admirável mundo novo
Execução privada, exposição
pública por Leonardo Mecchi
No
instante em que os primeiros noticiários internacionais começaram a circular as
imagens da execução de
Saddam Hussein realizadas pela TV Al-Iraqiya (ao lado), havia uma única e constante
sensação: a de que, a qualquer momento, surgiria na Internet uma versão integral,
sem cortes, daquelas imagens editadas e esterilizadas que estávamos observando.
Como já se tornou hábito nesses últimos tempos, a confirmação se deu mais rápido
do que o esperado: em menos de 24 horas após a morte do ex-ditador iraquiano,
surgia no You Tube e outros portais de vídeo uma segunda filmagem da execução,
desta vez realizada por uma das testemunhas através de um celular – imperfeita,
urgente, ciente não apenas do caráter histórico do fato que registrava como também
da historicidade de sua própria essência como registro.
Se
aquelas primeiras imagens que circularam pelas TVs de todo o mundo possuíam um
ar solene e oficial – prezando por uma impessoalidade e distanciamento documental
e focando serenamente os detalhes daquele cerimonial, de modo a não deixar dúvidas
quanto à veracidade do registro e da identidade do executado –, as imagens captadas
por aquele celular imprimem em sua instabilidade e imperfeição toda a emoção e
urgência daquele momento histórico (de uma forma que a ficção só conseguiu emular
este ano na reconstituição de Paul Greengrass para os ataques de 11 de Setembro,
em Vôo United 93),
devolvendo àquele ato toda a tensão e a aparente clandestinidade que o registro
oficial tentava apagar. Do
ângulo em que foi realizada (a uma certa distância e em contra-plongée,
em contraposição à proximidade da filmagem oficial), a gravação do celular estabelece
uma espécie de palco onde os preparativos para o enforcamento de Saddam se dão,
reforçando o caráter de espetáculo daquela execução. Da mesma forma, por uma espécie
de pudor tardio – ou por receio de serem julgados como bárbaros pela comunidade
ocidental, como se apenas a imagem de um corpo balançando numa corda é que fosse
bárbara, e não o ato de um enforcamento em si –, o registro da TV iraquiana se
encerra instantes antes da execução propriamente dita, enquanto as imagens do
celular não apenas registram com impacto o momento da queda, como vão buscar,
em sua curiosidade mórbida, um close do corpo inerte e dependurado. Assim
como as imagens de vigilância em Caché parecem
ter sido concebidas espontaneamente, sem que houvesse de fato alguém a registrá-las
e enviá-las ao personagem de Daniel Auteuil, também estas imagens da execução
de Saddam possuem esse caráter etéreo, como se a tecnologia em si (uma imagem
registrada pelo celular, distribuída e visualizada por milhões através da Internet
e, posteriormente, reproduzidas por TVs de todo o mundo) fosse capaz de criar
e difundir essas imagens. Não mais um Big Brother, um grande olho que a tudo vê,
mas uma espécie de consciência coletiva, onde instantaneamente todos têm acesso
a qualquer coisa que esteja ocorrendo a qualquer instante, em qualquer lugar. Encerrando
este que foi considerado o ano do fenômeno You Tube (a ponto da revista Time eleger
como personalidade do ano eu, você e todos nós que produzimos e consumimos nossos
próprios conteúdos através da web), o último grande evento audiovisual
de 2006 corroborou o surgimento de um quinto poder – descentralizado, capilar,
anárquico – capaz de uma virtual onipresença e de uma velocidade de distribuição
que revoluciona não apenas a imprensa e os meios de comunicação e entretenimento,
mas, principalmente, nossa própria percepção da realidade.
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