debate crítico
Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness),
de Fernando Meirelles (Brasil/Canadá/Japão, 2008)
editado por Eduardo Valente

Depois de termos feito isso em anos anteriores, com A Dama na Água e Borat decidimos retomar, agora como hábito mais incentivado, os textos que proponham aos redatores que enviem textos mais curtos sobre alguns filmes que sempre acabam movimentando a redação quando entram em cartaz. Aproveitamos a entrada simultânea em cartaz de Ensaio sobre a Cegueira e Linha de Passe, e o fato de que foram vistos rapidamente pela maior parte dos redatoes (condição sine qua non, afinal, para que o formato funcione), para dar início a esta nova série de intervenções. A idéia principal continua sendo a de criar um diálogo direto entre idéias diferentes, revelando as distintas visões dentro da redação da Cinética, que às vezes ficam escamoteadas pela existência de apenas um ou, quando muito, dois textos sobre alguns filmes.

No caso do filme de Meirelles, em comum a todos é o fato de não haver nenhuma adesão incondicional ao projeto (com algumas rejeições mais radicais), mas por outro lado há diferenças de olhar (com trocadilho) sobre a tal cegueira e sua maneira de ser filmada.

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Fabio Diaz Camarneiro

A maior qualidade e o maior problema de Ensaio Sobre a Cegueira respondem pelo nome de Fernando Meirelles. Existe um cacoete do diretor em criar efeitos visuais que explorem a cegueira de seus personagens: a imagem que vai do sub para o super-exposto, um zoom que, em certos momentos, parece “inconseqüente”, a falta de foco, as passagens de tempo com a câmera fixa (como na cena da Boca dos Apês, em Cidade de Deus). Mas esses truques parecem servir mais para distanciar o espectador do filme do que para convidá-lo a participar da história narrada – história, aliás, interessantíssima. Grande diretor de atores, Meirelles tem à sua disposição uma grande atriz. Julianne Moore, a única que pode enxergar, concentra em seu olhar e em seu rosto toda a indignação sobre a derrocada de valores humanos como altruísmo ou solidariedade. E, claro, quando a situação “apertar”, ela mesma vai esquecer esses valores. O homem é o lobo do homem.

Uma cena secundária, porém grandiosa: quando os cegos caminham em fila indiana, um apoiado no ombro do outro, e um diz ao da frente: “esse negro não pode nos tratar assim”. O outro (um negro) responde “como você sabe que ele é negro?” Nesse momento, o negro se afasta e a fila indiana é quebrada. A cegueira, no livro de Saramago, não se trata de não enxergar, mas sim pensar que se sabe tudo quando não se sabe nada. Quando Meirelles interpreta a cegueira apenas como uma questão óptica, quem perde é o filme. Quando o diretor cria situações em que essa “cegueira” está presente nas situações criadas com seu elenco, o filme cresce. E muito.

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Eduardo Valente

Tendo visto e comentado o filme de Meirelles na versão apresentada em Cannes, voltei a ele movido, principalmente, pela curiosidade em notar as modificações que o diretor fez no filme após a dura recepção crítica que o filme teve por lá. Se há uma ou duas intervenções narrativas no começo que pouco alteram a lógica do filme, sem dúvida a maior mudança foi a quase completa retirada da voz em off de Danny Glover que, como eu notei na minha nota em Cannes, era uma muleta que tornava a experiência de ver o filme praticamente insuportável para qualquer pessoa com um mínimo de desejo de pensar e sentir um filme por si mesmo. O filme melhorou sem ela, como não poderia deixar de ser, no entanto sua ausência deixa o rei mais nu (já que ela chamava tanta atenção sobre si mesma como problema que chegava a atenuar o resto um pouco), no sentido de entendermos o que é o verdadeiro problema do filme de Meirelles: sua tendência a usar sempre o mínimo denominador comum cinematográfico como solução para questões dramáticas ou filosóficas. Meirelles traz da publicidade o domínio de linguagem de quem consegue passar uma idéia com muito pouco, e "vendê-la" para seu público. E em Blindness é isso que ele faz o tempo todo, numa constante manipulação que não é problema em si, mas sim a maneira fácil como se dá, passando a mão na cabeça do espectador o tempo todo (talvez o elemento mais óbvio disso seja o "cão digno" que passa a acompanhar os personagens na parte final). E o motivo principal pelo qual podemos afirmar que isso é um problema do filme (e não um pressuposto do crítico) é que, para um filme que se arvora de dizer algo "importante" e causar impacto no seu espectador, Blindness é, ao final, uma experiência quase asséptica na sua mistura de "elegância audiovisual" com obviedade de artifícios. É apenas mais um assunto para o jantar bem servido depois da sessão.

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Ilana Feldman

Blindness, o filme mais transnacional de Fernando Meirelles, é também seu projeto mais autoral. Explico: Blindness trabalha na chave de uma visualidade cega, que mais oculta do que revela. Excesso de planos, cortes velozes, ininterrupta variação da distância focal, super closes e saturação das cores, no caso, do branco, que em diversos momentos vai engolfando a imagem, quando nada vemos. Em outros momentos, vemos muito pouco, os olhos ardem e é preciso apertá-los com força para recobrar a nitidez. A instância narrativa assimila assim a cegueira de seus personagens. Todos esse procedimentos são caros ao cinema de Meirelles, seja em Cidade de Deus ou em O Jardineiro Fiel, mas aqui são intensificados e levados ao limite. Longe do tom a princípio cômico do livro e distanciado da alegoria política que ele próprio recria, Blindness está comprometido apenas com o cinema. Esta é sua força, mas também sua impotência cega. Na saída do cinema, as cores de São Paulo, longe da desterritorialização do branco transnacional, parecem mais vivas do que nunca.

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Nikola Matevski

A simples obediência às convenções narrativas mais básicas – aquelas exploradas com saudável vulgaridade em O Nevoeiro – não têm pedigree suficiente para o Nobel de literatura. Daí os espelhamentos, os planos que evitam perspectiva, as profusões de pontos de vista, as alternâncias de foco – enfim, todo tipo e recurso que jamais é uma aposta na abstração ou um desafio ao olhar e cujo efeito prático é o esvaziamento da dramaturgia. Talvez por isso, o parentesco mais próximo de Ensaio sobre a Cegueira não resida em outros blockbusters apocalípticos recentes, mas em um determinado 'cinema de arte', ou seja, nas qualidades mais afetadas de O Escafandro e a Borboleta, outro filme de intenções humanistas e edificantes cujas operações supostamente inovadoras e ousadas (embora em chave completamente distinta e mais interessada em sua gente) não eram mais que cócegas nos olhos. Hoje, o colírio está em Trovão Tropical.

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Julio Bezerra

Antes de mais nada: não li o livro. A adaptação, portanto, não é uma questão pra mim. Sigamos. O cinema de Fernando Meirelles, apesar de todos os “efeitos de linguagem”, é bem simples, prima sempre pela identificação com os personagens e seus dramas. Nesse sentido, Ensaio sobre a Cegueira é mesmo seu filme mais arriscado: seu grande desafio Ensaio sobre a Cegueira era justamente a ausência desses mecanismos. Trata-se de uma história recheada de abstrações. A cegueira não é exatamente uma doença, mas uma espécie de ponto de partida para se falar sobre a natureza humana. Meirelles desfila então o domínio técnico de sempre, as mesmas boas interpretações, mas confesso não ter sentido a degradação humana e tampouco a redenção final. Ensaio sobre a Cegueira não me alcançou – e isso numa história apocalíptica recheada de roubos, traições, estupros e assassinatos. Não sei dizer se a idéia era amenizar/simplificar o inferno narrado, ou, ao contrário, deixá-lo mais abrangente.

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Renata Gomes

Difícil dizer que Ensaio sobre a Cegueira é um filme ruim, simplesmente. Não é, ou pelo menos não padece das mesmas doenças infantis que acometem alguns filmes brasileiros – talvez por não ser propriamente um filme brasileiro, seja lá o que isso for. Suas mazelas são outras e parecem decorrer, paradoxalmente, da atestada competência de Meirelles, cujo efeito colateral se faz ver como a crença ingênua na possibilidade de dar conta do sentido de forma completa. Escravo do enredo, o filme patina entre filme de gênero e parábola, sem aproveitar o melhor de cada universo. Como imagem negativa, traz à lembrança M. Night Shyamalan: este, deliberadamente com menos, consegue criar atmosferas ao mesmo tempo realistas e fantásticas, que fazem falta a Ensaio, o filme, em sua frustrada tentativa de nos colocar na linha desse perene desencontro do olhar que enraiza a obra de Saramago.

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Lila Foster

Preciso dizer que é sempre com um tanto de desconfiança que eu vou assistir um filme do Fernando Meirelles, pois ele é o tipo de cineasta a que eu não consigo aderir completamente, mas que tem uma capacidade narrativa impressionante, mesmo na velocidade e fragmentação da sua direção. Em Ensaio sobre a Cegueira a câmera sempre atuante dos seus filmes, com movimentos incessantes, sem foco, que fragmenta os espaços e os momentos, assume uma função não meramente estilística. Faz sentido que a cegueira dos seus personagens, o caos sensorial que estão imersos, seja transmitido para o espectador por este estilo um tanto caótico, que pouco fixa o olhar. A correspondência entre as sensações personagens-espectador está no “brancão” que irrompe vez ou outra e as alterações de foco, mas não é só pela fotografia que a sensorialidade se constrói. A edição de som também é muito potente, principalmente nas pausas das telas pretas, como se o corpo se mobilizasse os seus sentidos de uma forma diferente mesmo. E isso está no livro: a leitura de Ensaio sobre a Cegueira te deixa bem impregnado de cheiros, cores e até o gosto ruim boca das pessoas e os espaços se deteriorando.

Agora, uma sensação que não está no livro, e que me falta no filme, é que o caos sensorial é só o momento de ignição de um caos muito pior: o caos da razão que se volta contra o próprio homem. Essa dimensão irascível e cruel da humanidade só surge como motor da trama – a troca de comida pela violência e estupro das mulheres ou os guardas mascarados, por exemplo – mas não assume um estatuto maior do que isso, é um índice na imagem e não uma forma que nos desloca, que causa um mal estar que não seja somente a vertigem visual. E o Meirelles sempre esbarra nesse “algo além”. Os temas são potentes – violência brasileira, a África à deriva e nas mãos das grandes corporações – mas os filmes sempre permitem a redenção. O humanismo do livro (humanismo porque o caos tem fim, a visão retorna e algumas pessoas terão a chance de aprender ou não com o trauma daquilo tudo) é festivo no final do filme e isso é difícil de engolir.

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Paulo Santos Lima

Se a cegueira é o grande drama para quem sempre enxergou e esteve apoiado em certezas e portos seguros, a clareza didática com a qual Meirelles constrói o drama e thriller deste seu Ensaio sobre a Cegueira assassina qualquer abertura à dúvida, a massa disforme da qual as imagens fotoquímicocinéticas são tatuadas na película ou transportadas à tela. Em outras palavras, optou-se pela fotografia alva e ultra-exposta, recurso "chique" e in, além do óbvio desfoco, em sacrifício de uma experiência menos explanativa e mais sensorial, mais arriscada e inusitada (como a cegueira para aqueles personagens). Pendulando bêbado entre a experiência dos indivíduos e a experiência-síntese de um grande arquétipo humano, parte pelo todo, faltou bengala ou um cão são bernardo a Meirelles. Enfim, antes de ser um filme sobre a cegueira humana, Ensaio... é um filme-cegueira, vôo cego de um cineasta que vinha sobrevoando com certa precisão (e esperteza) os mapas estéticos de seu momento histórico.

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Felipe Bragança

Deus na cidade. A narratividade consciente de um espaço de encenado caos, a partir da mediação de uma figura distoante capaz de organizar os fatos em trajetórias fabulares e parábolas, é o que este Ensaio Sobre a Cegueira traz de mais expressivo sobre os interesses de Fernando Meirelles desde Cidade de Deus. O fotógrafo de Cidade de Deus, que pode ver, pode fotografar, pode enquadrar, é também o lugar da personagem de Juliane Moore e sua incapacidade de tornar-se cega. Como primeiro filme de Meirelles após Cidade de Deus a ser produzido a partir de projeto pessoal do realizar (Jardineiro Fiel destoa como filme encomendado, ainda que as marcas do diretor estejam lá, mas falem mais de um personagem que investiga, quer a narrativa, do que sobre um que já a detém), Cegueira nos ajuda a perceber que algumas operações de Cidade de Deus seguem o mesmo tipo de premissa aqui levadas à última potencia pelo caráter fabular do livro original de Saramago: a tentativa de construção de um estilo gráfico na tela que induza o olhar de quem vê o filme a uma espécie de transe em que TODO O MUNDO CAIBA NAQUELE FILME.

Os excessos estilísticos de Meirelles parecem estar ali para costurar não apenas uma atratividade festiva ao filme, mas uma tentativa de distanciamento reflexivo sobre o espaço como uma forma de representação do mundo totalizante, totalitária em alguma medida. Cegueira começa e acaba exatamente onde gostaria, com um discurso mastigado sobre a perde de identidade enquanto veste a própria perda de identidade nessa cidade sem nome e sem lugar construída, em grande parte, pelas ruas de São Paulo. É um filme, então, que repete o trinômio de Cidade de Deus: território impessoal sintetizante (Deus – onisciência e Cegueira – se aproximando), caos pela disputa de poder (sejam traficantes, sejam cegos esfomeados), capacidade de narração e organização do todo por um personagem desviante e dono do olhar. Talvez resida aí o próprio lugar que Meirelles parece propor, até agora para seu cinema: um organizador fabular de comportamentos caóticos – o que, sempre pode ser ao mesmo tempo instigante e perspicaz (como o tenta ser e consegue o humor político do livro de José Saramago) ou perigosamente totalitário e sufocante em sua fôrma moral e estilística. O filme de Meirelles, me parece, fica bambeando entre essas duas possibilidades.  

Setembro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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