in loco - cobertura do Festival do Rio
Uma certa tendência do cinema
francês
por Eduardo Valente
Backstage, de Emmanuelle Bercot (França, 2005) - Mundo
Gay
Gabrielle, de Patrice Chereau (França, 2005) - Panorama
Os Anjos Exterminadores (Les anges exterminateurs),
de Jean-Claude Brisseau (França, 2006) - Midnight
Não deixa de ser curioso pensar como
a idéia de um “cinema de autor”, que surgiu como uma contraposição
a um determinado cinema industrializado e pasteurizado, hoje encontra-se
ela também bastante formatada – o suficiente para poder virar imagem-clichê
na vinheta do Festival, por exemplo.
Dentro deste processo, poucos cinemas nacionais parecem sofrer tanto
com os estigmas desta pasteurização da linguagem “de autor” como
o francês – o que não deixa de ser natural, sendo ele a pátria do
conceito mesmo de autor cinematográfico e, mais ainda, aquele cinema
que mais comumemente se associa à idéia de “cinema europeu” que
pode ser encontrada nas prateleiras das Blockbuster da vida.
Nos últimos dias do Festival do Rio, dois exemplos
distintos deste fenômeno puderam ser vistos. Por um lado, o filme
de uma jovem cineasta, recém-saída da muito conceituada Femis
(uma das principais escolas de cinema do mundo); por outro, o
filme de um respeitado diretor (de cinema e teatro – assunto a
que voltaremos mais tarde), que constrói toda sua carreira dentro
do guarda-chuva da respeitabilidade no circuito internacional
“de arte”. Em ambos os casos, quem parece sair um tanto sufocado
do processo é o tal do cinema.
Backstage,
da jovem Emmanuelle Bercot, viaja por regiões um tanto conhecidas:
a obsessão de uma fã com uma estrela da música mundial – que vai
se tornar relação pessoal doentia. No começo, o filme até ganha
nossa adesão com um belo primeiro número musical, que introduz
Emmanuelle Seigner como a estrela do pop, na qual acreditamos
assim que entra em cena. Em seguida, é Isild Le Besco quem nos
ganha fácil com seus olhos dramáticos e a expressão indubitavelmente
desequelibrada, que nos faz querer abraçá-la e protegê-la. Nos
primeiros passos desta relação (que começa com uma seqüência bastante
megalomaníaca que simula um especial de reality show gravado
na casa da fã), temos nossa atenção cativada pelas duas belas
atrizes, e uma câmera atenta (capitaneada por Agnès Godard, fotógrafa
de mão cheia, por exemplo dos filmes de Claire Denis).
No
entanto, não passa muito tempo e o filme começa a rodar em falso,
na medida em que a relação avança rumo à psicose esperada (de
parte a parte). Entra em cena uma trama paralela com o ex-namorado
da estrela, que pouco adiciona ao filme e rapidamente se torna
o centro dele, com contornos trágicos esperados. Nisso tudo, a
câmera de Agnès Godard vai começando a parecer cada vez mais desinteressada
– talvez, em parte, porque percebe que o material em frente a
ela não parece demandar mais do que isso (para ver uma verdadeiramente
bela fotografia de Godard no Festival, vale procurar o italiano
Mundo Novo). O filme ganha um quê de Big Brother Superestrela,
onde o maior interesse é participar deste processo auto-destrutivo
do estrelato e seus efeitos colaterais. E, claro, fala-se muito,
sempre – e com pouco interesse real.
Aliás, se o cinema francês (ou será que devíamos
dizer “os franceses”?) sofre de uma síndrome é a do excesso da
palavra. E Gabrielle, de Patrice Chereau, certamente serve
de exemplo-modelo. No começo, o falso domínio deste fluxo do palavrório
(e, portanto, da compreensão do mundo) por parte do marido interpretado
por Pascal Greggory é exatamente aquilo que o filme tematiza,
não sem interesse até a surpreendente virada imposta pela esposa
(interpretada por Isabelle Huppert). No entanto, dão por diante
o filme envereda por um duelo de retórica que logo abandona o
campo da sutileza e embarca de cabeça na repetição ao absurdo,
que não causa menos do que um profundo desinteresse.
Talvez
tentando fugir da matriz claramente literária (baseada em novela
de Joseph Conrad), e da estrutura absolutamente teatral, Chereau
investe numa série de “joguinhos de linguagem”, como a constante
troca das cores pelo preto-e-branco, o surgimento de algumas frases
escritas na tela, e finalmente a câmera-viva de outro dos fotógrafos-fetiche
do cinema francês contemporâneo, Eric Gautier (câmera, entre outros,
de Olivier Assayas). Aparentemente preocupado em dar dinamismo
ao material, Chereau acaba esvaziando cada vez mais o filme em
seus excessos, e quase desperdiça aquilo que tem de melhor: Huppert
e Greggory. Quase desperdiça, mas não consegue de todo, pois o
casal tem aquela força e presença que não se permite ofuscar fácil.
Ao final, ficamos com a impressão de estarmos assistindo uma versão
em antítese de A Época da Inocência, de Martin Scorsese
– onde o não-dito é trocado pelo excessivamente dito. Um americano,
um francês.
Nos
dois filmes, muito verniz de elegância e importância, e pouca
força, pouca presença. É um pouco o oposto exato do filme que
fechou a noite, depois de Gabrielle. Em Os Anjos Exterminadores,
elegância parece ser a última preocupação de Jean-Claude Brisseau.
Claro que está ali a palavra e o discurso constantemente postos
em cena como centro da experiência francesa, mas o que diferencia
Brisseau dos outros dois é que nele a imagem é tudo menos esperada,
menos formatada. Pelo contrário, em Brisseau a imagem parece sempre
selvagem, flertando constantemente com os gêneros menos “nobres”
(aqui, certamente, o pornô), e não se furtando ao artifício inesperado,
a surpresa (como os flashes de cortes que colocam em cenas figuras
“demoníacas” em cena). Brisseau faz um filme onde tudo é exagerado,
desproporcional, o que se entende até pelas motivações claramente
pessoais do projeto (ele viveu experiência semelhante a do seu
cineasta-protagonista). Mas, neste exagero e desproporção, vem
o descontrole que tanto desejamos (seja dos personagens, seja
do cineasta, seja, acima de tudo, do espectador frente ao que
assiste). Depois de dois filmes franceses tão controlados no seu
flerte com o ciúme e com a obsessão amorosa, é especialmente prazeroso
mergulhar com Brisseau na sua capacidade de filmar com o coração,
a fantasia, e o tesão à flor da pele. Esse sim um autor, autêntico.
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