Andarilho, de Cao Guimarães
(Brasil, 2006) por Cezar
Migliorin Mundo
desgarrado Não
é a primeira vez que chamamos a atenção para o trabalho de Cao Guimarães (já tendo
publicado uma entrevista
sua e um ensaio de
Lila Foster sobre sua obra), nem para Andarilho
(que Paulo Santos Lima relacionou com outros
filmes exibidos na Mostra de Ouro Preto). Filme
sobre a fusão entre pessoas e lugares de passagem: alguns homens à beira da estrada
inventam a religião e os gestos, os artefatos e as roupas, os sons, textos e toda
uma forma de habitar esses lugares de passagem. Assim é o filme de Cão Guimarães;
com carros que cruzam o quadro, caminhões que apenas se fazem ouvir enquanto o
filme se concentra nos gestos e vidas desgarradas.
Mas,
a importante operação que o filme consegue fazer é transformar o desgarrado –
em relação a alguma norma exterior – na totalidade do filme e das vidas daquelas
pessoas. O desgarrado deixa de ser desgarrado de algo: eles são o mundo mesmo.
A concentração do filme no que é normalmente estranho (catar pedras para jogá-las
por debaixo das pernas, atravessar o mundo caminhando com uma espécie de capacete,
empurrar a casa na beira da estrada, viver sujo com sacos plásticos como mala,
falar sozinho), ganha tal atenção que, no lugar de ser exótico e estranho, passa
a ser um forma de inventar e habitar esteticamente o mundo. Andarilho
se organiza fazendo conviver uma grande economia e delicadeza no modo de filmar
esse universo de extrema singularidade, com raros movimentos de câmera, uso do
tripé muito presente e planos longos que observam pequenos acontecimentos, ao
mesmo tempo em que é exagerado, excessivo, brutalmente separado da informação.
Na fala de um dos andarilhos, por exemplo, sua voz começa encoberta pelo som de
um caminhão, logo depois podemos ouvir o que ele fala para em seguida seu texto
se transformar apenas em gestos corporais – uma boca que mexe, uma cabeça que
balança, mãos que gesticulam. O texto desapareceu engolido pelo universo do filme
e dos andarilhos. E, quando o texto volta, ele adere a esses movimentos não-narrativos
e passa a ser ele também uma modulação do que há para ver e ouvir nesse mundo
que vai se inventado com esses homens. Os textos frequentemente são partes dos
gestos corporais, menos comunicacionais que sensoriais. O
vapor que brota do asfalto faz vibrar toda a imagem. Suspende a dureza do chão
e do asfalto quente e nos joga nessas passagens em que aparecem os andarilhos
do filme. Os carros também estão ali, atravessam o filme na suspensão dessas imagens
apuradas e fugidias, mas são também barulhentos, rápidos e agressivos. Os
andarilhos aparecem como figuras desgarradas, habitantes de passagens, lugares
quaisquer em estradas quaisquer. As passagens existem nas estradas, claro, mas
também entre o céu e a terra, entre a narração e um universo caótico. Quase no
final do filme um dos três personagens traça seu caminho em um mapa. Este gesto
aparece como um choque. O que parecia ser apenas algumas vidas levadas pelo vento
(outra imagem do filme) tem também um caminho a ser percorrido. Nesse choque,
mais uma vez o filme e os andarilhos se colocam nessa fronteira entre o que prende
ao chão, o roteiro e o mapa e o que é puro desgarramento, palavras mais sonoras
que do que formas de comunicação, gestos mais estéticos do que expressivos. O
filme de Cao é atravessado por quase citações e, enquanto filme de passagens,
opera também passagens para outros filmes e imagens longe dali: Bill Viola – The
passing (1991), filme feito à beira da estrada, na noite em que os carros
iluminam o deserto; Gerry (2002) de Gus Van Sant, em que os personagens
perdidos em lugares quaisquer são acompanhados com a intensidade de quem sobe
uma montanha ou empurra a casa ladeira acima; Infrastructure, de Rachel
Reupken, que transforma as estradas em bizarros espaços alógicos; Glauber Rocha,
porque o transe é o que abre as portas do mundo terreno. A
estrada adquire no filme uma multiplicidade de texturas e dimensões. Na seqüência
em que Cao acompanha um grilo que atravessa a estrada, os pequenos grãos de areia
que pipocam no asfalto quando os carros passam ganham dimensões gigantescas. A
fragilidade do grilo pode ser metafórica, é certo, mas é mais do que isso. Esta,
entre outras seqüências, é parte de um modo de estar na beira da estrada, como
se a experiência do filme e dos andarilhos alterasse toda observação da vida.
Cao Guimarães encontra no cinema uma forma de entrar em
mundos que parecem impenetráveis. Consegue inventar uma forma de estar com esses
indivíduos através do compartilhamento de um viés poético em relação ao mundo
e às coisas. O filme é a invenção de um espaço comum entre o universo dos andarilhos
e do filme, e esse espaço é fundamentalmente estético. Um espaço de visibilidade
em que os momentos em que a fala falta ou se perde, em que o corpo se contorce
ou se desfuncionaliza se tornam a própria potência do filme e do universo filmado. editoria@revistacinetica.com.br
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