in loco - cobertura do 45o festival de brasília
PS: Ainda (e até quando) as projeções
(em especial sobre o texto de Eles Voltam)
por Fábio Andrade

Os filmes, naturalmente, não existem sem cópia. Mesmo no tempo da imaterialidade digital, dos arquivos baixados e assistidos pela internet, essa afirmação segue real. Talvez o termo ("cópia") tenha caducado, mas certamente não foi assim com o seu sentido maior: cada projeção (caseira ou pública) de um filme se dá sempre a partir de determinada matriz e se relaciona com as condições do espaço onde se dá. Para o crítico, principalmente aquele que se relaciona com uma determinada obra pela primeira vez, quando ela acaba de "vir ao mundo" (caso, por exemplo, dos longas exibidos no Festival de Brasília), isso, que pode parecer um truísmo óbvio, se torna vital: não existe percepção crítica sem que esta seja afetada pelas condições dessa "cópia" exibida, e desse espaço de exibição. Por mais que tentemos "compensar" os defeitos que sabemos que não estão na obra, trata-se de exercício sempre incompleto, quiçá inútil.

Há apenas três anos publicamos aqui na Cinética um manifesto/abaixo-assinado feito por um grupo de críticos que ia a fundo na raiz desse problema. A esperança era de que, três anos depois, o panorama seria muito melhor. Mas, não, o Festival de Brasília mostra que a confusão continua e que o problema está longe de ser solucionado. Quase todos os realizadores que exibiram seus filmes (especialmente os longas, que demandam mais tempo e recursos na sua finalização) tiveram que vir a publico, em debates, entrevistas ou mesmo na premiação, quase que suplicar uma mudança de paradigma: os filmes que eles estão fazendo não são aqueles que estão sendo projetados nas telas. Não nos enganamos: sabemos bem que nunca houve um paraíso na era da projeção pré-digital. Problemas de som em inúmeras salas (principalmente os "não-cinemas" que muitos festivais usam), questões de foco ou de luminosidade sempre acometeram as projeções em 35mm. Mas isso tudo está parecendo preciosismo perto do que tem acontecido desde a oficialização dos formatos digitais em pé de igualdade com a película - quando, infelizmente, a projeção (pelo menos no Brasil, e nos principais festivais em especial) ainda não chegou lá. Por isso tudo, o caso que relatamos logo abaixo (e que por tão absurdo foi o que tornou esse texto inevitável) é apenas a ponta mais notável de um iceberg cada vez mais impossível de ignorar - sob risco de o Titanic ir a pique.

Pois o fato é: começamos esse texto dizendo que "não há filme sem cópia". A pergunta-colorário que vem a partir dessa é: existe festival sem filmes? Se a lógica mais rasteira nos indica que não, temos que perguntar a todos os organizadores de festivais (muitas vezes de orçamentos milionários) do Brasil: até quando seguirão fazendo seus eventos sem a participação real e efetiva dos filmes que os realizadores criaram? Isso faz mesmo algum sentido? A desculpa de que "são tempos confusos e indefinidos" não serve mais: a projeção em festivais internacionais, já quase totalmente digital, comprova isso ano a ano. Há critérios e capacidades tecnológicas óbvias já estabelecidas. Parece faltar é a tomada de consciência de que esse não é mais um problema: esse é O problema, uma vez que se está lidando com o cinema. Na expressão "festival de cinema", parece que vai tudo bem com o festival, mas o cinema anda precisando de atenção.

* * *

O Eles Voltam criticado aqui na revista é um filme que não existe - ou pelo menos não deveria existir em público. Ele pode até ser mais ou menos parecido com a obra final, mas é, certo e inevitavelmente, um outro filme (que dificilmente será visto novamente). A crítica se refere a uma cópia que não foi feita para ser exibida, mas que ganhou o mundo e o espaço do pensamento por um acidente de percurso, sem plano ou intenção de seu realizador.

Explico: por compromissos assumidos anteriormente, cheguei ao Festival de Brasília um dia após o começo da competição. Por sorte, os filmes do primeiro dia eram repetidos no dia seguinte, no Centro Cultural Banco do Brasil. Para que nenhum dos longas em competição ficasse sem textos na revista, organizei minha programação de maneira a assistir à reprise de Eles Voltam (e consegui uma cópia em DVD de Um Filme para Dirceu, uma vez que sua sessão no CCBB coincidia em horário com o segundo dia de competição). Durante a exibição do filme de Marcelo Lordello no CCBB, ficou nítido que se tratava de uma cópia finalizada precariamente - em especial pelo som não-mixado e pela ausência de créditos no final do filme. Como a projeção digital tornou comum a prática de exibir em festivais filmes ainda em processo de finalização, assumi que era esse o caso - até porque conversei com outros críticos que faziam restrições também ao som da projeção do filme na sessão principal.

No entanto, já nos últimos dias em Brasília, ouvi circular a informação de que outro filme em competição tinha sido exibido em cópia com timecode aparente na reprise no CCBB. Como tinha visto esse filme em cópia finalizada na sessão principal, sem qualquer indicação de timecode, enviei uma mensagem ao diretor Marcelo Lordello, que confirmou minha suspeita: a cópia de seu filme exibida no CCBB-DF, de maneira oficial e aberta ao público, se tratava na verdade do DVD não-finalizado, enviado meses antes para o comitê de seleção do festival. Era, portanto, um outro filme. Segundo o diretor, a música de Beck a que faço menção em minha crítica, por exemplo, havia sido usada como referência por se adequar ao espírito da cena e da personagem, mas foi cortada da versão final e não está no filme.

De fato, é difícil saber o quão diferente seria um texto escrito se o filme que tivesse sido visto no dia anterior fosse o "correto" – não pelo imponderável que atravessa toda exibição, mas porque de fato são filmes diferentes. Talvez parte dos incômodos teriam sido minimizados ou anulados com a finalização. É possível redirigir atores com uma dublagem, mudar radicalmente a construção de uma cena com uma simples correção de cor ou com a mudança de uma canção – isso se as cópias não tiverem diferenças concretas de montagem. Talvez o texto continuaria fundamentalmente o mesmo, com exceção da menção à canção de Beck – ilustração mais clara de algo que já estava em outras instâncias daquele mesmo filme. Essa resposta não temos - mas pedi a Marcelo Lordello que me envie um DVD do filme assim que possível, para que a crítica possa ser revista e reescrita, baseando-se num trabalho que efetivamente "exista", para todos os fins públicos.

Espero e me comprometo a voltar ao filme em breve, mas sei que não é possível “desver” um filme. Mesmo com todo esforço consciente de isenção e esquecimento, é impossível saber o quanto ficará de residual desse contato com esse outro filme - suficientemente diferente, é certo, mas inevitavelmente parecido demais com o final para impedir a sensação de “ver novamente pela primeira vez”. A crítica escrita a este Eles Voltam – esse filme que só eu vi (além dos presentes naquela sessão do CCBB, claro, e o comitê de seleção - para quem ele foi pensado), será mantida aqui como testemunho de o quão frágil é também o cinema, e o quanto nossas relações com os filmes são mediadas por fatores que não estão nas mãos dos artistas nem dos espectadores.

Setembro de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


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