Criticar e ser criticado
por Eduardo Valente e Fábio Andrade

No último editorial da Cinética, que já completa quase um semestre no ar, falávamos de um aumento notável da participação da revista no calendário dos festivais de cinema no Brasil em 2009. Já chegando à reta final deste 2010, podemos dizer que essa presença se confirmou: além do Festival do Rio e da Mostra de SP, voltamos aos festivais de Tiradentes, Ouro Preto, Paulínia, Gramado, É Tudo Verdade, Semana dos Realizadores, FBCU, e Brasília (atualmente em curso), além de fazermos uma primeira cobertura do Cine Ceará.

Não podemos assumir as motivações desses festivais ao convidar a Cinética, mas respondemos pelas nossas ao aceitar esses convites: pensar o cinema brasileiro hoje sem acompanhar a produção que permanece restrita aos festivais seria como tentar dar conta hoje do cinema no mundo (de qualquer época) abrindo mão de recorrer à internet. Definir o que é o cinema brasileiro contemporâneo a partir do circuito comercial seria postura inevitavelmente metonímica; e por mais que acreditemos que as reduções se fazem necessárias em determinados momentos, o acompanhamento desses festivais não só tornam o todo mais matizado, como também chamam a atenção para as exceções dissonantes às reduções.

Se a Cinética nasce do desejo de pensar o cinema, isso inclui, sem se limitar, a necessidade de tomar posturas no calor do momento, respondendo e perguntando aos filmes sem a distância das revisões e das consolidações históricas – algo que também nos interessa, mas que nos preocupa enormemente como caminho primordial de relação com o cinema, em especial o brasileiro. Por outro lado, é inegável que essa dedicação à cobertura de festivais traga uma série de ruídos que revela outros lados dessa relação.

Em primeiro lugar, há a necessidade de enfrentar essa tradição do não-pensamento e do não-julgamento imediatos, que guardava à crítica uma distância por vezes providencial, por outras demasiado segura. Como boa parte dos festivais cobertos pela Cinética não ganha atenção maior de outras revistas de crítica de cinema no Brasil (por opção delas mesmas muitas vezes, dos festivais em outras), a revista acaba se tornando, em vez de terreno de um contato possível entre vários, quase uma instância legitimadora por W.O. Quando pouco ou nada é pensado e escrito sobre certos filmes, as palavras que dedicamos a eles perdem valores que nos parecem importantes, sendo alçadas a cristalizações imutáveis e imediatas. Não fugimos da responsabilidade crítica de apontar caminhos e demarcar interesses neste ou em qualquer panorama de filmes, mas também não nos interessa excluir das coberturas de festivais o lado cotidiano, imediato e parcial, que atravessa cada sessão de cinema e cada texto.

Se para nós tal relação é bastante clara, começa a se fazer perceptível uma certa afobação de leitura que apaga esse pressuposto. A vontade de começar conversas e de pensar filmes que seguiriam, muitas vezes indevidamente, para o limbo da História sem gerar qualquer reflexão à sua época passa a ser confundida com a legitimação automática (ou seu contrário) desses mesmos filmes, como se a Cinética tivesse obrigação ou interesse de ser um braço crítico deste ou daquele cinema. Isso começa a ficar claro no crescimento do número de emails enviados à revista ou aos seus redatores por diretores e membros de equipe de filmes criticados pela Cinética (muitas vezes em conversas ou mensagens pessoais, não raro acompanhadas do pedido que elas não sejam publicadas), agradecendo e exultando as críticas positivas, assim como manifestando-se violentamente contra as críticas negativas. 

São cartas que frequentemente parecem confusas diante da função que tomamos para nossas críticas, como se as críticas positivas fossem necessariamente “a favor” dos filmes, e as negativas fossem “contra”, e que isso denotaria nosso apoio ou rechaço a este ou àquele projeto de cinema. Por isso mesmo é importante reafirmar o (que deveria ser) óbvio: nossa relação crítica vem a partir dos filmes, e responde não a este ou àquele projeto, mas ao próprio cinema. Fazemos o possível para não ignorar a História ou o contexto nos quais cada filme surge, mas os caminhos apontados pro cinema brasileiro na revista precisam partir sempre da relação de cada redator com os filmes, nunca antes deles. É exatamente esse pressuposto que reúne diversos olhares diferentes, e muitas vezes discordantes, em uma mesma revista: questão de práxis, não questão de gosto.

* * * 

Se culpa nossa nesta confusão possa haver, talvez ela se deva ao fato de que as coberturas de festivais, evento que consideramos importante pelos motivos já expostos acima, e dos quais não abriremos mão, se tornaram por demais presentes no todo do que a revista produz atualmente. Esta sim é uma preocupação constante nossa, como já mencionávamos no editorial anteriormente citado, sabendo que 2010 seria necessariamente um ano de transição nesta trajetória que hoje empresta à revista um público leitor amplo, ávido e atento (e por isso mesmo às vezes apressado), e ao mesmo tempo um processo interno bastante complicado devido às questões inerentes ao modo de produção voluntário já bastante dissecado por aqui. Nesse sentido, o que vale dizer é que a editoria segue bastante atenta ao fenômeno, pensando e agindo em soluções para que as coberturas se tornem menos onipresentes – não através da sua supressão, mas pela capacidade de somar outros olhares posteriores aos filmes; e/ou, principalmente, complementares aos recortes dados pelos eventos no cinema nacional e mundial (contemporâneo ou histórico).

Talvez em 2010 isso tenha se dado com mais força numa iniciativa concreta, mesmo que infelizmente resultando local e localizada (no Rio de Janeiro, portanto): a Sessão Cinética, voltada para incitar revisões históricas nas (re)visões dos filmes, debates e nos textos que escrevemos sobre os filmes (estes sim podendo ultrapassar os limites da sala do cinema). Da mesma maneira, esperamos retomar a chance da nossa seção Olhares, frequentemente dedicada à cobertura dos festivais, se fazer também o lugar da consolidação histórica e da revisão. Nesse sentido, nos relançamos a esta missão neste mês, começando com um texto dedicado a um dos filmes que nos parece indubitavelmente grande entre os lançamentos de 2010: Brilho de uma Paixão, de Jane Campion.

Esperamos poder falar num próximo editorial que este foi realmente um primeiro passo, e não apenas um soluço. Mas isso, cabe ao futuro e ao nosso trabalho dizer, mais do que a declarações de intenções. De qualquer jeito, são relações diferentes que, ao nosso olhar, se complementam na formação da revista, e que se encontram justamente neste ethos de contato: assistir aos filmes e chamá-los à conversa.

Leia também nossos editoriais anteriores.

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