in loco - cine BH 2009
Buscando identidades: festivais, co-produções, cinema
por Julio Bezerra

Um festival não é feito somente de filmes. Eles são os astros (ou deveriam sê-lo), é verdade. Mas em qualquer mostra eles seguem sempre atrelados a um determinado projeto ou conceito. É preciso então, antes de qualquer outra coisa, colocar em questão o evento, sua política, suas intenções e estratégias. Os festivais não são apenas espaços de exibição. Eles existem (talvez, sobretudo) para desenhar certas tendências na produção cinematográfica recente e expor uma visão e desejo de cinema. Pois agora em sua terceira edição, o CineBH já apresenta um perfil mais bem delineado, especialmente quando o comparamos com os seus pares produzidos pela mesma Universo Produção que realiza as mostras de Tiradentes e Ouro Preto.

A mostra tem nuances curiosas, já começando pelo fato de ser realizada em uma praça simpática de um tradicional bairro belorizontino, Santa Tereza. A programação é totalmente gratuita, entre exibições ao ar livre (espaço para mais de 1.000 espectadores), uma tenda montada para o evento (com 400 lugares), e um antigo cinema (500 assentos) especialmente reaberto para a ocasião. Na verdade, fundado em 1944, o Cine Santa Tereza permanece desativado desde 1980, tendo que ser totalmente reestruturado a cada CineBH. Pois é, o cinema brasileiro tem dessas coisas. Vira e mexe, ele te dá um belo de um tapa na cara. As solenidades de abertura e encerramento do CineBH, por exemplo, esbanjam uma pompa (com direito a hino nacional, vídeos sobre Minas Gerais, uma bela apresentadora, entre outros elementos “espetaculares”) que não combina lá muito bem com esse festival (totalmente alheio à vida da capital mineira), que curiosamente se revela o mais provinciano dentre as mostras organizadas pela Universo.

A co-produção como gênero

O grande desafio deste ano foi discutir as características da cada vez mais freqüente co-produção cinematográfica, contextualizando o mercado audiovisual em intercâmbio com o mundo, e especialmente com a presença da França. A idéia era pensar a co-produção para além do financiamento mais imediato de produções que de outra forma não conseguiriam captar recursos para sua realização. A co-produção como uma possibilidade de se aproximar culturas, não apenas através da obra pronta, mas também no compartilhamento de experiências e conhecimento entre os profissionais de diferentes nacionalidades, confrontando visões diferentes de mundo e de cinema. A impressão foi a de uma programação pensada a partir de uma visão crítica. Não no sentido de seleção de melhores filmes segundo uma determinada concepção pessoal, mas considerando não apenas as propostas dramáticas de cada um dos filmes, como também a maneira como elas se comunicam entre si, e de como essa relação evidencia um determinado momento histórico e uma certa mentalidade cinematográfica. Como todos os longas exibidos já ganharam textos específicos na Cinética (quatro deles inclusive de minha autoria a partir do visionamento em BH: Independência, Dzi Croquettes, Nova York Te Amo e Plastic City), tento aqui esboçar breves considerações a partir de sua exibição conjunta.

O que se percebeu nessa leva de co-produções (com a única exceção do belo Independência, de Raya Martin - foto ao lado; que sofreu com talvez o maior pecado da mostra: o filme foi exibido sem legendas em português) é a recorrência de determinadas estratégias: a narrativa ágil e fragmentada temporalmente, uma certa tipologia dos personagens, uma dinâmica pop de referências, um formato estético uniformizado para todos os gostos, e o desejo por um cinema que se fecha em si mas que não seja puro escapismo. Filmes que dizem muito mais respeito ao ritmo de quem os vê do que ao dos acontecimentos do filme e de seus personagens. Nenhum tempo para imersão. O espírito é o da gincana. Mais do que isso. A co-produção é um cinema novo que se afirma, sobretudo, como uma posição sui generis de mercado. Um produto transnacional que mantém relações com os espaços e identidades a partir de uma lógica comercial. As particularidades culturais envolvidas funcionam aqui como moeda de troca para consumo interno e externo. Seria a co-produção uma espécie de gênero cinematográfico? A ver...

Problemas e desafios do cinema nacional

No que se refere ao cinema brasileiro, em especial se olhamos para os documentários exibidos na mostra, a sensação talvez seja um tanto desalentadora. O cinema nacional deixou de ter projetos. A diversidade é festejada, mas mascara uma trajetória cinematográfica estranhamente única, em que os avanços e os recuos, para além de serem inesperados, operam alternadamente e sem nenhum conhecimento daquilo que os precederam. O que fica é a impressão estranha de que nossos filmes não se conhecem. O cinema brasileiro não se conhece. E assim permanecerá fadado a sempre recomeçar do zero. Ele nasce em um filme para adoecer no seguinte.

Quanto aos curtas, como foram em geral programados nos mesmos horários dos longas, não pude ver muitos. Os que vi, no entanto, confirmam certos caminhos: filmes que optam pela inocência de suas imagens; que colocam em questão sua própria construção como imagem; que partem de uma idéia de encontro; que se constroem na repetição. Nesse embate é evidente o dilema que o cinema contemporâneo nos impõe: vale tudo, tudo é possível, mas será que ainda se pode alguma coisa? Confrontar essa questão é entender que se não há mais uma relação de absoluta hierarquia entre os modos de fazer cinema, se já não podemos confirmar se uma representação é ou não boa por si só, o problema se desloca. Não exatamente como fazer filmes, mas como ser um filme. A prospecção, entretanto, é favorável. A safra recente de curtas metragens brasileiros nos faz prever dias melhores no que concerne não só as expressões artísticas como também as discussões estéticas e narrativas – isto, é claro, se essa geração poder chegar ao longa apesar de todos os já conhecidos obstáculos.

O cinema falado

O CineBH, assim como os seus pares da Universo, é marcado pela importância quase semelhante dada aos filmes e a seminários discutindo os critérios da curadoria e o cinema brasileiro contemporâneo. No caso específico deste ano, as mesas foram elaboradas acerca destes temas: os caminhos da co-produção internacional, as film comissions e o Brasil como cenário para produções estrangeiras, a televisão e seu papel como difusora e fomentadora do cinema nacional, o mercado audiovisual e as políticas públicas brasileiras e francesas. Se a co-produção internacional teve um salto nos últimos anos no Brasil, ela ainda é tímida frente a outras nações. Para se ter uma idéia, nos primeiros sete anos da retomada do cinema brasileiro 15 co-produções foram rodadas, enquanto nos sete seguintes foram realizadas outras 48. É curioso: o cinema brasileiro decorou um discurso mercadológico e industrialista muito forte, mas ainda está totalmente voltado para a produção e não vê o mercado como um conjunto maior. Além disso, quando se discute o mercado, não se trata somente de lucros e contas, mas algo ainda mais fundamental: a circulação do cinema pela sociedade. Este é um debate necessariamente político e cultural.

Neste sentido, a discussão mais acalorada da mostra sem dúvida nenhuma foi sobre as relações entre o cinema e a TV. Curiosamente, os convidados permaneceram quase sempre na defensiva. Sintomático? A mesa trouxe à tona o quão fraca é a legislação brasileira de fomento à aproximação entre cinema e TV quando comparada à da França e as dificuldades que a TV pública encontra para conquistar seu espaço e exercer sua missão cultural. Ou seja: a programação confirmou a importância dessas oportunidades para trocas de experiências entre profissionais de diversos países e o fato da co-produção ser realmente um caminho sem volta para a produção cinematográfica brasileira. E, embora seja visível a necessidade de uma melhor divulgação desses debates (a média de público não chegou a 30 pessoas), me parece muito acertada a aparente premissa em se privilegiar o contato com a platéia e os efeitos que esses encontros podem gerar a médio e longo prazo. Os seminários não são específicos para críticos e jornalistas, muito pelo contrário. A maioria dos presentes sequer passava da casa dos trinta. E isso é um tanto empolgante. Pois o importante é discutir a circulação do filme como um todo. Esse é o debate de quem vive com o cinema e o deseja sempre para mais gente.

Novembro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br

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