Políticas de cinema e de crítica
por Cléber Eduardo, Eduardo Valente e Leonardo Mecchi

Uma política de ações e não de retórica, em nome do desenvolvimento de um circuito de salas de exibição com programação diferenciada; e uma retórica de ação política, que visa estimular mais pessoas a comprar ingressos para atividades culturais. As últimas semanas foram marcadas por essas duas iniciativas – uma civil, outra pública (oficial). Se tivermos em mente a circulação de filmes e pessoas pelas salas de cinema, parece um plano e contraplano com quebra de eixo.

Plano 1
A Carta do Recife, elaborada a partir de uma reunião de programadores de salas “especiais”, é um sinal de luz. Empregamos aqui “salas especiais” porque a política para essas salas tem de ser especial – nem alternativa, nem independente, termos que, para gestões públicas ou particulares, pressupõem política para nanicos e quixotes. Nada disso: sem grandes empresas por trás, sem o mesmo poder de negociação das cadeias de exibição, mas com o desejo de fazer as imagens mais impactantes e mais estimulantes do cinema contemporâneo circular por entre olhos e sensibilidades de um novo público, estas salas são sim especiais. E dessa maneira precisam ser tratadas.

Plano 2
O projeto do Vale Cultura (já discutido na revista em outro texto) ambiciona colocar mais trabalhadores de baixa renda, e renda menos baixa, dentro dos espaços de cultura, com ingressos pagos. É uma estratégia questionável – não reprovável em si mesma, mas questionável. Como isso ocorrerá? Quais as regras? O desconto em folha de pagamento para o Vale Cultura é escalonado de acordo com salário. Em que os beneficiados irão usá-lo? Nos filmes brasileiros? Em quais deles? No cinema de Hollywood, exibidos nos multiplex? E os desempregados? Não têm o benefício e, se o tiverem, perdem-no em caso de demissão? Teríamos uma política de cultura vinculada a quem tem carteira assinada e contracheque? Uma cultura para funcionários, portanto, não para uma sociedade de fato. Permanecemos ainda diante de uma hierarquização entre quem pode e quem não pode entrar em uma sala de exibição ou em um outro ponto capitalista de cultura

Essas perguntas podem ofender quem vê dirigismo e dogmatismo em convicções, como mostrou em entrevista recente Valmir Fernandes, da rede Cinemark, mas, quando se tem um Ministério da Cultura diante de uma iniciativa, elas precisam ser colocadas no ar. O MinC governa para aumentar o mercado de atividades culturais? Não haveria em sua noção de cultura – e sabemos que pode haver – algo anterior ao dinheiro. Não deixemos de falar do dinheiro, porque ele move as atividades da cultura, mas pensemos o dinheiro para além dele. Porque algo é feito com ele. E ai nos importa como é feito. E para que. O plano 1 tem enquadramento político-estético: faz escolhas dentro do cinema e luta por esse direito: o de fazer escolhas e propiciar escolhas. O plano 2 tem enquadramento econômico-social: não faz nenhuma escolha e livra-se de responsabilidades. No primeiro caso, trata-se de atitude de engajamento. No segundo, ao menos a princípio, de marketing. Ao menos a princípio.

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A sequência quase sem cortes entre três festivais acompanhados de perto por redatores da revista entre julho e agosto nos permitiu um contato direto, um corpo a corpo com a produção latino-americana recente. Não há motivos para celebrações e eleições. No Festival Latino-Americano de São Paulo, os filmes mais interessantes não eram exatamente fortes, mas interesses dentro do recorte da programação (filmes recentes da America Latina), seja porque mostram elites doentes do espírito (sobretudo entre os jovens), seja porque se aproximam de outras formas do pitoresco em potencial – sem com isso arregalarem nossos olhos e promoverem alguma alteração em nossa sensibilidade. Já os textos levados ao ar sobre a programação de Paulinia e Gramado emitem sinais de enorme indignação ou indiferença com o conjunto de filmes selecionados.

Não confundamos, porém, indiferença com descaso: a indiferença é um julgamento crítico, no sentido de não se localizar diferenciais que, durante ou após a sessão, mobilizem sensibilidade e idéias. Na cobertura de Paulinia, dois filmes foram “salvos”: Moscou, de Eduardo Coutinho; e No Meu Lugar, de Eduardo Valente. Uma obra de veterano, com sua revisão; outra de um estreante, com suas afirmações. É importante falarmos desses dois filmes porque eles se tornaram nesse ano, até agora, motivos de uma discussão interna sobre suas especificidades e sobre como lidar com eles editorialmente na revista. Cada uma das discussões com suas particularidades

Sobre o filme de Coutinho, que já havia estimulado quatro diferentes textos quando exibido no É Tudo Verdade, muito se tem dito, para afirmar ou questionar. Mas de que maneira? É dessa questão que parte Francis Vogner dos Reis em seu artigo, em que reage a dois olhares: um de Eduardo Escorel, outro de Jean-Claude Bernardet. Afinal, crítica se faz em relação aos filmes e também em relação a maneira de vê-los. Mas por que um mesmo filme, ou um mesmo diretor, merece tanto destaque? Talvez o percurso de Coutinho fale por si mesmo, mas, no caso específico de Moscou, que é defendido fortemente pela maioria da revista (mas não por toda a redação), a razão de destaque é estética, tão e somente. O que se coloca em questão, na soma dos artigos, é o momento de nosso “maior cineasta” (segundo eleição, sim, de um dos textos). Para onde ele aponta? Para frente, para trás ou para os lados?

Sobre o filme de Valente, embora tenha sido mencionado positivamente na cobertura de Paulinia, nada escrevemos ainda de mais fôlego. Só que aqui o problema é menos estético e mais editorial – afinal Eduardo Valente é um dos editores de Cinética, como a assinatura no alto deste texto deixa bem claro. Embora a maior parte da redação tenha uma relação intensa e positiva com No Meu Lugar, não deixamos de problematizar nessa relação o lugar de quem escreve e da revista. Devemos ignorar o filme de um de nossos pares porque não temos distanciamento para lidar com ele em texto, ou devemos ser justos com nossas percepções e nem levar em conta essa coincidência entre o diretor e sua atividade na Cinética? Tentaremos tanto não ignorar o filme em uma atualização próxima, mas também não deixar de levar em conta essa nossa proximidade (com distanciamento). No Meu Lugar não pode ser prejudicado por conta da atividade do editor, nem tampouco ser beneficiado por essa circunstância. Por isso, sendo esta uma revista que já nascia com a consciência dessa interação entre diferentes ações de seus redatores no cinema, temos de encarar o filme pelo que ele desperta em nós – sem fingirmos que ele não existe, mas sem fingirmos ignorar nossa proximidade excessiva com ele.

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Mas se o cinema brasileiro de 2009, em estréias e festivais, tem merecido pouco destaque recente, não podemos deixar de destacar alguns assuntos que nos (co)moveram neste mês. Entre os lançamentos, por exemplo, houve A Erva do Rato, de Julio Bressane, cuja leveza acima do esperado (do cineasta) dará origem a mais alguns textos para além da crítica que foi publicada. Já nos festivais, apareceu Corpos Celestes, de Marcos Jorge e Fernando Severo, o destaque de nossa cobertura de Gramado. Não façamos aproximações entre o cinema único do veterano carioca e o cinema também único da dupla de realizadores paranaenses. Mas é importante, nos dois casos, fazer essas afirmações: são únicos.

Houve ainda sinais de fumaça vindos do passado e do futuro – ambos, claro, devidamente presentificados. Por um lado, o Festival Brasileiro de Cinema Universitário impôs por seu interesse próprio a realização de uma cobertura diária. Por outro, a III Jornada do Cinema Silencioso, sobre a qual escreveremos muito em breve, nos possibilitou respirar outros ares. Entre todos os seus destaques, um, por ser tão familiar e tão distante, merece nossa exclamação: os filmes de expedição de Major Thomas Reis nos anos 10 e 20. Nunca é tarde para, vendo as imagens em outras relações, encantar-se com a força de um cineasta. E isso é o que era Thomas Reis. Mais sobre ele em breve no ar.

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