bloco de notas - agosto 2006

Prêmio Revelação: uma estratégia de cinema

por Eduardo Valente
Há alguns anos o Festival Internacional de Curtas de São Paulo, pioneiro em várias coisas que se referem ao formato no Brasil, lançou uma idéia no mínimo curiosa: a partir de uma parceria com uma série de empresas do ramo do cinema, o Festival permitiria que um cineasta estreante (escolhido por um júri que analisava todos os filmes que se encaixassem nesta categoria) realizasse, imediatamente após o seu primeiro filme, uma segunda obra em curta-metragem. O Festival sofreu um revés inesperado quando os primeiros premiados não chegaram a completar seus curtas, uma vez que os gastos com os serviços permitidos pelo prêmio não chegavam a cobrir toda a produção de um filme em moldes "profissionais". Foi quando o Festival deu o pulo do gato, passando a focar ainda mais o prêmio: ao invés de estreantes de forma geral, reservou-o apenas para os filmes de escola de cinema - com a lógica de que os estudantes (ou recém-formados), cheios de garra e contatos amigos, conseguiriam ter a capacidade de completar os filmes mesmo sem dinheiro de produção em mãos. A suposição se mostrou perfeitamente acertada (o Festival também ampliou o número de empresas apoiadoras, é bom que se diga), e desde então o Festival tem visto o filme seguinte de seus premiados ser apresentado na edição do ano posterior ao prêmio.
A olhos menos atentos pode parecer apenas mais um prêmio entre tantos do cinema brasileiro, mas de fato o Prêmio Revelação tornou-se um modelo que me parece tão ideal quanto ignorado. Ao invés de um banal concurso de roteiros/projetos, método quase único com que se escolhe filmes a serem produzidos no Brasil (seja por editais de empresas ou instâncias de Governo), o Festival resolveu apostar no realizador: na importância de que um cineasta considerado promissor possa fazer logo um trabalho seguinte, garantindo que um(a) jovem talento não saia da universidade sem perspectivas de realização imediata, e acabe se desvinculando do fazer cinematográfico. Esta aposta no cinema como motivador de uma realização seguinte (em oposição aos documentos de papel - que, se até podem mostrar determinadas habilidades, não necessariamente medem talentos cinematográficos) tem se mostrado acertada ano após ano com os "segundos filmes" que vimos chegar às telas - e não foi diferente em 2006. Recém-estreado no Festival, Joyce, de Caroline Leone (ex-aluna de cinema da FAAP), prova num belo trabalho em 35mm Dolby aquilo que já se anunciava em um 16mm de escola (Dalva): um olhar atento para os personagens e seu entorno, uma vontade de encenar e ficcionalizar as histórias de uma classe baixa quase sempre mais estigmatizada do que encenada pelo cinema brasileiro.
O Prêmio Revelação já tem alguns seguidores (e talvez até um aperfeiçoador, no Projeto Sal Grosso, do Festival Brasileiro de Cinema Universitário), mas ainda falta muito para podermos dizer que o cinema nacional, mantido grandemente por fundos de origem governamental, tem de fato um plano estratégico de apoio ao desenvolvimento de talentos da área. Afinal, a meritocracia tem especiais dificuldades de se instaurar num país sempre sob a suspeita de favorecimentos, esquemas escusos, abusos de poder e autoritarismo. A ela, prefere-se uma falsa democracia niveladora por baixo.

TV Comunitária: aonde fica a alternativa?
por Eduardo Valente
A idéia em si da TV Comunitária sempre me fascinou: a noção de que algo produzido fora das grandes empresas de mídia poderia circular de forma igualmente ampla pelas casas das famílias, e participar do consumo audiovisual do país, não é menos que empolgante. Porém existem as idéias, e existe o mundo real. Neste último, tenho exercitado ultimamente o hábito de ligar minha TV no canal 6 da NET, onde funciona a TV Comunitária no Rio de Janeiro. E com qual surpresa tenho constatado que esta é, nada mais nada menos, do que uma versão "no budget" da nossa TV aberta. Claro que a surpresa talvez fique apenas por conta da minha ingenuidade, afinal se esta é a dieta audiovisual oferecida (ou deveria eu dizer, enfiada garganta abaixo?) ao espectador médio brasileiro, porque esperar que, em posse dos meios mínimos de produção e acesso ao sistema de distribuição, ele fosse tentar fazer algo diferente? E tome versões em VHS caseiro do programa Amaury Jr. (mas, pelo menos, no TV Flash - sim, o nome é esse - os convidados parecem mais autênticos, assim como a a inserção de merchandising e a exploração da sexualidade feminina - "sou dançarina do Faustão e faço CAL", nos informa a menina de biquíni, juntando os universos cultos e comunitários por um segundo), tome clones deselegantes (claro, pois clones) de Fausto Silva e Raul Gil, tome versões do Pânico (Jone Brabo Show, que alterna esquetes de humor, sem humor, com ida a vernissages de exposição de artistas plásticos - com humor). No seu melhor, na sua copiagem tão autêntica, todos eles apenas ajudam a confirmar o já sabido: que o trabalho dos seus equivalentes na grande mídia poderiam estar sendo feitos por qualquer um com uma câmera na mão (e muito dinheiro no bolso).
É verdade que também surge no canal 6 o eventual programa do STIC (Sindicato dos Técnicos Cinematográficos), exibindo trabalhos do pouco lembrado cineasta Noilton Nunes, ou algum audiovisual político "alternativo" (geralmente sobre a Venezuela ou a Palestina). Mas, mesmo assim, a sensação que fica é que o forte da TV Comunitária não é a diversidade, e sim a desigualdade - latente na precariedade do domínio da linguagem e dos equipamentos usados. Desigualdade de meios esta que, para infelicidade dos glauberianos, cria muitos poucos momentos de selvagem "estética da fome digital" e muitos momentos de simples inexistência de estética.
A conclusão a que chego é que, no Brasil, os únicos projetos de democratização audiovisual em pleno funcionamento são a NET-gato e os DVDs piratas dos lançamentos de cinema a R$5.

Pregando no vazio?
por Eduardo Valente
Fica sempre entre o desanimador e o estímulo para fazer mais e mais: nem bem a gente acaba de publicar um texto analisando a fraca participação dos filmes brasileiros nas bilheterias de cinema, logo depois de um que tratava da clara falta de planejamento no lançamento de documentários em salas de cinema, e eis que nesta sexta-feira entram simplesmente três documentários brasileiros em cartaz, só em São Paulo: Intervalo Clandestino, O Sol - Caminhando Contra o Vento e Um Craque Chamado Divino (no Rio, foram dois, porque o último parece mesmo destinado à exclusividade paulistana). Como se fosse pouca gente brigando por um público já minguado e bastante semelhante, estréia ainda um documentário (Favela Rising) que de brasileiro só não tem os diretores/produtores (o que, para o público, é uma quimera) e, cereja no topo do bolo, um sobre a Bolívia! Estamos aqui torcendo, como sempre, pelos melhores resultados. Mas que não dá para pensar que eles virão naturalmente, não dá...
Pelo menos, para diminuir a sensação da solidão, a Carta Capital desta semana publica uma matéria bastante interessante (ainda que, num certo sentido, pareça apenas reciclar alguns pontos por demais batidos) sobre a nossa proto-indústria de cinema; e mesmo O Globo publicou em dias seguidos (quinta e sexta) uma entrevista com Eryk Rocha (diretor de Intervalo Clandestino) e outra com o maior responsável pelo projeto Cinemaneiro (do qual já tratamos aqui), Frederico Cardoso, onde eles tratam, entre outras coisas, da óbvia falência do sistema de distribuição comercial de cinema no Brasil como algo que permita qualquer possibilidade de um contato com um público mais abrangente/interessante. Mas, que os polianas de plantão não se animem com o excesso de boas idéias e debate consistente na grande mídia: tá lá, no mesmo Globo de quinta, uma cobertura ainda maior do fascinante espetáculo grotesco do Prêmio Contigo de Cinema Brasileiro (afinal, quem poderia esquecer a intrínseca relação da Revista Contigo com a luta histórica do cinema brasileiro?). Coisa de Primeiro Mundo!

O buraco é mais embaixo

por Leonardo Mecchi
Após as análises sobre o lançamento comercial de documentários nacionais e sobre o  público dos filmes brasileiros em 2006, é interessante acompanharmos também a performance nas bilheterias nacionais dos ditos “filmes de arte” (reconhecendo tratar-se de uma definição pantanosa mas que, para fins deste texto, assumiremos a categorização adotada pela Filme B), de modo a traçarmos aproximações ou diferenças com nossa própria produção. Ao adotarmos esse enfoque, deparamo-nos com um dado surpreendente: o percentual desses filmes que tiveram público abaixo de 50 mil espectadores neste primeiro semestre de 2006 é exatamente o mesmo que o dos filmes nacionais – 83%.
Há nesse número um fato alarmante: a aparente incapacidade de nosso mercado absorver e disponibilizar adequadamente produtos fora do padrão hegemônico da indústria, sejam eles filmes de arte ou nacionais. Pois se muitos apontaram precipitadamente a qualidade da atual safra de filmes nacionais como a principal responsável pela baixa bilheteria do ano, dificilmente tal argumento se sustentaria ao observarmos que filmes de qualidade aclamada como A Criança, A Dama de Honra, Três Enterros e Reis e Rainha (este último já considerando os números de seu lançamento em dezembro de 2005) ficaram todos com público abaixo de 30 mil espectadores.
É fato que para o cinema nacional esses números são muito mais preocupantes pois os filmes estrangeiros, ao estrearem por aqui, já tiveram na maior parte dos casos seus custos de produção pagos pela bilheteria em seus países de origem ou através da exploração em outros territórios (e ainda serão, em sua maioria, lançados em homevideo), enquanto nossos filmes continuam com pouquíssima penetração no mercado internacional e, quando conseguem um lançamento em DVD, acabam relegados às prateleiras de “Interesses Especiais” das locadoras.
O que esses números reforçam é a necessidade urgente de se pensar alternativas para o modelo vigente de distribuição e exibição nacional, que parece responder apenas a filmes com investimento maciços em publicidade. Além de ações específicas para o cinema nacional, são necessários projetos estruturais que minimizem o impacto dessa ação predatória dos grandes lançamentos (e não estamos aqui entrando no mérito da qualidade dessa produção, mas apenas de seu caráter comercial). Longe de ser uma ingerência pública – como alguns setores costumam acusar quando se busca mexer em certos “direitos adquiridos” – trata-se de uma defesa contra um monopólio, algo plenamente justificável em qualquer democracia que se preze.


Cinema no Arquivo
por Felipe Bragança
Chega a notícia por email, em carta assinada pelos preservadores de filmes do Arquivo Nacional, de que todo o corpo de trabalho da área, formado na cinemateca do MAM e que levava adiante nos últimos dois anos a organização e manutenção do acervo de cinema da instituição (grande parte proveniente da debandada de filmes do MAM acontecida em 2002), teve que encerrar seu trabalho obrigatoriamente, por simples encerramento de contrato. O Arquivo Nacional, que à época da crise do MAM se colocou como a solução ideal para a preservação de filmes no Rio de Janeiro, agora se mostra inoperante em sua política de contratatações, e não efetiva nenhum de seus funcionários especiaizados.Como já se está (ou deveria) cansado de saber: cinema é um objeto de arquivamento e preservação específica, que não pode ser tratado por profissionais não especializados. Acontece que o último concurso do NA não considerou a contratação de alunos da Habilitação Universitária Cinema, e, portanto, nenhum de seus funcionários específicos. Como diz a carta dos preservadores: "Com isso, o Arquivo Nacional confirma um grave problema que marca a maioria das instituições desta natureza ao redor do mundo: a incapacidade de dotar-se de meios legais para incorporar um corpo técnico experiente, que cumpra com a devida eficácia e competência, as inúmeras tarefas que um setor como o de preservação de filmes exige." Pois é. Como é ficamos agora? Como é que ficam os filmes? Outra debandada? Esperamos que não. Que haja, urgentemente, uma solução viável e razoável para o assunto. Os filmes não podem, não conseguem, esperar.

Poderosas...
por Ilana Feldman
Adeus cozinha da Ofélia: agora programa de culinária parece sala de necrotério de filme de ficção-científica. A luz é branca-estourada. As roupas são igualmente alvas (propaganda de OMO fica no chinelo – aliás, as últimas propagandas de sabão em pó já abandonaram o ideal asséptico). O chef, com seus fortes braços tatuados, manipula ingredientes e assessórios de aço-inox numa velocidade sem igual. A câmera, ágil, acompanha os movimentos dos braços em aproximações e recuos explícitos. Cortam-se alimentos, picotam-se imagens. De plano-médio aberto para supercloses do interior das superpanelas no fogo fátuo de um fogão opaco. Espécie de dogma-culinária. Nesse jogo de picota e monta – imagens e pratos –, os ingredientes do programa Mesa para Dois (GNT) parecem estar desprivilegiados, pois eles são tão desmaterializados que temos a impressão de estar vendo pratos digitalizados. A outrora organicidade e viscosidade dos alimentos foram de vez expelidas em nome da pureza, da beleza e da limpeza. Pratos plásticos, objetos de design para ocupar o efêmero museu de nossas lembranças visuais. Adeus cozinha da Ofélia... Agora a mesa é para poucos e cozinhar para a família já era! O programa é que está certo: mulher contemporânea come pouco, se cozinha só o faz para “o” outro e, o que é mais impressionante, possui uma inaudita capacidade de apreensão da “manipulação dos ingredientes” (pois “receita” parece termo do passado). Entendi. O adeus não é à Ofélia, é a um ritmo de aprendizagem baseado na temporalidade e não na velocidade. Essas mulheres contemporâneas, segundo o GNT, são mesmo poderosas... 

A televisão é a paródia de si mesma

por Eduardo Valente
Já que John Landis entrou em pauta na revista esta semana, não custa puxar pela memória o tempo em que o ainda novato cineasta, junto com um grupo de amigos igualmente tresloucados (entre os quais o brilhante Joe Dante), realizou um filme chamado por aqui de Amazonas na Lua. Tratava-se de uma coletânea de esquetes cômicas (cada uma dirigida por algum dos cineastas), que buscava brincar com a idéia de um zapping apressado por canais de TV. Neste zapping, vários projetos absurdos de programas, que brincavam com clichês da programação da TV de então (indo da publicidade aos filmes da madrugada). Entre eles, num dos melhores e mais inspirados esquetes, um chefe de família chegava em casa cansado, depois de um dia de trabalho, e descobria um novo quadro no programa de dois críticos de cinema, onde o que era criticado, ao invés de um novo filme em cartaz, era a sua vida. Os esnobes críticos, vendo as “cenas reais” da vida do homem (lembrem-se, tudo isso bem antes dos reality shows), decretavam o baixo nível daquele espetáculo, sapecando polegares para baixo (o equivalente americano do bonequinho saindo do cinema) para a vida de Harvey Pitnik.
Pois não é que, mais de 20 anos depois, a TV conseguiu superar o absurdo de Landis e sua turma? Zappeando de verdade por aqui, acabei parando num canal obscuro (pelo menos para mim), de nome Discovery Home and Health. Lá, sob o auspicioso nome de O que me irrita em você, estava um casal sendo filmado na sua rotina (com cenas incrivelmente parecidas com as do Pitnik de Landis), e tendo as cenas assistidas por um painel de especialistas que julgavam qual dos dois era o mais insuportável – dando, assim, a “vitória” no programa ao outro, que seria “um santo” ao aturar seu cônjuge. É amigos, a História realmente se repete como farsa – com uma sutil diferença com a qual nem toda a ironia de Landis podia contar: enquanto o Pitnik original tinha um ataque cardíaco ao descobrir sua vida fracassada passando na TV para o deleite de todos, os casais da Discovery desvelam os seus defeitos voluntariamente, e com um sorriso no rosto.

Gianfrancesco Guarnieri
por Felipe Bragança
A notícia da morte de Guarnieri chega pela internet. Em imediato, listam-se suas (muitas) realizações no cinema, na TV, no teatro. Mas o que me vem à lembrança, imediatamente, é uma sequência de seu primeiro longa-metragem: como o Zequinha, de O Grande Momento (dirigido por Roberto Santos), seguindo de bicicleta por uma São Paulo incipiente em seu futuro de metrópole descontrolada. As pernas finas pedalando a bicicleta, o rosto amplo, os olhos energizados – aquela mistura de alegria plena e desespero, aquela doçura ingênua e rascante, a força foto-física e simbólica do homem que anda pela última vez na bicicleta que terá que vender para pagar suas dívidas, para seguir sua vida, para ficar com a mulher que ele ama... Uma densidade, um certo cinema vivo habita aquelas imagens: naquele dó-de-peito de Santos e Guarnieri – um certo gesto que é (e pode ser ainda mais) muito rico, muito pregnante para que pensemos o que o corpo e os gestos podem hoje fazer no cinema. Uma certa liberdade pelo desvio, uma certa alegria física em contraponto ao simbolismo da melancolia, uma construção ao mesmo tempo superficial-mecânica e afetiva da imagem. Guarnieri foi. Mas deixou comigo um dos maiores encantamentos que já tive com o cinema – na Cinemateca do MAM, na tela em branco e preto iluminada. De me arrepiar os olhos e alegrar o peito. Se daquela seqüência se fizer uma cinematografia, será uma cinematografia que me fará feliz.



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