou num repetitivo flashback às tres primeiras semanas
da ida ao Brasil, nas quais fui ao Acre montar um vídeo sobre
os cantos dos anciões Huni Kui, com material filmado por dois
jovens cineastas desse povo, formados pelo projeto Vídeo nas Aldeias.
São cantos de ayahuasca, célebre bebida alucinógena, mistura
de um cipó com certo tipo de folha. Numa tarde antes de um ritual,
um velho Huni Kui quis saber, com seu português fragmentado: "Vai
tumá ?", encolhi os ombros, com um sorriso. "É bom,
tu vai vê... É cinema".
Não sei bem por que, mas durante esse mês, entre
um filme e outro, lembrava constantemente desse velho e ria sozinho,
com muita saudade do Brasil.
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